As ruínas de um reino escrita por Apenas eu


Capítulo 2
Doze anos depois.


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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    Havia um feixe de luz atravessando o pequeno quarto, iluminando o único objeto ali presente — um cilindro enferrujado, onde no topo se via uma cápsula transparente.

    O menino deu um passo. Dali não se ouvia nada além dos batimentos cardíacos acelerados e a respiração descompassada daquela criança, que acabara de descer os degraus em disparada. Ele olhou para trás; ainda tinha esperança de ver Banna no topo, esperando por ele... mas não a viu. Não era possível ver nada que não fosse os degraus calçados por raízes e terra, fracamente iluminados pela luz da superfície.

    Hesitante, ele virou-se de volta na direção do objeto. Seus olhos furtivamente procurando olhar ao redor, curiosos com cada pequeno detalhe. Ele não sentia medo, mas ainda assim suas mãos suavam em punhos cerrados, apesar do frio intenso daquele dia.

    Ele sorriu.

    Deu um passo adiante, chegando até a capsula e espiando dentro dela, em um ângulo que a luz externa conseguisse iluminar bem. Ele maneou a cabeça, franzindo um pouco o cenho. Aquele era apenas um livro comum, com uma capa de couro envelhecida e muito gasta, com dizeres em dourado que ele sequer podia ler. Era como a sessão de livros usados e gastos da biblioteca pública, que geralmente ficavam nas prateleiras altas porque ninguém nunca queria levá-los.

    Sem muita cerimônia, ele colocou suas duas mãos pequeninas ao redor da capsula, a levantando com cuidado. Havia muita poeira, e ele não queria que escorregasse e se quebrasse, afinal não era sua intenção bagunçar nada. Todavia, ao mesmo tempo que afastava a cápsula, gradativamente, o feixe de luz ia se estreitando.

    — Kiyoo! — a voz de Banna soou distante.

    Um desespero surreal subiu pela espinha de Kiyoo, que tentou correr em direção à escada, mas não pôde dar mais que dois passos até que o mínimo feixe desaparecesse e ele fosse engolido pela escuridão. Era como se ele sentisse que desmaiaria a qualquer momento, seu coração batia como se quisesse fugir do peito e ele sentia seu estômago afundar.

    Estar na escuridão era desesperador, ainda mais quando ele não tinha ideia de como sair.

    Foi recuando, tropeçando nos próprios pés, até ouvir o ruído que indicava que ele havia chutado a capsula que pusera no chão segundos atrás. Seu corpo encontrou o grande cilindro, e sua mão foi direcionada imediatamente para o livro.

    — Kiyoo! — Banna gritou novamente; era como se estivesse há muitos metros, mas Kiyoo ainda podia ouví-la com clareza — Ouça, eu vou tentar abrir de novo! Fica calmo, OK?!

    Porém Kiyoo já não estava calmo há tempos. Ele se virou para o livro, com seus olhos arregalados de medo e sem saber muito o que fazia, e correu os dedos trêmulos pela capa. Não se sabe o que pode ter passado pela cabeça dele, afinal Kiyoo tinha sete anos e estava aterrorizado.

    — Kiyoo! Me responde, por Kiun! — choramingou Banna.

    E ele segurou a capa e um punhado de páginas, abrindo o livro de uma vez.

    E se antes havia muita escuridão, dessa vez havia muita luz. Uma luz mais intensa do que o próprio sol, que fez com que Kiyoo se desequilibrasse e caísse sentado, com ambas as mãos cobrindo o rosto, e um grito angustiante dominasse a pequena sala.

—-----

    E foi assim que ele acordou, num sobressalto, sentando-se em sua cama e arfando pesado. Todo seu rosto estava coberto pelo suor, tal como a gola de sua blusa.

    Kiyoo demorou alguns segundos até estabilizar sua respiração e, engolindo em seco, fechou os olhos e levou a mão à testa, se sentindo patético. Ele tremia um pouco; sua mão esquerda agarrava firmemente o lençol de linho, como se isso fosse a única coisa o segurando na realidade.

    — Já é a terceira vez na semana. — soou uma voz masculina.

    Kiyoo abriu os olhos, e então entrou em seu campo de visão um pequeno cantil. Ele baixou a mão da testa e tomou um longo suspiro antes de apanhar o cantil, bebendo um gole da água. Isso o ajudou um pouco; contudo estava evidente o quão atormentado ele se encontrava, uma vez que ainda tinha dificuldades em encarar seu amigo e mantinha a cabeça abaixada.

    — Eu destruí todo um reino, Jiark. — Kiyoo murmurou, com uma voz amargurada e frágil — Matei pessoas inocentes. Eu tirei a vida de meu próprio irmão, de tudo o que construímos. E a Banna...

    Apertou os olhos ao dizer o nome da garota, sentindo um nó se formar em sua garganta. Jiark suspirou vendo o estado de seu amigo, e se aproximou dele um pouco mais, pousando a mão em seu ombro em sinal de apoio.

    — Isso foi há doze anos. — o consolou — Você tinha apenas sete anos, Kiyoo. Ninguém te culparia apenas por ser uma criança curiosa.

    Kiyoo apertou o maxilar, fixado em suas mãos que enrodilhavam o cantil. Seus dedos feridos e cobertos pelas cicatrizes das lâminas... e ele se lembrava. De quando havia chegado, e como tudo foi horrivel para ele. Kiyoo havia passado um ano cego, depois da explosão de luz na sala subterrânea. E foi justamente durante todo esse ano que ele ficou sem saber o que havia acontecido.

    Kiyoo foi achado vagando pelas ruínas de Transmo pelo padre que estava por visitar o rei Kiho e promover uma associação dos templos de Transmo e Cewi. Ele foi levado com facilidade, já que havia perdido a visão e não fazia a menor ideia do que tinha acontecido. Kiyoo passou seus oito anos inteiros sendo evitado, tendo pessoas falando sobre eles em cantinhos escondidos e implorando para ir ver seu irmão. Ele foi enganado. Por um ano. Portanto, quando a dor veio, ela veio muito mais intensa.

    Descobrir que ele destruíra tudo o que conhecia e amava foi como morrer lenta e dolorosamente. Kiyoo ainda se chamava Kiyoo Hyommie, ainda era o irmão mais novo de um agricultor e ainda corria como ninguém... mas sua essência já não existia. Ele era um corpo, e a alma não estava mais lá.

    Jiark o olhou penalizado, mas o que poderia fazer? A situação de Kiyoo era irreversível. Ele pensou em muitas formas de dizer que tudo ia ficar bem, porém não era verdade. Kiyoo jamais estaria bem.

    Ele ia abrir a boca para falar, quando uma garota irrompeu no quarto, colocando a mão na cintura e apoiando o peso do corpo em uma perna.

    — Qual é a de vocês? Todos estão de pé. Levantem-se ou vão perder a missa.

    Ela apenas soltou as palavras e se virou glamurosa, jogando seus longos cabelos negros para trás dos ombros.

    Jiark se demorou a avaliar Kiyoo.

    — Não se proucupe, pode ir. — disse Kiyoo — Eu vou apenas me trocar. Encontro vocês em um instante.

    Jiark se levantou, sem nunca desviar seus grandes olhos violetas do amigo. Se via preocupação neles. Depois de uns segundos, vendo que não tinha outra forma, ele balançou a cabeça e então saiu do quarto.

    Kiyoo se sentia incapaz. Anos treinando para ser um bom espadachim, tendo aulas de etiqueta real e religiosa que ele nunca iria usar. Sua vida era como um barco a vela solto, sozinho em uma tempestade... ele não sabia que rumo tomar. Kiyoo não era um cidadão de Cewi, ele era um simples agricultor de Transmo. Ele tinha uma vida lá, sua identidade estava lá. Sem tudo isso, ele era apenas um peixe fora d'agua tentando desesperadamente respirar e seguir sua vida.

    E sabia que nunca daria certo.

    Após se ajeitar e se olhar no espelho, Kiyoo suspirou. Ele estava um trapo; os cabelos escuros estavam muito compridos e quase sempre desarrumados, os olhos âmbar já não tinham o mesmo brilho e estavam margeados por olheiras. Sua pele morena exibia várias cicatrizes, inclusive em seu rosto, dos treinamentos e castigos do templo, e ele definitivamente estava mais magro aquele ano.

    Ele se via tão diferente...

    Colocou a jaqueta preta gasta por sobre a blusa branca e se espiou no espelho uma última vez antes de sair, passando somente para apanhar suas luvas sobre a escrivaninha.

    Os templos de Cewi eram de longe os mais bem equipados e luxuosos de todo aquele mundo; há quem diga que os cidadãos daquele reino eram realmente devotos e fieis à religião, colocando a figura da padroeira muito acima da rainha, de tal forma que qualquer decisão que partisse do castelo não poderia se tornar lei sem passar antes pelo clero — a comissão de padres que comandava os templos.
    Kiyoo passou direto pelo salão da missa e apanhou uma fruta na mesa do café da manhã, entrando na pequena salinha do confessionário. Era de se esperar que o templo estivesse desértico, uma vez que todos assistiam à missa. Kiyoo colocou a fruta sobre um suporte de madeira e calçou suas luvas de couro que deixavam apenas as pontas dos dedos livres, como de praxe; pegou um canivete no bolso da jaqueta e, após abri-lo, espetou-o na madeira ao lado da fruta.

    Kiyoo uniu suas mãos, fechou os olhos e passou a rezar.

    Crescer em um templo em Cewi o tornou em um homem religioso... um assassino religioso.

    E a verdade é que juntar as mãos para rezar soava um pouco hipócrita na opinião dele, afinal aquelas eram as mesmas mãos que carregavam o sangue de pessoas inocentes. Ele orava por misericórdia e perdão, sabendo que a única forma de ser perdoado era se ele próprio morresse. E mesmo assim...

    De qualquer forma, a religião em Cewi era um pouco superestimada, uma vez que as doutrinas que eles seguiam não podia ser divina. Cewi era o reino das armas. Armas não são para o bem, eles eram praticamente os fusíveis para as guerras. Os cidadãos de Cewi existiam para matar.

    Kiyoo abriu seus olhos e pegou a fruta, girando-a enquanto a observava.

    — É, Giona — sussurrou — parece que você não é uma boa deusa. Eu diria até que você não é deusa coisa nenhuma.

    Ele abocanhou a fruta, sentindo o sabor adocicado dominar seu paladar. Deu um sorriso. Ele havia se esquecido de descascar.

    Alguns minutos depois, ele saiu do confessionário, ainda guardando de volta o canivete no bolso, e foi surpreendido por uma garota que parou exatamente em sua frente e cruzou os braços. Era a mesma que havia chamado a ele e Jiark mais cedo, só que dessa vez ele não via Jiark.

    — É sério? — disse ela — Você perdeu a missa? Outra vez?

    Kiyoo deu um suspiro pesado e exausto, retomando seus passos e passando por ela. Sem acreditar na insolência do mesmo, ela se virou com uma expressão muito indignada e começou a segui-lo.

    — Não vire as costas para mim, Kiyoo Hyommie! — ela tinha que quase correr para acompanhá-lo, já que suas pernas eram curtas — Você sabe o que Jeilinzo vai fazer? Você pode acabar preso de novo!

    Kiyoo interrompeu a passada, apenas para respirar profundamente e se virar. A moça ainda parecia bem irritada, era fácil deduzir devido às suas orelhas vermelhas.

    — O problema não sou eu, Hiona. — disse com calma — Eu não me importo de ficar preso. Semanas, meses ou até anos. Você deveria parar de se preocupar comigo.

    Apoiou a mão na cabeça dela e sorriu gentilmente, mas Hiona imediatamente segurou seu pulso e o empurrou.

    — É aquela história de novo, não é? — disse ela com amargura — O acidente de doze anos atrás.

    Kiyoo trancou o maxilar.

    — Não foi um acidente...

    — Então é isso... — Hiona se afastou alguns passos para ter uma visão melhor do amigo, e o avaliou dos pés à cabeça — você continua achando que foi sua culpa, e revivendo a mesma cena todos os dias e noites. Acha que de qualquer forma está bom, já que perdeu tudo.

    Ela estreitou os olhos e umedeceu os lábios, balançando levemente a cabeça.

    — Entendo. — continuou, enquanto Kiyoo olhava em outra direção, sem poder encará-la — Mas sabe o quê, Kiyoo? Eu me importo. Jiark se importa, e o seu mentor se importa. A última coisa que a gente quer ver é você desistindo da vida por causa dos fantasmas do seu passado!

    Kiyoo voltou os olhos para ela, ainda de dentes trancados e punhos cerrados.

    — Fantasmas que eu mesmo matei. — soltou entre os dentes, girando nos calcanhares e tomando seu caminho.

    De longe, Hiona apenas suspirou. Ela sabia que Kiyoo era cabeça dura, e apenas falar não resolveria. Então, por ora, ela apenas seguiu-o silenciosamente.

 


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Notas finais do capítulo

Beijinhos!



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