As ruínas de um reino escrita por Apenas eu


Capítulo 1
Prólogo.


Notas iniciais do capítulo

Oii, meu povo! Espero muito que gostem dessa... boa leitura!



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Era o primeiro dia de inverno e o garotinho mal podia sentir seus pés gélidos dentro dos sapatos de couro. Jogou um dos casacos mais aconchegantes sobre os ombros e, se inclinando um pouco, abriu a janela de madeira que emitiu um ruído seco.

É. Os dias de inverno eram realmente agradáveis.

Ainda não havia começado a nevar, mas de longe já se viam os agricultores levando algumas plantas para a estufa, algo que eles já deveriam ter feito há tempos. O menino se debruçou na janela, quase tendo que ficar na ponta dos pés; viu seu irmão passando com algumas frutas.

— Kiyoo! - gritou o mais velho ao avistá-lo lá de fora - Fecha a janela, você pode se resfriar!

O garoto fez um biquinho de reprovação. O irmão dele, Gomson, um rapaz de recentes vinte anos que havia assumido a responsabilidade pela vida daquela criança ainda muito novo, era um agricultor nato. A vida dele era plantar, colher e vender, e graças a isso Kiyoo, que não tinha mais que sete anos, podia almoçar e jantar todos os dias.

Não era como se viver em Transmo fosse um pesadelo, o problema é que ele não queria terminar como seu irmão, que aceitava e vivia da maneira que desse. De qualquer forma, crescer em uma aldeia pobre de agricultores o deixava entediado e intrigado sobre o mundo. Ele queria ser livre. Conhecer tudo o que os cinco reinos tinham a oferecer, cada pedacinho. O fato de ser um simples agricultor já não lhe enchia mais os olhos.

— Eu quero ir ver a Banna! - resmungou o mais novo, num tom claro para que Gomson não tivesse como fingir que não o havia escutado.

Sinceramente, Kiyoo sabia que Gomson não aprovava essa amizade, só pelo olhar reprovador que o irmão o endereçava todas vezes que ele dizia o nome da garotinha.

Banna era brilhante. Tão linda quanto uma brisa morna no fim da tarde, com um par de olhos castanhos que brilhavam como estrelas sempre que ela via Kiyoo chegar com seus livros emprestados da biblioteca pública. Banna era adorável. Oito anos de graciosidade, em roupas simples que camuflavam quem ela era de verdade: a princesa de Transmo.

E não era de se espantar que Gomson não estivesse de acordo com aquela relação. Ser amigo da princesa era um risco enorme, ainda mais quando se tratava de Kiyoo, que não tinha juízo nenhum. Um deslize, se Banna se ferisse, se ela quebrasse uma unha que fosse, e Kiyoo ia parar em um calabouço. Gomson poderia ser decapitado tentando salvá-lo.

Era um risco que ele não queria correr.

Gomson deu um suspiro, abaixando a cabeça e seguindo em direção à estufa. Sua expressão era indecifrável.

— Você sabe que não pode, Kiyoo.

— Aaaaa! - protestou ele, segurando o parapeito da janela com força. - Por quê?! A Banna é legal!

E a partir daí, nada. Gomson apenas seguiu em silêncio rumo à estufa, ignorando o irmão completamente.

Mas Kiyoo não fazia o tipo obediente.

Ele se inclinou, se certificando de que o irmão já não podia vê-lo mais, e se empoleirou na janela. Por um instante, ele quase caiu, mas recobrou o equilíbrio em seguida.

Uma vez sentado no parapeito, ele se impulsionou e saltou para fora, caindo em pé e cambaleando para frente. Ele olhou na direção da estufa uma última vez.

— Eu volto logo, tá?

E deu um sorriso.

E ali se ia Kiyoo Hyommie, correndo como se sua vida dependesse disso. Ele era bom em corrida, havia ganhado alguns prêmios em competições de velocidade. Só havia alguém que corria mais do que ele...

E foi nesse alguém que ele esbarrou.

Os dois bateram de testa; ela também corria, portanto o impacto fez ambos serem lançados para trás e caírem sobre seus traseiros. Kiyoo foi quem se levantou primeiro, esfregando a testa que latejava. Seu olhar confuso capturou cada detalhe, e ele chegou a conclusão de que estavam no campo.

Haviam poucas árvores, e o orvalho sobre relva o fez molhar-se um pouco; também haviam pequenas flores aqui e ali enfeitando a vista.

Kiyoo estava tão desnorteado, que nem percebeu com quem ele havia se chocado. Quando seu olhar se voltou para frente, ele sentiu uma pancada em sua canela, seguida por uma dor excruciante.

— Hey! - protestou.

Ele demorou a raciocinar que havia levado um chute na canela. E pior, demorou a perceber que era ela, Banna Soern, que o chutara.

— Você não olha por onde corre não? Seu imbecil, qual é o problema com você?! - esbravejou ela, com a mão na cintura feito uma velha. - Você é um idiota, Kiyoo Hyommie! Isso - apontou para testa - vai ficar roxo!

Adorável, não?

Banna era um ano mais velha, portanto alguns centímetros mais alta que o menino. Tinha um cabelo loiro cacheado incontrolável que apontava em todas as direções, e quase sempre estava encardida. Ela poderia facilmente ser confundida com os plebeus da aldeia, ninguém diria que aquela criança magricela descabelada era a princesa de Transmo.

Ainda assim, Kiyoo a via encantadora.

Depois de tomar muito sermão, Kiyoo seguiu com ela para o castelo. Na verdade, era sua parte preferida do dia: quando ele e Banna iam às aulas particulares no castelo.

A população de Transmo era formada, em sua maioria, por analfabetos. Kiyoo era uma criança privilegiada por poder participar das aulas particulares com a princesa.

Além disso, Kiyoo amava o professor de Banna, o senhor Chipsta - um homem de quase cem anos que carregava sua enorme sabedoria em cada um dos seus poucos fios brancos. Kiyoo e Banna podiam jurar que aquele homem conhecia Transmo desde os primórdios de sua criação, que ele já havia visto todas as guerras mundiais e lutado em algumas. Banna apostava que o velhinho havia sido um general, mas Kiyoo discordava. Na mente do menino, o senhor Chipsta, com toda a sua gentileza, só podia ter sido um contador de histórias que mantinha as crianças distraídas enquanto seus pais lutavam na guerra... como um grande abraço confortador.

Que mais não fosse, nenhuma das duas crianças tinha coragem de perguntar a verdade. Eles apenas se sentavam e ouviam as histórias fascinantes do professor, que sempre carregavam alguma mensagem profunda sobre valores e ética.

E eles amavam.

Naquele dia em especial, o senhor Chipsta se dispôs a contar uma das mais profundas histórias que trazia consigo toda a estrutura de Transmo. Mas, honestamente, se Chipsta realmente conhecesse Kiyoo Hyommie, ele teria contado uma das historia repetitivas sobre plantio.

Kiyoo nem piscava. Sua boca estava entreaberta, e seus olhos fixados nos pequenos olhinhos alaranjados do senhor Chipsta, enquanto o idoso, em voz mansa, contava a duas crianças o assunto menos comentado de Transmo.

— Há muitos anos - disse ele, deixando um clima tenso pairando no ar - antes que até mesmo eu tivesse nascido...

— Isso foi mesmo há muitos anos - Banna cochichou apenas para Kiyoo escutar, e o menino, por sua vez, deu-lhe uma cotovelada para que ela ficasse quieta.

— ...Transmo era apenas uma terra nua. Não havia vida. Não havia nada.

Banna rapidamente ficou ereta e levantou seu bracinho ossudo acima da cabeça, ansiando para que Chipsta a permitisse falar. O idoso apenas sorriu e gesticulou para que ela seguisse em frente.

— Essa é a história sobre como Kiun Shaiming criou o nosso reino?

Chipsta, sereno, deixou que seu sorriso aumentasse. Ele olhou para Kiyoo em seguida, que havia se distraído por um instante com seus pensamentos e recebeu o olhar como um alerta, se endireitando de imediato.

— Não necessariamente - disse o sr. Chipsta, com calma - mas, de qualquer forma, existe relação. - ele fez uma pausa misteriosa - Essa é a história de como o mal foi vedado do nosso reino.

As duas crianças se entreolharam curiosas e um tanto quanto surpresas. Esse era o tipo de coisa que se lia nos livros, mas não em detalhes explícitos. Era quase como que um tabu.

Era no mínimo estranho que aquele senhor sábio tivesse decidido compartilhar a história com duas criaturinhas que sequer sabiam o que era maldade. E, honestamente, poderia ser exatamente isso: eles eram puros. Mereciam a verdade.

Chipsta se endireitou em seu assento enquanto as crianças se ajeitavam no chão, sem nunca desgrudar os olhos dele.

— Vocês devem ter lido que quando Shaiming criou Transmo, o reino era caótico. As criaturas do mais extremo sul do mundo viviam aqui.

Banna cobriu a boca com a mão. Ela morria de medo das criaturas do sul.

— É claro que todas foram banidas, não há dúvidas. Mas... não todas. - Chipsta suspirou - Kiun era claramente muito poderoso, mas era impossível que enfrentasse todas as criaturas de uma vez.

— E o que ele fez? - perguntaram as crianças em uníssono.

Chipsta olhou bem para os dois, pensativo.

— Ele viajou. Uma viagem de muitos dias rumo ao leste do mundo. Bem depois das montanhas de Evetenen. Ele entrou no covil das bruxas.

Kiyoo soltou o ar, só então percebendo que estava prendendo.

— ... a bruxa aceitou a oferta de Kiun. Ela selou os monstros em um livro no subsolo, na orla da floresta.

Banna se empolgou.

— Então as bruxas são boas? - disse com um sorriso grande.

Kiyoo olhou para ela e sorriu também, contagiado. Mas a expressão do professor era de um certo desapontamento.

— Crianças, o que sabemos sobre as bruxas?

Ambos murcharam, deixando os ombros cederem.

— Que elas não são boazinhas. - resmungou Banna, num tom quase inaudível.

Chipsta assentiu, alternando olhares entre os dois.

— Ao selar o mal, as bruxas pediram algo em troca - ele disse cuidadosamente - pediram a alma de Shaiming, que ficou como prisioneiro delas até o dia de sua morte. E pediram também a essência de Transmo, caso o livro fosse aberto.

E qualquer um que visse a expressão das crianças naquele momento saberia que aquelas palavras iriam causar-lhe pesadelos por algumas noites. Talvez Chipsta devesse ter escolhido um tema melhor para abordar naquele dia, mas ele não era como a maioria. Ele não via vantagem em privar as crianças do conhecimento, seja lá quão traumatizante possa ser. Uma criança que sabe a verdade, cresce com ela e se torna um adulto sábio; pelo menos era assim que via o professor Chipsta.

Mas Kiyoo não se contentava com aquela verdade.

Nossas escolhas dizem muito sobre nós e nosso destino, no entanto ainda há tolos que não consideram isso, que optam pelo pior caminho achando que o pote de ouro os espera no final...

Kiyoo Hyommie era uma dessas pessoas.

Na verdade, como dizia seu irmão, Kiyoo não conseguia enxergar nada um palmo a frente do nariz; era do tipo que achava que a vida acabaria no dia seguinte, portanto se jogava de cabeça em tudo o que fosse meramente interessante. Um inconsequente. Não havia outra palavra para descrevê-lo.

E com toda a história em sua cabeça, sem poder confirmá-la ou apagá-la, Kiyoo definitivamente se lançou em um precipício.

Por dias, Kiyoo foi a orla da floresta e caçou todas as possíveis entradas subterrâneas. Ele não queria ser um desconfiado, mas também não queria aceitar como verdade o que lhe foi dito.

Porque Kiyoo Hyommie pensava diferente de todos da aldeia.

Por volta do décimo terceiro dia, Kiyoo desistiu. Ele pegou sua enxada e voltou um pouco aliviado por não ter achado nada, afinal isso só podia significar que tudo aquilo não passava de uma lenda.

Foi quando Banna o avistou de longe, e veio correndo rapidamente ao seu encontro.

Já estava nevando. A neve calçava toda a relva e nenhum agasalho parecia suficiente para espantar o frio. Banna estava tão enrolada que parecia difícil se locomover; flocos de neve grudavam-se em seus cabelos e se acumulavam sobre a touca.

— O que faz? - disse ela, ofegante. Correr com tantos casacos deveria ser difícil.

— Estava procurando o livro da história do professor. O que guarda o mal.

Banna soltou uma risada sarcástica.

— Nesse frio? Com toda essa neve? - gesticulou - Não acha que já temos mal suficiente por hoje, não?

Kiyoo fez beicinho, unindo a sobrancelha com um ar aborrecido. Ele ia passar direto pela garota, quando ela agarrou o cabo da enxada que estava sobre o ombro dele, consequentemente o puxando para trás.

— Ah! Me deixa em paz! - Kiyoo gritou, puxando a enxada de volta para frente, o que resultou no desequilíbrio da mais velha.

Banna acabou por escorregar no gelo e cair sentada.

Curiosamente, logo quando caiu, ouviu-se um barulho.

E um buraco surgiu no chão, magicamente, sugando a neve para dentro dele.

Banna se arrastou para longe, tentando ficar em pé, com medo de que o buraco ficasse tão grande que ela acabaria caindo. Kiyoo, que havia ouvido o momento em que ela caiu, tentou continuar o seu caminho como se não ligasse, mas acabou se virando pouco tempo depois.

E aí ele viu o buraco. E, melhor, daquele ângulo ainda se via uma escadaria.

Banna rastejou até ele e segurou a roupa de Kiyoo para ter impulso e se levantar. Ela ainda olhava abestalhada, com os olhos muito arregalados e a boca entreaberta, tal como Kiyoo, para aquela grande escadaria.

— Não brinca... - Kiyoo sussurrou, já dando seus primeiros passos.

Banna, ainda agarrada em sua roupa, o puxou para trás, assustada.

— Não, Kiyoo! Não desce! Não, por favor, por favor, Kiyoo!

Mas ele seguiu andando, embestalhado.

— Kiyoo Hyommie, eu sou a princesa e ordeno que pare agora!

Kiyoo deu uma risada e se virou para ela. Apesar da fala firme, Banna tinha pavor no olhar. Suas bochechas estavam vermelhas, os lábios franzidos e era como se ela suplicasse silenciosamente para que ele não entrasse.

— Princesa? - falou Kiyoo - Você nunca ligou para isso. Por que eu iria te obedecer?

Ela engoliu em seco, com os dedos firmemente engatados no casaco dele.

— Não importa. Eu sou mais velha, você tem que me obedecer.

Kiyoo deu outra risada, afastando as mãos da garota com delicadeza e a olhando com serenidade.

— Eu vou ficar bem, Banna. Não precisa se preocupar.

Ela pestanejou, sentindo as lágrimas quentes. Droga, por que Kiyoo ia entrar naquele lugar? Por que ele era tão teimoso?

— Se você morrer lá embaixo, vai ser difícil de tirar de lá - ela disse num fio de voz.

Kiyoo apenas riu, se virando.

E foi assim que ele desceu. Uma criança de sete anos teimosa, que desceu para pintar o destino de um reino.

Com tinta vermelha.

Com sangue inocente.

Sim, havia um livro. Um livro envelhecido, com uma capa marrom em uma cápsula de vidro. Kiyoo rodopiou, vendo o quanto aquela pequena sala estava cheia de insetos e rachaduras, e ele foi de livre e espontânea vontade abrir o livro. Kiyoo era curioso. Era um tanto estúpido também.

E foi exatamente assim que Kiyoo Hyommie reduziu a cinzas o reino de Transmo.

 


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Notas finais do capítulo

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