Lua do Corvo escrita por EllisSG


Capítulo 3
Capitulo Três [Pt.1]




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CAPÍTULO TRÊS

A manhã já ia longa e sinuosa.

A agitação da casa contrastava com o silêncio impiedoso do exterior. O céu pintava-se em tons de cinza com as nuvens a encaminharem-se pesarosas pelo horizonte – hoje, o Sol, estava melancólico e ameaçava chorar a qualquer instante.

“ Não que o Sol chore.” pensou Magdalene enquanto caminhava a passos pesarosos para as traseiras da casa, onde as trepadeiras se alongavam, floridas e verdejantes, pelas altas paredes da mansão. Ali o sol raiava quase todo o dia, um fenómeno quase impossível, mas por algum motivo, era sempre abençoada por ele – só que não naquele dia.

Magdalene sentou-se num banco de pedra encostado a uma das paredes; este era o recanto que mais a reconfortava, longe de olhares terceiros e só aqueles que sabiam que exista a iam procurar lá. Ficava abraçado pelas longas trepadeiras que construíam um arco quase perfeito em redor do banco, dando uma vista ampla para os estábulos e para os prados que se estendiam até à floresta. Era uma vista maravilhosa, não fosse o Tempo teimar em não florescer. A rapariga, por sua vez, não se mostrava muito preocupada com o súbito desaparecimento da Noite e do Dia pois, talvez, também algo em ela tivesse desaparecido com ambos.

Esticou as pernas por baixo do longo vestido e alongou o pescoço. Um espetáculo que seria recebido com bastante desaprovação pelos seus pais. Abriu os olhos e arrastou o olhar pelo céu. Inspirou fundo e baixou os olhos para as mãos abertas no seu colo.

“ Como?”

Um pequeno relinchar de atenção fez com que a sua própria melancolia desaparecesse para dar lugar a uma ponta de curiosidade que despontava no seu subconsciente.

Magdalene não era alheia aos enormes e elegantes cavalos que a sua família adquiria ao longo dos anos; sabia todos os seus nomes, as suas manias e como lidar com elas, os dias em que nasceram e todos os pedaços de coração que choraram pelos poucos a quem teve de se despedir ao longo dos anos. Montava quase todos os dias quando não tinha de ficar em casa a estudar mais um livro daquela biblioteca que parecia estar sempre a crescer por mais livros que lesse, ou a aperfeiçoar um dos seus poucos dons, um deles sendo a música – nesses dias conseguia arranjar maneira de ir para o exterior tocar. Sentava-se num dos imensos bancos espalhados pelo jardim e esperava que um ou outro cavalo fosse guiado pela musica que se balançava pelas cordas do violoncelo que tocava.

Mas aquele novo falar ela nunca tinha escutado. Ela saberia se seus pais tivessem comprado um novo cavalo – não perdiam a oportunidade de ver um sorriso no rosto pálido da filha.

Magdalene debruçou-se e olhou em volta, apesar de parte da sua visão estar toldada pelas trepadeiras em seu redor. Nada. Franziu a testa. Não estava maluca, sabia disso, mas poderia ser só um dos seus, e naquele momento de reflexão em que nada mais se ouvia se não o leve restolhar da copa das árvores e as conversas abafadas do interior da casa entre criados atarefados, ela voltou a encostar-se no banco.

Hoje estavam todos bastante ocupados, no entanto não com as lides domésticas, mas sim a murmurar em cada canto da casa sobre casos banais. Tudo bem, não eram tão banais quanto isso. Era raro a casa receber visitantes, passavam-se meses até se ver uma nova cara e inspirar um novo espírito, e quando isso acontecia, era conversa entre os criados durante o ano inteiro.

Magdalene conseguiu apanhar fios de conversa aqui e ali, mas nada em concreto. As criadas não lhe davam conversa com medo das represálias, portanto afastavam-se rapidamente com um sorriso forçado quando a viam chegar perto. Não que ela se importasse; já estava habituada a ser apenas uma sombra mal desejada depois daquele pobre rapaz ter sido expulso após mostrar genuíno interesse naquela rapariga franzina.

Passos pesados cortaram-lhe o raciocino. Só que não era passos. O que quer que fosse vinha a trote delicado e divertido. Magdalene agarrou a saia do vestido e levantou-se, afastando-se do banco por debaixo das trepadeiras.

Por amor à Lua.

O garanhão cinzento parou a escassos metros à sua frente, abanando o pescoço para cima e para baixo, alternando os passos, mas ficando no mesmo sítio. A sua cor Magdalene nunca tinha vislumbrado e pensou ser a mais maravilhosa que jamais um cavalo poderia ser pintado com. Este estava a dar-lhe um espetáculo, tentando por tudo chamar-lhe a atenção. Tinha conseguido.

Magdalene aproximou-se dele de sorriso rasgado no rosto. O seu pelo reluzia luz que não existia, brilhava por si próprio, e nenhuma mancha de outra cor se atrevia a salpicá-lo tornando “imperfeito”. Os seus olhos eram de um azul tão claro que se poderia perder neles e nem se importaria se tal acontecesse. O seu coração vacilou por momentos e a sua mente gritava-lhe algo que não conseguia perceber; não era medo, nem um aviso, mas não conseguia perceber se era felicidade ou tristeza aquilo que sentia. A rapariga estendeu-lhe a mão e esperou pela aprovação do garanhão que rapidamente a concebeu com uma lambidela feliz e um relinchar estridente.

— Raramente gosta de alguém.

Um arrepio frio subiu-lhe pela espinha.

Agora sim, o medo assolou-a como um murro no estômago.

Os seus calcanhares rodaram e Magdalene deparou-se com um homem que não lhe era, de todo, familiar. Então és tu o motivo da conversa do ano. Não compreendia a fonte de tanto burburinho em relação à sua vinda, não era um espécime fora do vulgar, mas ao que parece, qualquer novidade era uma boa razão para as mulheres daquela casa andarem a suspirar pelos cantos.

O seus cabelos longos e negros agarravam-se atrás do pescoço por uma fina fita branca. Era alto e de porte modesto, moreno e de olhos verdes cor musgo que assentavam estranhamente bem nas suas feições fortes. O seu semblante não era fidalgo, mas também não representava o povo. Usava uma camisa de linho acastanhada com um decote que mostrava mais do que o que devia, as calças do mesmo material eram cinzentas e pareciam ter passado por melhores dias. Constrangida, Magdalene não sabia como se dirigir ao estranho que a abordara de surpresa. Mesmo que não o tivesse feito, ela continuaria a não saber como lidar com pessoas novas no seu mundo. Idiota.

Ele sorriu e Magdalene deu um passo atrás corando.

O cavalo resfolgou e saiu a galope para só parar junto ao estábulo mais à frente, distanciando-se assim razoavelmente daquele encontro pouco conveniente. Magdalene desejava que ele se tivesse mantido junto dela, apesar de saber que nada poderia fazer, mas ao menos a sensação de conforto e proteção estava lá.

— Ainda não fomos apresentados. - disse o rapaz dando um passo em frente e estendendo-lhe a mão. - Chamo-me Hanzi. Prazer em finalmente conhecê-la Menina Beau Pre.

Menina...

Magdalene semicerrou o olhar. Não confiava nele nem naquele sorriso parvo que lhe arrancava um suspiro tenebroso ao coração que teimava em acelerar por razão nenhuma. No entanto não estava confortável com a situação, mas as boas maneiras que aprendeu obrigaram-na a aceitar o cumprimento formal que aquele homem lhe apresentava. O toque dos lábios do rapaz gelaram-lhe as costas da mão instantaneamente. Todo o seu toque era frio e, quase como involuntariamente, ela retirou-lhe a mão da sua num movimento rápido.

— Peço desculpa, mas os meus pais não me anunciaram a sua visita. Deve de compreender que não posso falar consigo sem a sua presença. É...inadequado.

Por algum motivo isso pareceu diverti-lo, como se o que a rapariga lhe tivesse dito fosse mais um desafio do que uma regra a ser cumprida. Hanzi abriu os braços em forma de rendição, e soltou o que pareceu um riso.

— Não queria de todo ofendê-la, e muito menos aos seus pais.

Magdalene inclinou a cabeça, não em dúvida, mas seria possível?

— Você está aqui a convite deles?

Esperava que a resposta fosse negativa. Embora não o conhecesse, algo nela dizia para correr, que corresse para bem longe para nunca mais os seus olhares se cruzarem. Mas porquê? O instinto só lhe gritava que o fizesse. Mas e se ele fosse um de muitos que estivesse ali para a cortejar? Como é que ela iria enfrentar essa realidade? Não poderia escolher, seus pais fariam-no por ela de uma maneira ou de outra.

Hanzi pestanejou e rapidamente abanou a cabeça.

— Não. Estou somente de passagem.

Uma sensação de conforto abalou-a e teve de conter o impulso de sorrir de alivio. Olhou para o cavalo que pastava descontraidamente em frente ao estábulo, dando tempo suficiente para que Hanzi se apercebesse que não havia mais nada a acrescentar e que estava na hora de ir.

Magdalene olhou-o de soslaio e ele fez-lhe uma vénia aceitando a sua derrota.

— Foi um prazer, e espero que o nosso próximo encontro seja mais prazeroso.

Com isso, Hanzi afastou-se na direção do cavalo, mas não sem antes acrescentar :

— Voal. O nome dele é Voal.

E assim afastou-se ao encontro do garanhão que, apesar de distante, resfolgou impaciente quando se apercebeu que Hanzi se aproximava a passos largos para, certamente, o levar do seu merecido repasto.

— Nem ele gosta de ti.- murmurou Magdalene com um toque amargo nas palavras, mas rapidamente abanou a cabeça de um lado para o outro tentando afastar todo um rancor incompreensível que se tinha abatido sobre ela.

“ O que se passa contigo? Se vais agir assim durante todo este engodo, bem que te podes casar com uma árvore pois nenhum mortal te vai querer, rapariga.”

Em silêncio dirigiu-se de volta para casa ainda a pensar como aquela manhã se tinha desenrolado numa enorme surpresa, daquelas que nos arrebatam de tamanha forma que nos abrem portas que nunca pensamos existirem - mas até que ponto é que Magdalene estaria disposta a caminhar através delas e aceitar o seu destino?


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