E Então Ele Apareceu escrita por dragkos


Capítulo 2
O Garoto do Ginásio


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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A recepção aos alunos se estendeu pelo que parecia uma eternidade, mas segundo o meu relógio foi apenas uma hora. Era indiferente ficar ali ouvindo o diretor dando orientações sobre convivência escolar ou estar na sala ouvindo outras besteiras vindas de um professor. Nada daquilo era de fato útil. Ao mesmo tempo, tentei de tudo para não olhar para baixo, na direção do garoto de cabelos negros, mas isso acabou acontecendo umas quatro ou cinco vezes.

Fomos finalmente dispensados e iniciou-se uma verdadeira procissão de alunos até as salas de aula. Victor e Ana continuavam conversando entusiasmados, inventando teorias sobre o fato do diretor ter voltado mais magro das férias. Eu só os acompanhava, ainda calado e pensativo.

— Acho que a nossa turma está no segundo andar – disse Ana checando uma lista colada na entrada do prédio.

— Uma vista para a piscina, é só o que eu preciso – disse Victor.

— Você não quer ver piscina nenhuma e sim as garotas de maiô na aula de natação. Você é um tarado, Victor! – disse Ana.

— Eu não tenho culpa se isso é mais interessante que química orgânica.

Os dois então riram.

Passei os olhos pela lista de nomes do 2ºB e confirmei que o meu estava mesmo ali, assim como o de velhos conhecidos de anos passados e outros que eu não fazia ideia de quem eram.

— Bom, parece que vou ter que aturar vocês esse ano de novo – falei.

Nossa escola era bastante antiga e estava localizada num terreno aos pés de uma colina coberta de mata. Havia tantas coisas por ali como a pista de atletismo, o campo de futebol, a piscina e as quadras esportivas que dava para se perder fácil. Meu lugar preferido sem dúvida nenhuma era o lago que existia ao lado do auditório. Era onde os alunos costumavam ir quando queriam relaxar. Não era incomum alguém acabar se jogando – ou sendo jogado – na água. Mesmo assim banhos não eram permitidos, não importava o calor que fizesse.

Eu não tinha tanto o hábito de andar por esses lugares. O prédio com as salas de aula ficava mais ou menos próximo da entrada principal e era basicamente tudo o que eu precisava conhecer. Nunca fui do tipo que se envolvia em atividades extraclasse.  Na verdade, eu passava o mínimo de tempo possível na escola.  

Como já havia dito, nossa cidade não tinha nada de grande e, por isso, boa parte das famílias tinham seus filhos ali no IDE. Essas letras significam Instituição Delta de Ensino, mas todo mundo só se referia à escola como “Instituição”. Isso fazia parecer que estudávamos num manicômio ou algo do tipo, o que não deixava de ser em parte verdade.

Na prática era quase como se todo mundo conhecesse todo mundo, um mundinho bem pequeno. Não era à toa então que eu, Ana e Victor estudássemos na mesma escola e morássemos no mesmo bairro. Meus irmãos mais novos também estudavam ali e muitas vezes eu tinha que leva-los para a aula pois meus pais nunca tinham tempo.

O prédio III, onde estávamos, tinha um tamanho considerável. Era em formato quadrado com um pátio interno bem no meio do primeiro andar. Do corredor do segundo andar dava para ver todo o pátio – e até atirar coisas de lá de cima. Logicamente era uma construção bem antiga com esse tipo de corredor “aberto” que ajudava na circulação de ar em épocas em que ainda não haviam condicionadores de ar. Apesar de tudo, até que era um lugar bonito.

Subimos a rampa e fomos procurando de porta em porta um papel colado que nos indicasse que tínhamos chegado ao lugar certo. Não éramos os únicos fazendo isso, primeiro dia de aula e todos pareciam meio perdidos. Rodamos quase tudo até pararmos em frente à sala 207 com o papelzinho colado indicando “2ºB”.

Já haviam uns 6 alunos na sala, mesmo assim conseguimos nos sentar na fileira perto da janela. Eu na frente, Victor atrás e Ana na fileira do lado. Não tinha vista para a piscina, mas dava para ver o lago e algumas árvores. Também notei vários alunos ainda andando pelo gramado, adiando ao máximo a hora da entrada.

Faltavam dez minutos para as nove da manhã quando o sinal resolveu tocar. O restante dos alunos foi entrando e Ana e Victor comentavam sobre quem eles achavam que tinha perdido a virgindade no verão. Os dois quando começam essas conversas não paravam de falar por um segundo.

Sala quase cheia. O professor de matemática chega andando desajeitado, como se estivesse de ressaca depois de uma noite de abusos. Só de observar sua fisionomia dava para notar seu mau-humor.

— Nem pra se atrasar um pouco! Fala sério! É o primeiro dia de aula! – resmunga Victor.

A gravata frouxa, o andar cambaleante, a marca de sol em um dos dedos da mão esquerda. Resolvi entrar no jogo dos meus amigos e tentei adivinhar o que o professor havia feito no verão.

— Aposto com vocês que ele está se divorciando da mulher. Ele não está mais usando a aliança, mas ainda tem a marca no dedo.

— Você daria um ótimo detetive, Eric – comentou Ana.

O professor pigarreou algumas vezes até que o falatório que corria solto fosse encerrado. Sua voz preguiçosa se fez presente na sala.

— Bom dia, classe. Espero que tenham aproveitado bem as férias, assim vamos poder ter uma aula produtiva – e logo em seguida fechou a porta.

Senti meus olhos começarem a pesar. Não era possível que alguém tivesse um jeito de falar tão enfadonho. Ele escreveu seu nome no quadro, mas nem me importei em saber qual era.

 – Bom, para começar, é importante que vocês tenham...

Tomei um susto porque ele interrompeu a frase no meio e logo imaginei que era para chamar minha atenção por estar de olhos fechados, mas ele parou de falar por causa do barulho que ecoou pela sala quando a porta se abriu. Essa dobradiça estava precisando urgentemente de óleo.

— E você seria quem? – perguntou o professor.

Ser chamado a atenção no primeiro dia de aula seria uma experiência bastante traumática para mim. Não pude deixar de me sentir aliviado por não estar naquela situação. Virei a cabeça meio que por instinto de curiosidade em saber quem era o infeliz.

Em um primeiro momento não consegui entender quem era. Eu via, mas não fazia ideia de como aquilo era possível.

— Leon – respondeu o garoto que não parecia nada intimidado.

Agora já tinha ficado mais claro, esse era o garoto do ginásio. O mesmo cabelo preto escorrido, o mesmo nariz reto e fino, a mesma voz de quem já passou pelo pior da puberdade. Inconfundivelmente era ele.

Do nada comecei a sentir uma falta de ar inexplicável. Cinco mil pensamentos diferentes passaram pela minha cabeça ao mesmo tempo. A impressão era de estar no meio de um sonho vívido, delírio ou qualquer coisa do gênero. Difícil acreditar que por uma ironia bizarra da vida o garoto do ginásio caiu justamente ali, a quinze metros de mim.

— Tente chegar no horário na próxima vez – disse o professor sem perder a compostura. – Hoje é o primeiro dia de aula, então fica o aviso para todos vocês— disse enquanto fazia um gesto dando a entender que falava para a turma toda.

Depois da comoção gerada por sua chegada, e que para mim pareceu durar muito mais do que realmente durou, fiquei observando Leon caminhar de cabeça erguida até uma cadeira no fundo da sala, sem a menor pressa.

Com toda certeza se aquilo tivesse acontecido comigo eu não receberia apenas um aviso. Você olhava para alguém como Leon, com aquele ar confiante, e não via motivos para puni-lo por um atraso. Já eu era exatamente oposto, sempre parecia perdido.

— É o novato do ginásio! – disse Ana, atestando o óbvio.

— É ele mesmo! E você viu como ele entrou? Nem se importou com o professor. Já imagina como é esse tipo – comentou Victor atrás dela.

Eu estava enjoado de uma forma que nem entendia. Bufei de impaciência e afundei a cabeça entre meus braços apoiados na mesa. Fim de jogo para mim.

Pode parecer estranho querer ficar longe de alguém que eu ache bonito, mas tinha uma lógica. Se não havia a menor chance de eu ter algo com ele, por que ficar me iludindo? Só para me sentir mal como já estava me sentindo?

Leon estar na minha turma significava que eu o veria sempre, um lembrete constante daquilo que eu não podia ter. E isso só podia dar em uma coisa: me apaixonaria feito pateta pelo garoto que não sabia meu nome.

Agora eu não tinha mais a desculpa de não poder ficar com ele pois não éramos da mesma turma. Era uma desculpa esfarrapada, eu sei, mas me ajudava a viver em negação pelo menos.  Agora nem viver em negação eu podia mais.

 

***

 

Sugeri a Victor e Ana que fôssemos até o lago na hora do intervalo. Queria estar em um lugar tranquilo, poder sentar e não ter que pensar em nada nem ninguém.

Eu estava deitado no colo de Ana que corria lentamente seus dedos pelo meu cabelo. Aproveitávamos a sombra de uma árvore bem grande, nos aliviando do sol que estava bem quente àquela hora. Olho para o lado e vejo Victor devorando o salgado que tinha comprado na cantina. Era impressionante o quanto ele comia e mesmo assim não engordava.

— Você tá bem quieto hoje, Eric – disse Ana.

Sua voz era calma. Permaneci calado, dando razão a observação. Ela então completou:

— Ainda desanimado com as aulas?

Eu realmente tinha estado um pouco para baixo ultimamente porque as férias estavam acabando e eu nem tinha feito tudo que queria fazer. No dia anterior, enquanto estávamos na praia, Ana conversou comigo e fez com que eu me sentisse um pouco melhor. Lembro dela dizendo que o ano estava só começando e que eu poderia fazer o que quisesse com ele desde que não ficasse parado reclamando. Era sem dúvidas um bom conselho, daqueles que são mais fáceis de falar do que de seguir.

Mas é claro que não era isso que tinha me deixado tão fora de mim. Meus pensamentos estavam em algo muito mais próximo. Eu me sentia um pouco aflito por Leon ter me desconcertado. Já estava acostumado com paixonites e afins, mas parecia que quanto mais velho eu ficava, pior era. E eu definitivamente não queria ser o estereótipo de adolescente dramático que fica chorando no quarto enquanto ouve música alta só porque não é correspondido pelo garoto que gosta.

Pensei até em dizer a verdade, Ana com certeza teria um conselho prudente para minha situação, mas eu não me sentia confortável falando dessas coisas com Victor por perto. Ana com toda a certeza já devia ter percebido que eu gostava de garotos, mas Victor não sacava as coisas com a mesma facilidade. Preferi então apenas desconversar.

— Não é nada demais – disse.

Não sabia se tentava convencer a ela ou a mim mesmo. Ela então fez uma pausa e perguntou:

— Tem a ver com o novato?

Desviei do olhar dela, o que era quase uma confissão. Ninguém que está dizendo a verdade foge com o olhar. Ana agora sabia com certeza.

— É sério, eu tô bem. Só cansado mesmo.

Viro para o lado e vejo Victor distraído com o próprio celular, não parecia nem ouvir nossa conversa.

— Tudo bem então. Vê se descansa hoje à tarde.

Ela não pareceu convencida, mas pelo visto percebeu que eu não queria falar do assunto e terminou por ali. Agradeci mentalmente sua capacidade de entender o que está nas entrelinhas. Definitivamente nem todo mundo é assim.

 

***

 

Nas aulas seguintes até prestei atenção no que Leon fazia, mas, de fato, não era muita coisa. Ele às vezes conversava com um garoto à sua frente, parecendo que já eram amigos há muito tempo; em outros momentos ficava checando algo no celular e uma vez até chegou a escrever no caderno. Me sentia um verdadeiro stalker pois não conseguia ficar mais de trinta segundos sem olhar na direção do garoto.

Foi um alívio de verdade quando o sinal da saída tocou. Geralmente primeiros dias de aula não eram os meus favoritos, mas aquele com certeza excedeu as expectativas. Só queria o meu quarto, minha cama e tranquilidade. Talvez amanhã as coisas estivessem melhores. Eu podia ao menos torcer por isso.

Em casa tudo correu dentro da normalidade esperada. Cheguei, guardei minhas coisas, tomei um banho, esquentei o almoço.  Nesse meio tempo, Ana mandou uma mensagem no celular, mas não abri para ler.  Eu merecia ter o resto do dia para mim. Deitei na cama, fechei os olhos e quando acordei me dei conta que já era de noite lá fora.

 

***

 

A terça tinha tudo para ser melhor, mas não foi. Leon estava muito mais à vontade na turma – se é que isso era possível – e encontrou seu grupo. Ele não desgrudava de Julian e Pedro, dois garotos que eu já conhecia há tempos. Ambos sempre estavam na detenção e Julian já tinha sido até suspenso no ano passado. Leon ter se juntado a eles dizia muito sobre sua personalidade. Definitivamente éramos muito diferentes.

— Abram o livro na página 19. Cada um lê um parágrafo.

Era aula de geografia e até que não era das piores. O professor, o mesmo do ano passado, era um baixinho, de cabelo ralo e que usava óculos. Só que ele era bem simpático e a matéria era interessante. Ainda assim, eu só conseguia sentir cansaço por todo o meu corpo. Aproveitei a hora em que o professor mandou que fizéssemos os exercícios do capítulo para ir até sua mesa e pedi para beber água.

— Claro, Eric. Pode ir.

Ele era mesmo um cara legal. Quem dera todos os professores daquela escola fossem assim. Mal saio da sala e ouço alguém me chamando:

— Ei, Eric! – era a voz do Gabriel.

Ele era um garoto que também morava no meu prédio. Era um dos meus amigos mais antigos e estávamos sempre juntos quando éramos crianças. Na verdade, o trio original era eu, Gabriel e Victor. Nem conhecia Ana naquela época. Só que um dia Gabriel e Victor tiveram uma briga incrivelmente estúpida e nunca mais se falaram. Sobrou então para mim que tive que escolher um dos lados pois eles simplesmente não suportavam ficar perto um do outro sem brigar. Continuei então amigo do Victor e por isso não via mais tanto o Gabriel. Ainda assim, às vezes a gente se esbarrava por aí.

 – Tá tudo bem contigo, cara?

Balancei a cabeça afirmativamente, mas meu desânimo era evidente.

— Eu tô bem. Só tô um pouco cansado. E aquele ar-condicionado da sala não ajuda. Dá sono demais...

— Sei como é! Tenho que ir no banheiro toda aula só pra não ficar dormindo de boca aberta na cadeira.

Gabriel fez uma imitação do que seria ele dormindo de boca aberta na cadeira e nós dois rimos com aquela. Ele disse “a gente se fala”, dei um soquinho no meu ombro e seguiu em direção a sua própria turma.

Era uma pena não poder conversar por mais tempo com ele. Às vezes parecia que Gabriel era a pessoa que melhor me entendia no mundo. Fico imaginando o que diria se soubesse que eu gostava do Leon. Provavelmente contaria uma experiência que ele próprio teve e que acabaria fazendo eu me sentir menos pior.

Mas isso era só eu imaginando coisas. Era estranho ficar criando uma conversa hipotética dentro da minha cabeça, mas eu estava estranho. E tinha que parar de pensar no Leon antes que ficasse louco de vez.


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Notas finais do capítulo

Valeu por ler. Qualquer coisa deixa um comentário. Obrigadooo



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