E Então Ele Apareceu escrita por dragkos


Capítulo 1
Seis e Quinze


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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O sol já invadia a janela do meu quarto quando o barulho irritante do despertador me acordou. É final de fevereiro, primeiro dia de aula após as férias de verão. Não faço ideia de que horas são e por isso volto a fechar os olhos. Acordar cedo é praticamente uma batalha contra você mesmo. Fico um tempo nesse jogo de acorda-não-acorda até aparecerem na porta do quarto.

— Tá na hora, Eric! Senão daqui a pouco tenho que trazer o balde de água – falou minha mãe.

— Não, não... Só mais um pouco – falei baixinho rolando para o outro lado da cama.

Obviamente primeiros dias são coisas importantes. As férias haviam oficialmente terminado e a partir de agora não iria me sobrar mais muito tempo para fazer o que gosto. E todo ano era a mesma história. De um jeito ou de outro, nos acostumamos.

— São 06:15. Só para de enrolar com isso! – insistiu ela.

Tive que me forçar a levantar da cama por total falta de opção. Então me dei conta que estava muito atrasado. Tinha marcado de encontrar com Ana e Victor na frente do prédio para irmos juntos à escola. Os dois odiavam ficar esperando, mesmo que fosse por alguns minutos.

Abri o armário e tentei achar o uniforme do colégio em meio a um amontoado de roupas bagunçadas. Tarefa difícil.

— Em cima da cômoda. Separei pra você ontem – minha mãe diz calmamente, ainda me observando.

— Valeu, mãe! Pode ir agora...

— Qual o problema? Tem vergonha de se trocar na minha frente? – diz ela em tom de brincadeira.

— Mãe! Por favor! Eu tô atrasado— respondi impaciente enquanto fazia um gesto com as mãos para que ela saísse.

Quem não conhece pode até me achar uma pessoa complicada, mas isso não era minimamente verdade. Sou bem mais comum do que gosto de admitir. Meu nome é Eric, um garoto de quinze anos de idade e com algumas espinhas na cara. Filho mais velho de uma família de classe média que odeia ser o primogênito pois sempre é responsável por tudo que os irmãos fazem.

Na minha vida escolar também não havia nada fora do comum. Tinha meus amigos e era só. Não estava entre os mais populares da turma e muito menos era chamado para as festas que aconteciam nos fins de semana. Minhas notas eram razoáveis, porém nada excepcionais. Odiava a palavra mediano, mas essa com certeza é a que melhor me define.

— Meu relógio! – lembrei dele e imediatamente o tirei da gaveta.

06:18. Tinha marcado com os meus amigos há três minutos atrás. Vesti o uniforme e fui escovar os dentes.

Dentes limpos, só faltava o cabelo. Meu desânimo era evidente através do espelho. Os olhos azuis-escuros estavam quase fechados devido ao sono. Tinha dias em que me sentia bonito, em outros nem tanto. Esse era um dos dias “nem tanto”, mas acho que isso acontece com todo mundo.

Meu cabelo é loiro escuro, parecido com a da minha mãe. Nesse aspecto eu era bem diferente dos meus irmãos com cabelo castanho igual do meu pai. Tentava sempre deixá-lo um pouco caído para frente, assim cobria a minha testa que eu considero grande.

Estava mais ou menos decente, o que era bom o bastante para mim. Peguei a mochila na cama e saí do quarto. Já estou na metade do caminho até a porta de casa quando encontro meus pais e meus irmãos tomando café na mesa de jantar.

— Eric, senta um pouco. Você tem que comer alguma coisa – disse minha mãe.

O jeito com que me olhava deixava claro que aquele “tem que” não era uma sugestão. Mães são sempre assim, mesmo quando aparentam ser agradáveis. Geralmente eu preferia não ter que discutir com ela, mas hoje não tinha jeito.

— Não dá mesmo, mãe. A Ana e o Victor tão me esperando. Eu como alguma coisa na escola. Prometo!

Olho uma última vez no relógio. 06:21. Victor ia mesmo me matar.

 

***

 

Enquanto o elevador desce, fico encarando meu reflexo no espelho. A luz forte deixa eu ver umas sardas bem leves salpicadas na altura do meu nariz que contrastavam com a minha pele. E ela nem estava tão branca quanto de costume.

 No dia anterior eu tinha ido à praia com Ana e Victor, aproveitar o finalzinho das férias. Acabei ficando com um aspecto meio corado natural de sol. Até que não estava nada mal.

— Que demora! – resmungou Victor – Já tava achando que não ia pra aula.

— Quem dera... Minha mãe nunca deixaria. Se precisasse, ela me levava amarrado mesmo.

Nós três sempre estávamos juntos. E quando eu digo sempre, é sempre. Victor me conhecia desde os meus oito anos, época que me mudei para o prédio. Ele tem dezesseis, mas estávamos na mesma turma pois Victor repetiu uma vez. Ele adora esportes e comida e geralmente são esses os tópicos das nossas conversas. Seu cabelo é castanho e ligeiramente cacheado. Vive bagunçado, mas de um jeito bonito. Tem um metro e setenta e cinco, só três centímetros mais baixo do que eu. Mesmo assim, eu sempre implicava com ele o chamando de baixinho.

Já Ana mora no prédio em frente ao meu. Eu sei que as pessoas às vezes usam “em frente” para coisas que nem estão tão próximas, mas no caso é literalmente em frente. Bastava cruzar a rua.

 Nos conhecemos há quatro anos, na escola. De cara notei que ela era bem diferente das outras meninas que só sabiam falar de roupas e garotos, por isso não era surpresa nenhuma que seus dois melhores amigos fossem homens. Ela sempre vai na minha casa jogar videogame e é bem melhor que o Victor nisso. Meus pais a adoram, mas eu já os havia desiludido dizendo que ela é só minha amiga e que eles não deviam criar esperanças por ali. Os garotos da nossa turma às vezes me pediam ajuda para tentar se aproximar dela, o que era um porre. Não sou mensageiro de ninguém.

Ana tem um desses rostos delicados, boca fina, e bochechas salientes. Ainda assim, sempre parecia bem decidida das coisas. Seu cabelo possui uma cor meio castanho avermelhada e é bem volumoso. Ana não fazia questão de deixa-lo liso e confesso que gostava disso nela. Sua beleza era bem natural, diferente das garotas cheias de maquiagem da escola

Apesar de não ser tão alta, ela tinha crescido um pouco desde que nos tornamos amigos. Já não era mais a pirralha que eu havia conhecido, mas juro que é muito difícil vê-la como mulher.

— Vamos? – Victor pôs instintivamente a mão sobre o meu ombro.

— Ah! Não faz isso! – reclamei fazendo uma careta de dor.

— Você ficou com a pele ardida por causa de ontem? – perguntou Ana.

— Só um pouco. Nada demais.

— Eu te disse para usar o filtro solar mais forte, mas você me escutou? Não, é claro que não!

Esse é o tipo de coisa mandona que Ana fala. Ela meio que nos coloca limites, não nos permitindo fazer burrices muito grandes. Mas eu e Victor não achávamos isso ruim, muito pelo contrário. Ela é sem dúvidas a pessoa mais inteligente que eu conheço e uma coisa bastante inteligente a se fazer é escutá-la.

Nossa cidade não é nem muito grande, nem muito pequena. Se estende pela costa do mar, o que faz com que tenha várias praias. Esse é o lugar onde as pessoas da minha idade gostam de socializar. Até por isso, não é onde eu mais gosto de ir, mas Victor e Ana sempre conseguiam me arrastar junto.

De qualquer jeito, já não era mais hora de pensar nessas coisas. Agora que as férias haviam acabado, só ia me restar preocupações e estresse. Dormir cedo e acordar ainda com tudo escuro lá fora. Gastar noites inteiras em trabalhos intermináveis. Quem não ficaria ansioso por isso?

 

***

 

Nós três estávamos de pé em frente à entrada da escola. Eu contemplava o cenário a minha frente com pouca vontade. Queria que alguém me carregasse até à sala de aula. Meus pés simplesmente se recusavam a andar.

O barulho que se formava no local era um pouco alto para a hora da manhã. As conversas animadas corriam soltas entre meus colegas que se reencontravam e trocavam histórias de férias. Até queria estar no mesmo clima de entusiasmo, mas para mim não acontecia.

— A gente vai ficar parado aqui o dia todo? – perguntou Victor.

Esse garoto não conseguia esperar por absolutamente nada.

— Se quiser entrar, pode ir. Tô aproveitando meus últimos momentos de liberdade – respondi.

É uma ótima escola, sem dúvidas, e as pessoas que estão ali refletem isso. A maior parte dos alunos vem de famílias com um padrão razoável de vida, às vezes melhor do que o da minha. Não que eu pensasse muito nisso, mas não gostava de ver um garoto qualquer desses se sentindo o máximo só porque tinha pais com dinheiro e que não impunham limites. Havia muita gente idiota por ali, mas isso não era uma regra. Ana e Victor certamente não eram assim, por isso éramos amigos.

— Anda, Eric! Eu quero comer alguma coisa antes da aula. Mais cedo ou mais tarde a gente vai ter que ir mesmo! – insistiu Victor.

— E quem disse que a gente tem que ir pra aula? Podemos muito bem dar meia-volta e sair daqui. Duvido alguém impedir.

Ana não pode conter o riso.

— Sério? Nem em um milhão de anos você teria essa coragem, Eric. O Victor talvez..., mas você?

— Eu nunca precisei disso, mas eu mataria aula sim.

— Tudo bem, “Senhor Matador”, mas hoje não é dia pra arrumar problemas. Você vai acabar chamar muita atenção. Amanhã a escola ainda vai estar aqui e você vai poder matar sua aula à vontade.

Bufei de impaciência ao perceber que não teria outro jeito a não ser aceitar a situação.

— Vocês são certinhos demais! Preciso de amigos novos...

— Boa sorte com isso – disse Ana sorrindo.

Os dois obviamente sabiam que eu não estava falando sério. Qualquer um que nos conhecesse facilmente percebia que o mais “certinho” dos três ali era eu.

 

***

 

Após entrarmos, não demorou muito para anunciarem nos alto-falantes que todos os alunos deveriam se dirigir ao ginásio onde seria feita a cerimônia de recepção de início de ano.

— Droga, eu tinha esquecido dessa merda – falei. – Vai ser a mesma coisa de sempre. Os professores e o diretor falando sem parar e os alunos não dando a mínima. Essas orientações só servem para tirar o deles da reta. Ou alguém acha mesmo que isso previne bullying?

— E você prefere ter aula? Pelo menos lá ninguém se importa se você tá prestando atenção ou não – replicou Victor.

Fomos então até o ginásio que ficava na parte de trás da escola. Uma caminhada de cinco minutos que pareceu durar muito mais. Todos já começavam a chegar e ocupar seus lugares na arquibancada.

Ana apontou para uma fileira bem à meia altura e nos sentamos. No degrau de baixo haviam uns seis ou sete alunos que pareciam conversar de um jeito bem animado. No meio deles tinha um garoto que parecia ser o centro das atenções.

— Mas não queriam deixar a gente sair de lá! Eu juro... Juro mesmo que é verdade!

Dava para ouvir claramente o que ele dizia por causa da proximidade e do fato dele falar um pouco alto demais. Imaginei então que o garoto tinha contado uma história engraçada já que as pessoas ao seu redor estavam rindo.  Victor e Ana se entreolharam, curiosos com a cena.

— Quem é ele? – perguntou Victor.

— Nunca vi por aqui. Deve ser algum aluno novo – respondeu Ana.

— No primeiro dia de aula e já conhece todo mundo? – pergunta Victor.

— Pra algumas pessoas é mais fácil se enturmar – diz Ana.

— Como se eu não soubesse disso – retruca Victor.

Deixei de ouvir a conversa dos meus amigos e voltei minha atenção ao que acontecia mais abaixo. Havia algo de diferente naquele garoto. Eu tinha certeza disso, mas não consegui perceber de imediato. Era inquietante.

Claro que a beleza dele foi a primeira coisa que me despertou atenção. A pele morena bronzeada combinava perfeitamente com o jeito despojado e extrovertido com que se expressava. Os olhos castanhos pareciam brilhar de excitação a cada final de sentença de suas falas. Tinha o corpo torneado, mas não era muito magro, com certeza devia praticar esportes e coisas do tipo. Ou então tinha uma genética muito boa para ter braços fortes como aqueles.

Quando abria a boca tudo parecia espontâneo e empolgante. Dava vontade de ser amigo dele na mesma hora. Notei até um leve sotaque, mas não sabia dizer de onde era. Poderia facilmente ficar o dia todo ouvindo sua voz e não iria enjoar.

O tal garoto fez um gesto com a cabeça como se dissesse “sim” e o cabelo negro e liso que cobria suas orelhas balançou junto. Ao mesmo tempo em que parecia alguém confiante, demonstrava ser bastante simpático. Não dava para negar que era uma combinação agradável.

— Você tá ouvindo o que a gente tá falando, Eric? Pra onde sua mente viajou dessa vez? Marte? – disse Ana, estalando os dedos na frente do meu rosto como se me acordasse de um transe.

Pisquei os olhos duas vezes.

— É só o sono. Falta de costume de acordar cedo... – tentei disfarçar bocejando.

Senti que minhas bochechas haviam ruborescido. Não sei se era de vergonha por estar secando o garoto ou por ter sido pego fazendo isso, mas Ana com toda a certeza notou. Ela era bem detalhista.

Já fazia um certo tempo que eu sabia que pertencia ao time dos garotos que preferem outros garotos ao invés de garotas. Por mim, estava tudo bem, simplesmente é como eu sou. Porém isso não significava que estava preparado para compartilhar isso com os outros, ao menos não por enquanto.

Essa questão era clara como o dia para mim. No minuto em que outras pessoas soubessem sobre minha sexualidade, passariam a me enxergar como uma pessoa completamente diferente do que eu era. Então eu seria definido única e exclusivamente pela minha sexualidade. Gostava de jogos de RPG, espaguete à bolonhesa e astronomia, mas nada disso ia ter a menor relevância. Eu seria apenas o garoto gay e acabou.

Claro que eu tinha consciência de que isso era muito injusto, mas não é como se o mundo fosse parar de girar por minha causa. Eu é que tenho que me adaptar se quiser sobreviver. E isso às vezes significava ter que esconder coisas que eu não via necessidade de esconder.

— Bom dia a todos!

O diretor tinha subido ao pequeno palco montado no meio da quadra e se posicionou por trás do púlpito de onde começou um discurso. Olhei para baixo e novamente vi o garoto dos cabelos negros. Ele agora estava quieto e parecia menos interessante assim. Acabei me deixando levar pelos meus pensamentos outra vez.

Eu tinha que admitir. Logo no primeiro dia de aula conheci um garoto que me desconcertava. Não era o que eu queria, mas ao menos estava orgulhoso da minha honestidade. Não mentir para si mesmo é o primeiro passo para lidar com paixonites e outros tipos de vícios.

Era uma completa bobagem perder tempo pensando nele. As chances mais realistas eram de que nós nunca sequer trocássemos uma palavra. Com um pouco de sorte, talvez o visse pelo corredor umas duas ou três vezes ao longo do ano.

Quero dizer, a escola tem mais de 800 alunos. Mesmo que ele também estivesse no segundo ano, provavelmente seria da turma A ou C e eu da B. Sendo sincero, poderia chegar até ao extremo e imaginar que estivéssemos na mesma turma, ainda assim não seríamos amigos. Não tínhamos nada em comum. De onde surgiria algo então?

Já tive minha cota de paixões platônicas antes – geralmente duravam um par de semanas – e tudo que eu não precisava agora era de outra futilidade do tipo. Essas coisas só serviam para tirar minha atenção dos estudos e logo minhas notas iriam começar a cair. É óbvio que esse é o tipo de coisa que ninguém deseja. Todo esse raciocínio fazia bastante sentido na minha cabeça, mas isso não tornava a situação mais fácil. Não mesmo.


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Notas finais do capítulo

Obrigado por ler!



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