De pedra e vidro escrita por Beatrice Vitanuova


Capítulo 4
Inventário




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I.

Naquele final de tarde, tendo terminado seus afazeres e ainda distante da hora do jantar, Lord Tyrion caminhava despreocupado pelo corredor que levava aos aposentos de Sor Brienne de Tarth,  Comandante da Guarda Real. Vinha seguido por seu novo criado, a quem ele chamava  ironicamente de escudeiro. Tratava-se de um rapaz magro, de modos solenes, muito calado, e que contrastava incrivelmente com o jeito irreverente do amo. O escudeiro carregava uma enorme cesta com vinhos de Dorne, licores finos , amêndoas glaceadas e geleias de frutas.

Brienne de Tarth não havia participado das duas últimas reuniões do conselho.  Andara ocupada, treinando os novos membros da Guarda. Tudo sob uma chuva intensa. Tendo uma compleição atlética e excelente saúde, na hora não sentira nada. Pouco depois, começara  a espirrar, tossir e ter calafrios. Acordara febril e por recomendação expressa de Sam Tarly, agora devia permanecer recolhida, com alimentação reforçada e repouso.

A Mão do rei se permitira interpretar livremente a boa alimentação, resultando naquela bela cesta  onde bebidas para adultos contrastavam com guloseimas inocentes. Esperava que Sor Brienne gostasse, ainda que não contasse com nenhuma manifestação efusiva de gratidão. Ela era sempre educada, mas sem exageros. Agora, ela jamais falava de assuntos pessoais em sua presença.

Mas, de algum modo que lhe seria difícil definir, Tyrion Lannister sentia que lhe devia certa consideração. Brienne era o tipo de pessoa a quem todos tinham em alta conta. Ela realmente possuía a capacidade de realizar feitos notáveis de forma eficiente, sem fazer alarde. As pessoas que sentiam poder contar com ela, de algum modo se sabiam amparadas. Mas essa capacidade de amparar, servir e proteger não lhe era devolvida na mesma moeda. Não porque não gostassem dela, mas porque ela dava a impressão de viver bem sem a ajuda dos outros, sem relações próximas e amizades efusivas. As únicas pessoas que ele sentia que ela havia permitido que se aproximassem eram Sansa Stark, Podrick Payne e seu falecido irmão Jaime.

O envolvimento entre Brienne e Jaime suscitara falatórios e suposições depois da  Batalha contra os Mortos. Mas a fuga de Jaime para King’s Landing, os modos glaciais de Sansa Stark calando os curiosos e a simplicidade desamparada que emanava de Brienne de Tarth fizeram com que o ocorrido caísse no esquecimento. Tyrion era grato por isso. Apesar da generosidade das palavras que Sor Brienne de Tarth empregara para completar a folha de serviços de Sor Jaime Lannister no Livro Branco, Tyrion não podia deixar de sentir uma ponta de vergonha. Nada do que ela escrevera era mentira, mas aquela  gentileza sem rancor era quase incompreensível para um Lannister. Se Jaime lesse aquelas palavras, ficaria aniquilado.

Quando se aproximaram da porta do apartamento que ela ocupava, Tyrion Lannister ouviu vozes animadas, mas não conseguiu descobrir de quem se tratava. O criado bateu com  alguma dificuldade, pois a cesta era enorme e havia muitos potes e garrafas que ele receava quebrar. A cara despreocupada de Sor Podrick Payne veio receber os recém-chegados. Obviamente Sor Brienne estava com visitas.

Ao ser introduzido na alcova da convalescente, Tyrion ficou surpreso. Ela estava sentada no leito, recostada na cabeceira da cama sobre dois grandes travesseiros. Vestia uma camisola de linho branco, sem enfeites, mas seu cabelo louro ordinariamente penteado para trás, agora estava solto, livre, em volta do rosto,  o que destacava as sardas de seu nariz. Isso tudo lhe conferia  um aspecto inesperadamente feminino e quase corriqueiro.

Tyrion Lannister viu que Sor Bronn da Água Negra, o Mestre da Moeda, estava comodamente instalado em um escabelo, perto da cabeceira da doente. A impressão é estavam todos três conversando amigavelmente, até a entrada de Tyrion impor uma certa formalidade ao ambiente.

Para a surpresa e indignação de Tyrion, o Mestre da Moeda se antecipara e trouxera consigo não uma, mas duas enormes cestas de palha, forradas com vistosos panos de linho bordados. Uma continha frutas da estação e geleias variadas; a  outra exibia  garrafas de mel, bem como uma profusão de confeitos e biscoitos. Ali havia uma enorme quantidade de coisas saborosas e a dúvida que assaltava a mente de Tyrion Lannister era a razão de tanta solicitude.

O escudeiro depôs a cesta perto de Sor Brienne. Ela deu um sorriso agradecido e corou. Era muito tímida. Sor Bronn lançou um olhar crítico às garrafas de bebida dispostas na cesta.

—A Mão do rei toma bebidas fortes quando está febril?

Tyrion Lannister nem pestanejou.

—Sempre. Faz suar e a febre some como que por encanto.

—Pensei que os chás tinham esse efeito.-alfinetou, Sor Bronn.

—É possível. Mas por que não juntar o útil ao agradável, meu caro?

Sor Bronn não parecia disposto a se mover dali. Cerca de meia hora depois, chegou a criada com o caldo da doente. Os três se retiraram. Sor Podrick deixou-os no corredor e seguiu para os aposentos do rei.

Assim que ele desapareceu, Lord Tyrion resmungou:

—Homem, eu não estou entendendo. Há um ano atrás você saiu da nossa primeira reunião do Conselho, reclamando horrores de Davos Seaworth e de Brienne de Tarth. Chamou-a até  de hipócrita, por ser a favor da restauração da frota em detrimento da reconstrução dos novos bordéis. Agora, pego você, todo solícito, trazendo guloseimas para a mulher a quem vivia criticando. Como pode ser tão falso, Sor Bronn da Água Negra?

Sor Bronn não se abalou com as recriminações de Tyrion. Gabava-se intimamente de conhecer o repertório Lannister de cabo a rabo, incluindo Lord Tywin e a rainha Cersei, com quem nunca havia convivido, mas cujas personalidades julgava-se apto a reconstituir a partir do que percebera em Jaime e Tyrion. Uma família de tratantes, pessoas complicadas, que se julgavam acima dos demais. Mas assim mesmo, tinham o seu encanto.

—Foi um julgamento apressado. Sor Brienne é uma ótima pessoa. Estreitamos amizade. Amizade sólida, permanente, ouso afirmar.

Tyrion deu uma risadinha seca.

—Ela já sabe que você é amigo dela?

Sor Bronn ignorou a ironia.

—Claro que sabe. Já tratamos com o rei e no verão ela deve me acompanhar até à Campina, na ocasião em que eu for pedir Lady Elinor Redwyne em casamento. Ficará mais fino, muito respeitável, afinal você sabe que o que restou da minha família não causaria boa impressão.

Tyrion não deixou passar em braco a manobra.

—Ora, que ingratidão. Eu lhe dou a Campina e você convida Brienne de Tarth para apadrinhá-lo.

Sor Bronn fez uma cara compungida.

—Não posso convidá-lo, meu caro. Sua fama de devasso ainda perdura. Quero causar boa impressão. A menina Redwyne é um encanto...

—Quantos anos tem essa moça?

—Uns quinze ou dezesseis. Não tenho certeza.

—Coitada...

—Vai se casar com um partidão...

—E como convenceu Sor Brienne a acompanhá-lo?

Bronn olhou para o amigo como se olhasse para uma criança.

—Ela é bem intencionada, trabalha duro. É a pessoa mais honrada que eu conheci. Apesar de ter dormido com o seu irmão...

Tyrion Lannister fechou a fisionomia. O tom brincalhão se desvaneceu por completo.

—Nunca mais toque nesse assunto.

Bronn não se abalou. Falou normalmente, sem deixar transparecer o menor tom de ironia.

—Estou falando baixo e entre nós, meu amigo. É uma boa mulher. Ela, inicialmente, não é o tipo de ninguém. Porém, tem tantas qualidades, que certas coisas se tornam compreensíveis.

—Do que está falando?

—Eu hoje entendo porque o seu irmão a amava. Porque quis dormir com ela mesmo sendo feia, essas coisas complicadas...

—Você, não entende nada. Ele não a amava. Era a Cersei que ele amava. Ele a abandonou... Eu sinto vergonha até hoje. Ela é uma boa mulher, sim. Digo até que é excelente.

—Seu irmão era um tanto  limitado, Tyrion.  Tinha um bom coração mas era fraco de personalidade. Mas com certeza ele gostava dela. Como poderia não gostar? Ele se reinventou por causa dela. Ou você acha que ele foi para o Norte lutar, por que motivo?

Tyrion já havia pensado naquilo. Mas não fazia sentido.

—Eu tive uma última conversa com ele, quando fui soltá-lo. Ele só falava em Cersei, no filho que eles estavam esperando, em fugir com ela para algum lugar. Falou que nem ligava para o que acontecesse com o povo da cidade. Aquele compromisso com a humanidade que o fizera lutar pelos vivos desaparecera. Não tocou uma só vez no nome de Brienne.

Bronn não parecia convencido. 

—A irmã de vocês era o vício dele. Ela o subjugava. Você acha que em caso de fuga, ela teria se contentado em levar uma vida simples e anônima, ao lado de Jaime e do filho? Supondo que o tal filho existisse. Claro que não. Iria querer se vingar. Tentaria recuperar o que perdeu. E, continuaria tiranizando a vida dele. E aí ele se sentiria desgraçado, por ter virado as costas à primeira mulher que o fizera amar de forma sadia.

—É certo que mesmo que fugisse, Cersei não sossegaria. Mas ele era tão...

—Submisso?-completou Bronn.

—Sim. Ele era submisso a maior parte do tempo. Mas mesmo assim ele salvou minha vida, lutou pelos vivos e parece ter sido bom com Brienne, pelo menos por algum tempo. Antes de arruinar tudo.

—Lord Tyrion, tão importante ou mais quanto o que dizemos, é o que nós calamos. Jaime arruinou mais a si mesmo do que a ela. 

Tyrion sentiu-se melancólico. Sentiu uma absurda falta de Jaime naquela hora. Falta de poder amar o irmão. Talvez a necessidade de ser gentil com Brienne  fosse porque ela era o que restara dele.

—Essa conversa me deixou melancólico. Vamos tomar um vinho para descontrair, Sor Bronn da Água Negra. O senhor me deu muito no que pensar.

 

II.

Em seu quarto, Brienne de Tarth entregou a tigela vazia do caldo à  criada. Começou a folhear um livro que Sam Tarly lhe emprestara na véspera. Dez minutos depois, dormia serenamente.

FIM


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