Café e Livros escrita por oicarool


Capítulo 1
Capítulo 1




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Aquela rua pacata, no Vale do Café, era uma das únicas que mantinha paralelepípedos. Lembrança de outros tempos, muito antes do crescimento da cidade, quando a única referência dali era a produção de café. Com o passar dos anos surgiram fábricas, a cidade dobrou de tamanho, então triplicou e hoje em dia era considerada uma das maiores o estado de São Paulo. Mantinha como principal produto o café, mas não era incomum que os estabelecimentos servissem cafés industrializados no lugar dos produzidos na região.

Por muitas décadas os únicos estabelecimentos comerciais da rua foram um mercado, uma farmácia e uma casa de chá. Agora a maioria das casas antigas dava lugar à prédios, e havia uma academia na esquina, um pet shop e uma clínica de estética. E, mais recentemente, o prédio onde funcionava a casa de chá, uma das únicas antiguidades da rua, dera lugar a um estabelecimento que levava o nome de “Café e Livros”.

A fachada agora era preta, com detalhes e escrita em uma cor mostarda de gosto duvidoso. Do lado de dentro, porém, o cheiro de café moído na hora tomava conta, havia livros novos e um setor destinado aos de segunda mão, uma série de mesas para o consumo, alguns sofás para a leitura, e quase todas as paredes possuíam uma combinação de mesas para consumo com sofás aconchegantes.

Elisabeta Benedito tinha uma daquelas como lugar cativo. Aos vinte e cinco anos, Elisabeta morava no prédio em frente ao Café, com duas de suas irmãs mais novas, Jane e Cecília. Eram as moradoras da cobertura, porém, a despeito de cada uma ter o seu quarto, havia um consenso geral de que a produtividade de seus trabalhos e estudos era muito baixa naquele apartamento. E, quando o Café abriu, tornou-se a solução perfeita.

Era aconchegante, tinha café fresco e um preço decente, e ficava à poucos passos de casa. Elisabeta chegava todos os dias por volta das cinco horas da tarde e era comum que fosse a última cliente a ir embora, às nove e meia da noite. Durante o dia se dedicava à seu trabalho em um escritório de advocacia e às aulas de mestrado, e durante a noite tentava se dedicar aos estudos.

Filha mais velha de um dos grandes produtores de café da região, Elisabeta talvez não precisasse se dedicar tanto. Nenhuma das cinco filhas de Felisberto e Ofélia precisariam. A fortuna do pai era o suficiente para bancar o apartamento em bairro nobre, as viagens internacionais anuais, o intercâmbio de Lídia, a irmã mais nova, e também ajudar nas despesas de Mariana, que estudava na Europa. Ainda assim, enquanto os pais moravam na fazenda, as três Benedito remanescentes dedicavam-se aos estudos.

Elisabeta era uma advogada em início de carreira. Tinha o grande sonho de ser promotora pública, mas isso exigia dedicação e experiência. Era por isso que dividia seu tempo daquela forma. Precisava trabalhar, precisava concluir o mestrado, e, mais do que tudo, precisava estudar o suficiente para manter seu sonho vivo. E se havia uma característica na mais velha das Benedito, era a determinação.

E era por isso que ela chegava na mesma hora, ligava o notebook, assistia à aulas, fazia anotações, as vezes levava pesados livros. Havia sempre uma caneca de café aguardando por ela, e Elisabeta poderia apostar que parte da bebida servida era oriunda da produção de orgânicos de seu pai. O Café, portanto, era um dos locais preferidos de Elisabeta e de suas irmãs.

Naquela noite fria e chuvosa de terça-feira, sua rotina permanecia igual. O relógio já marcava mais de oito horas da noite, e geralmente o movimento diminuía naquele horário. Era como Elisabeta geralmente percebia que estava na hora de ir embora. Pagava o seu consumo, e voltava para casa. Mas uma olhada no relógio mostrou que ainda faltava muito para o café fechar.

Elisabeta olhou ao redor, percebendo que todas as mesas estavam vazias e não havia qualquer movimento na livraria. Seu movimento chamou atenção do homem alto que estava ocupando uma das mesas próximas ao caixa, e Elisabeta viu quando ele retirou os fones de ouvido e levantou-se. Ele usava uma camisa de um tom escuro de azul, calças jeans também escuras. Usava óculos discretos e seu rosto tinha uma barba por fazer.

— Posso ajudá-la? – ele disse, com um sorriso simpático. – Mais um café?

Elisabeta olhou para o homem, percebendo que o conhecia. Encarou o tórax dele rapidamente, à procura do avental mostarda, sem sucesso. Ainda assim, o homem já estava com um pager nas mãos. Elisabeta quase não reparava nos funcionários, mas aquele havia chamado sua atenção meses atrás, ao menos até o momento em que a aliança brilhou em seu dedo anelar esquerdo. Não recordava seu nome, porém.

— Eu acho que quatro canecas foram suficientes. – ela deu de ombros, encarando a caneca vazia.

— Uma torta de chocolate, de repente? – o homem manteve o sorriso.

— Acho que eu também não deveria. – Elisabeta sorriu. – Mas eu gostaria de uma água com gás.

— Limão, sem gelo? – ele arriscou.

— Por favor. – Elisabeta deu um sorriso agradecido, recolocando os fones e apertando o play da continuação de sua aula.

Darcy Williamson assentiu, virando as costas para buscar o pedido. Manteve o sorriso, imaginando a expressão de irritação que Ernesto deveria fazer toda vez que B1, como o funcionário se referia à ela, ficava até tarde no Café, mesmo quando Darcy autorizava que fechassem mais cedo. Darcy suspeitava, inclusive, que aquele era um dos motivos para que Ernesto implorasse para trocar de turno com ele.

E, apesar de ser o dono do lugar, a vida de Darcy estava entediante o suficiente para aceitar. Nos últimos dez dias, portanto, acordava às oito e trinta da manhã, três horas e meia depois do habitual dos últimos anos. Chegava ao café após o almoço e ia embora quando o último cliente – B1 – deixava o estabelecimento. Estava se adaptando à nova rotina, e já convicto de que precisava daquela mudança.

Não havia mais motivo para acordar às cinco horas da manhã. Acordava com o despertador, e não com a babá eletrônica ou o choro do filho. Não precisava preparar o café da manhã para a esposa antes do trabalho, e também não havia grandes motivos para estar em casa mais cedo. Theo não voltaria da creche, ao menos não naquela cidade, não para a casa dele, e não havia motivo para preparar o jantar.

Mal podia acreditar que já fazia seis meses desde a separação. Não sofria pelo fim do casamento. Fora a melhor decisão para ele e Ema, mas não esperava que ela fosse voltar para sua cidade natal. Agora o filho de três anos, que era a grande paixão de Darcy, ficava duas horas distante, e precisava adaptar-se à vê-lo apenas aos finais de semana ou em ligações por vídeo.

Estar no Café, portanto, era tudo o que restava. Era seu sonho transformado em realidade há pouco mais de um ano, e Darcy sentia-se grato por poder estar ali. E B1 era uma cliente assídua. Chegava quase no mesmo horário todos os dias, optava pela mesma mesa sempre que estava disponível, e parecia em seguida entrar em outro mundo, quase sem perceber o que acontecia ao seu redor.

Darcy sabia que ela se chamava Elisabeta, e que era a irmã mais velha de Jane e Cecília. Sabia que ela frequentava o café tanto quanto as irmãs, e já havia atendido Elisabeta algumas vezes, durante o horário noturno. Além disso Ernesto costumava manter todos os funcionários do café informados pelo grupo do what`s app, quando sua irritação por não conseguir fechar mais cedo falava mais alto do que a simpatia.

Elisabeta pedia um café preto médio, e nunca o adoçava. Era como suas irmãs também preferiam seu café, e Darcy suspeitava que seria algum tipo de heresia que as filhas de Felisberto Benedito adoçassem a bebida. Ele gostava disso. Não havia motivos para mascarar o sabor do café. Um bom café não precisava de mais nada, e era isso o que ele oferecia aos clientes.

Eventualmente ela pedia um pão de queijo, mas geralmente optava pelo sanduíche natural. E nas últimas duas sextas-feiras havia pedido uma torta de chocolate, mas Darcy começava a suspeitar que fosse uma espécie de antecipação do final de semana. Ela pagava suas contas no débito, e enquanto Cecília e Jane geralmente acertavam tudo ao final da semana, Elisabeta preferia pagar todos os dias.

Darcy sabia que ela era advogada, que estudava para concursos e que gostava de vermelho. Provavelmente sabia mais algumas informações através de Jane e Cecília, mas não conseguia lembrar-se de muito mais do que isso. E nas últimas duas semanas Elisabeta havia comprado livros de romance histórico, o que Darcy considerou um gosto surpreendente.

Ele não era nenhum tipo de psicopata, é claro. Gostava de conhecer seus clientes, especialmente os que retornavam tantas vezes. Era uma forma de tentar personalizar o atendimento, de mantê-los confortáveis. Darcy gostava da ideia de que, como Elisabeta, Jane e Cecília, outras pessoas usassem o espaço do “Café e Livros” para estudar, ler, conversar. Era o objetivo de ter um estabelecimento como aquele – acrescentar à vida das pessoas.

Darcy cortou a fatia de limão, escolheu a garrafa mais gelada que havia, e retornou para a mesa de Elisabeta. Deixou o pedido em cima da mesa, exatamente no momento em que um clarão iluminou o céu. Elisabeta olhou pela janela, observando a chuva apertar um pouco mais. Suspirou, encarando os minutos faltantes para a aula terminar.

— Acho que é melhor ir embora. – ela disse, retirando os fones.

Darcy olhou para o relógio.

— Ainda temos quase uma hora antes da loja fechar. – sorriu.

— Não parece que o tempo vai melhorar. – Elisabeta respondeu. – E eu não trouxe um guarda-chuvas.

— Eu posso emprestar um. – Darcy deu de ombros. – Você ficaria surpresa ao ver o estoque de guarda-chuvas que temos.

Elisabeta sorriu, olhando para ele sem entender o motivo.

— As pessoas esquecem. – ele explicou. – O tempo melhora e os guarda-chuvas ficam esquecidos. Quase ninguém volta para buscar.

— Eu vou aceitar. Provavelmente eu já contribui algumas vezes para o estoque de guarda-chuvas. – ela riu.

— Então considere uma devolução. – Darcy piscou.

— Você pode me trazer a conta, por favor? – ela pediu.

O homem assentiu, e Elisabeta o observou se afastar. Lembrava-se dele, mas não que seus olhos eram tão claros. Provavelmente porque o avental mostarda nublava sua visão. Ele não demorou para voltar com a conta e a máquina de cartão, e enquanto Elisabeta arrumava suas coisas, também entregou à ela um guarda-chuva preto com bolinhas brancas.

Elisabeta se despediu e abriu a porta, sendo recebida por um vento gelado. Correu um pouco até o outro lado da rua, ainda assim molhando seus sapatos de forma categórica. Entrou no prédio e esperou o elevador, não demorando a chegar à porta de casa. Girou a chave e, nem bem cruzou a entrada, Jane e Cecília a olharam do grande sofá. As duas vestiam pijamas e tinham um balde de pipocas em mãos.

— Você chegou cedo. – Jane disse.

— Você viu o temporal que está lá fora? – Elisabeta revirou os olhos.

— Ah, é claro. – Cecília riu. – Por que acha que estamos de pijamas? E Thor está apavorado em algum lugar da casa.

Thor era o golden retriever de Cecília, em homenagem à algum super herói que Elisabeta desconhecia. Apesar do cachorro ser completamente inapropriado para um apartamento, não houve qualquer chance de que Jane e ela não o aceitassem. Agora o grande cachorro amarelo dormia quase todas as noites em sua cama, ignorando completamente Cecília.

— Você precisa cuidar melhor dele. – Elisabeta deixou o guarda-chuvas em um canto e sentou-se em uma das poltronas.

Como se soubesse do que estavam falando, o cachorro desceu as escadas e correu para os pés de Elisabeta. Thor morria de medo de temporais.

— Não adianta. Ele escolheu você como dona. Eu fui derrotada. – Cecília deu de ombros, com uma expressão triste.

— Não é minha culpa se eu sou a melhor das Benedito. – Elisabeta riu, acariciando as orelhas do cachorro.

— Ah, por favor! – Jane revirou os olhos. – Darcy estava no Café?

— Quem? – Elisabeta arqueou a sobrancelha.

— Darcy, do Café. – Cecília explicou.

— Ah, acho que não era Darcy. – Elisabeta deu de ombros. – Qual deles é Darcy?

— O alto, forte... – Cecília começou

— Deus grego, muso. – Jane suspirou. – Com os olhos que parecem o mar do caribe.

— Este não é o outro? Eduardo? – a mais velha perguntou.

— Ernesto! E não, Ernesto é muito mais baixo do que Darcy. – Cecília revirou os olhos. – Não é possível que você não consiga distingui-los.

— Eles estão sempre com aqueles aventais amarelos repugnantes. – Elisabeta deu de ombros. – Eu não consigo identificá-los.

— Então Darcy estava no Café? Quando passei lá hoje pela manhã Ernesto disse que agora ele estava no turno da tarde e noite. – Jane lamentou.

— Pela descrição, acredito que era Darcy. – Elisabeta riu. – Mas ele não é o casado?

Cecília e Jane encararam uma a outra, impacientes.

— Elisabeta, você não presta atenção em nada do que falamos? Darcy se separou. – Jane riu. – Cecília fala dele todos os dias.

— Nós já inclusive planejamos o meu casamento com Darcy. – Cecília revirou os olhos.

— E Theo vai levar as alianças. – Jane suspirou.

— O nome dele é Thor. – Elisabeta disse, como se fosse óbvio, e o cachorro olhou para ela.

— Não Thor, Elisa. Theo, o filho de Darcy. – Cecília explicou.

— Um filho? Meu Deus, Cecília. Você tem cada ideia absurda. – Elisabeta riu. – Você está mesmo interessada em um homem que acabou de se separar e tem um filho?

— Só uma cega não estaria interessada. – Cecília defendeu-se. – Até Jane está.

— Ele é bonito e tudo mais, mas um filho? – Elisabeta fez uma careta. – Cruzes.

— E tem algo mais sexy do que um homem culto, dono do próprio negócio, que além de tudo é pai? – a irmã suspirou.

— Elisabeta só o acharia sexy se fosse um engravatado engomadinho. – Jane revirou os olhos. – De preferência babaca.

— Outch. – Elisabeta brincou.

— De qualquer forma, só uma cega não se interessaria por Darcy. – Cecília afirmou. – E agora que ele está no turno da noite, eu duvido que você não seja a próxima.

— A ficar interessada no Darcy, do Café? – Elisabeta ergueu a sobrancelha, incrédula.

— Em Darcy, o dono sexy do Café. – Jane corrigiu.

— Darcy, o dono do Café, que tem uma ex-mulher e um filho prontos para pular pelo caminho. – Elisabeta riu.

— Bem, amanhã eu vou até o Café à tarde. – Cecília sorriu sugestiva.

— Eu vou com você! – Jane declarou.

Elisabeta revirou os olhos para as irmãs. O homem era bonito, era alto, tinha olhos interessantes. Mas não era tudo isso. Era?


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