Uma Canção de Neus Artells escrita por Braunjakga


Capítulo 27
Partida




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Badalona, Espanha

Outubro de 1714

 

I

 

Clow observava as ondas do mar.

Estava numa mesinha de bar, do lado da praia, na cidade de Badalona.

Era começo de tarde, o dia estava nublado.

A brisa marinha oscilava seus longos cabelos e umedecia seus óculos, de vez em quando.

“Quem me dera eu ser livre como essas ondas, indo de um lado para o outro sem prestar contas pra ninguém…”, Pensou Clow.

Clow abriu a bolsa onde Neus colocara as Cartas e viu que o nome dela já não estava mais escrito nelas.

“A energia mágica de Neus já saiu desse plano”

Fazia um mês que abandonou Gibraltar, para buscar as cartas, e acabou por quase perder Yue também no meio do caminho.

Ainda estava preso ao seu juramento que tinha feito ao Coronel MacDonald de voltar e devolver aquelas cartas.

Por outro lado, também estava refém da Ordem do Dragão, a quem assinou um contrato mágico, escrito em pergaminho de escama de jacaré branco, onde prometera dar as Cartas Clow para a Organização mágica.

Nenhum dos dois ia gostar de saber das promessas feitas para os dois lados.

“É difícil quebrar um contrato mágico e sair ileso disso; por outro lado, se eu quebra a minha palavra com o Coronel, eu nunca mais vou pôr os pés na minha terra natal… O problema é: o poder da ordem é imenso e eu, sozinho, não sou páreo para lidar com eles sem causar um problema enorme… No fundo, no fundo, é com eles que eu tenho que ter cuidado… ”, pensou o mago. “Mas eu sei que no final, vai dar tudo certo”, Sorriu.  

Ao seu lado na mesa, estava Dom Saul Martinez Garcia, juiz de Neus e Ministro para assuntos especiais de sua majestade.

Na verdade, Dom Saul era o mago mais poderoso da Espanha. Aquele ministério que presidia era uma fachada para algo maior. Se magia fosse usada de forma indevida, ele era o responsável por impedir isso.

O homem de cabelos prateados serviu uma taça de vinho para Clow.

— Mr. Saul, a última vez que eu bebi e comi com uma pessoa na beira do mar, eu fui acorrentado vivo!

— Senhor Clow, permita-me corrigi-lo: o senhor se comprometeu ainda mais!

Clow gargalhou.

— Não se preocupe, senhor Clow! Eu não vou acorrentar o senhor, nem quero me envolver nas suas contradições… Apenas quero conversar com um companheiro de magia, antes que abandone a nossa Espanha, afinal, gente como nós é uma das coisas mais raras do mundo…

— Ah, sim, mylord!

— Me chame de Saul! Sem formalidades por hoje!

Os dois sorriram.

O Ministro convidou Clow para beber em um bar próximo ao mar e, para não chamar a atenção, Clow dispensou Yue e Kero.

— Vai voltar pra Inglaterra, Clow?

— Saul, eu não pretendo voltar pra Inglaterra, caso esteja pensando no que eu vou fazer com as cartas, e...

— Clow, isso não me interessa nenhum pouco, o que me interessa é evitar que mais gente saiba disso… Da existência das cartas Clow… Compreende?

— Perfeitamente…

— Os comuns pensam que Neus era uma espécie de heroína com poderes mágicos além da compreensão e que fique assim! Se não pensarem que tudo foi magia...  só o bom Deus sabe o trabalho que deu alterar tantas memórias assim!

— O senhor mantinha agentes infiltrados na Catalunya desde sempre?

— Não muitos… só o suficiente pra preparar poções do esquecimento e jogar na chuva… Coloquei uns infiltrados na Generalitat e no Palácio de El Rey… Eu perdi muitos bons homens nessa guerra, sabe?

— Eu vejo…

— Desde que o Enric falou que essas cartas foram roubadas de Gibraltar eu fiquei com o coração na mão… Daí eu lembrei que o senhor estava lá; é o meu papel como ministro de assuntos especiais é proteger a Espanha das forças sobrenaturais como o senhor e a Ordem do Dragão; pensa que eu não sei que foi o senhor que jogou aquela tempestade em todo mundo que xingou a Neus?

Clow ficou encabulado com a afirmação.

— Cruzes! Ainda bem que os comuns não perceberam nada! Estava a ponto de prender o senhor, senhor Clow!

— Nossa que coisa! Eu fui indiscreto mesmo, Mr. Saul! I’m Sorry! – Clow e Saul engoliram uma taça grande de vinho. – Eu tive medo do que a Ordem podia fazer com o corpo da Neus… Ainda tenho…

— Eu entendo, senhor Clow; nós dois sabemos que a Ordem do Dragão é real, ousada e está mostrando suas caras… Fiquei um mês na Catalunya limpando a merda que eles fizeram! Homem, aquilo foi um saco! Eu nunca fiquei com medo de ninguém, senhor Clow, mas a Ordem me assusta… Por favor, faça de tudo para que ela não ponha as mãos nas cartas Clow!

Dom Saul terminou a garrafa de vinho, levantou-se e vestiu seu gorro.

— Prometo, Mr. Saul…

Do nada, uma estaca negra, de metal, furou o peito do arquimago.

Dom Saul Martinez, ministro de El Rey e chefe dos magos da Espanha, estava morto.

— O mago mais poderoso da Espanha… Grande porcaria…

Era Enric.

Clow olhou ao redor e viu que o tempo havia sido parado por ele.

As pessoas estavam congeladas como estátuas.

Estava surpreso e chocado.

— Eu nunca esperei que o senhor cumprisse com sua parte no acordo, senhor Clow! Eu só tô mostrando o que acontece com quem tenta passar a perna em mim, tá ok?

— Você cometeu um crime grave, Mylord!

— Quando o tempo voltar ao normal, ninguém, ninguém vai entender o que aconteceu com o poderoso Dom Saul… Você pode ser um suspeito, Senhor Clow, não acha?

Enric andou alguns metros e encarou o mago.

As ondas da praia agitavam-se com mais força e o vento soprava mais forte.

Enric usava a armadura vermelha como sangue, só que agora com a capa vermelha de Interventor da Ordem.

Suas mãos ainda estavam com a grossa luva preta, criada pelo próprio Enric e raios negros saíam de lá.

— Senhor Clow… espero que o senhor não tenha se esquecido da nossa promessa…

Clow gargalhou:

— Você é um homem triste, Enric! Perdeu o braço e a mão por sua crença no poder! Na força! Na superioridade de uns sobre os outros! Se eu fosse você, aprenderia uma lição já antes que você perdesse a vida!

Enric fechou a cara.

— O senhor está dizendo que não vai cumprir nossa promessa?

— Se a minha promessa resultar em segregação e terror, eu estou dizendo que não vou permitir que o senhor prejudique mais gente ainda, com essa crença cega no seu poder e de um império que ninguém quer fazer parte…  

As mãos de Enric trovejavam um relâmpago negro:

— Isso não é uma crença, é a realidade! Eu já derrotei interventores, por que não um mago inglês dentro das minhas próprias terras?

— Então derrote seu medo primeiro!

Com a habilidade de um ilusionista, Clow sacou três cartas do livro Clow e estendeu elas no ar: a carta “mudança”, a carta “ilusão” e a carta “sonho”.

Enric não entendeu nada daquilo.

Em poucos instantes não estava mais Clow lá. Um redemoinho envolveu o corpo dele e quem apareceu foi nada mais nada menos que Neus! Novinha em folha! Com a carta “espada” em suas mãos.

A farda vermelha de coronela era a mesma que usava no dia que foi fuzilada.

Tinha um fuzil nas costas, a bolsa das cartas no lado.

Até o cabelo ruivo crespo e as sardas no rosto eram as mesmas, a postura, a altura.

Enric tremia e gaguejava. Ele se estressou e riu nervoso:

— Você tá brincando com a minha cara, é isso, Clow? Tá pensando que eu não sei que isso é uma ilusão sua?

— Não é mais o mago Clow; sou eu, Enric, a única pessoa que te derrotou!

Até a voz era a mesma.

— Você pensa que eu tenho medo de você, é? Agora, eu posso acabar com a sua raça mais que nunca!

— Você pode? Eu já acabei com você uma vez, eu já acabei com cinco amiguinhos seus de uma vez! E vou acabar quantas vezes eu precise acabar com você!

Neus ficou com a espada em riste.

— Eu sou um Interventor, eu tô vivo, você é um fantasma e tá morta!

— Você não passa de um cara nojento! Me violar depois de morta? Acha que eu não ouvi o que você falou pro Gerard?

Enric gaguejou nervoso.

— Eu nunca ia deixar um homem nojento como você encostar a mão em mim!

Neus encostou a ponta da espada na garganta de Enric.

— Muito bem, Valente! – Enric estendeu a mão e o arco e flecha dos Interventores da Catalunha voou até a mão dele. – Então vamos ver se eu não vou encostar a mão!

Enric puxou o arco, disparou uma flecha e Neus desviou com a espada.

O movimento de Neus foi rápido e ligeiro. Enric, pelo contrário, sem os braços, estava lento e pesado.

— Até a habilidade com espada é a mesma!

— Você não entendeu ainda? Eu sou a Neus!

Neus, com um rodopio de espada, tirou o arco da mão de Enric.

Mais um rodopio e tirou as luvas pretas que ele usava, revelando os focos dos braços.

— Você não tem nem mão mais pra encostar em mim! Nem no Gerard!

Neus deu um chute tão forte no queixo de Enric que ele ficou grogue e caiu no chão como maria mole.

Mais uma vez, estava Enric ajoelhado sem braços e Neus com a espada rosa em riste, pronta para rasgá-lo de ponta a ponta.

— Vamos! Acabe logo com isso de uma vez! Eu não tenho medo de morrer!

— Eu também nunca tive… Mas você me dá medo, me dá medo do que você é capaz de fazer se eu te matar…

Neus fez a carta espada desaparecer de suas mãos e só restou o báculo rosa com uma cabeça de pássaro na ponta.

— Eu não estou mais nesse mundo, Enric… Isso nem me traria meu irmão, nem o Gerard, nem minha vida de volta… Fora que você tem uma menina pequena pra cuidar que já perdeu tudo o que tinha, não tem?

— E pra que isso, Neus? O mundo é feito de vingança e poder! Você não entendeu?

— E o mundo também é feito de gente que planta melancia e vende ela no mercado… Isso também me faz sentir orgulho… orgulho de mim mesma por não ser como você!

O interventor se levantou sorrindo, os dentes sangrando.

Ele estendeu os tocos, as manoplas voltaram.

— Essa história não vai acabar aqui, Neus! Eu ainda vou ir atrás das cartas! Mesmo depois de morto!

— Eu sei disso! Eu vou estar preparada quando você aparecer de novo… Não só eu, como todos nós!

As vozes de Neus, Clow, Kero e Yue soaram como uma só.

Neus sorriu.

O tempo voltou ao normal.

O sol finalmente saiu de dentro das nuvens revelando que a tarde já estava muito adiantada.

Neus desapareceu na frente de Enric, sorrindo, como uma estátua de areia, desfragmentada aos poucos pelo vento.

Restou a Enric levantar as mãos contra o céu e fechar o punho como se estivesse esmagado o sol com as luvas pretas, por não ter conseguido as cartas Clow.

Felizmente, as mãos dele estavam longe demais do sol para que ele pudesse ser esmagado assim tão fácil por alguém.

 

FIM


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