Uma Canção de Neus Artells escrita por Braunjakga


Capítulo 26
Epílogo




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 I

 

Noite. Chovia.

No mesmo do escritório de Santi, no arsenal de guerra de Barcelona, com as janelas voltadas para o Parc de la ciutadella, Enric estendia alguns papéis para Felipe III assinar.

— Majestade, esses são os papéis da transferência das competências da Catalunya para Gerard Bernat, e o autoriza a ser governador geral da província…

— Ah, sim…

— E esse outro aqui acaba com a Generalitat de Catalunya e substitui ela pelo Governo Geral da Cataluña.

— Tres bien!

El Rey assinou freneticamente. Tinha pressa para sair do país que conquistou no dia seguinte para voltar à Madrid.

— Esse aqui acaba com os foros de Aragão, Valência, Mallorca, Navarra e outros mais que desafiam a lei…

— Esse aqui eu não vou assinar ainda! Só o de Aragão e Valência por enquanto; não quero prejudicar meus parceiros de Navarra, nem atrair a fúria dos bascos!  

— Tudo bem, majestade…

As mãos do homem loiro, ou o que sobrou delas, ainda estava coberta por uma luva negra de couro.

Gerard sabia que ele usava magia da Ordem para projetar mãos de magia pura para substituir as antigas, mas isso gastava muita magia e cansava o corpo.

Como ele conseguia tanta força para manter a farsa, ainda era um mistério.

O sub interventor parecia não se importar com aquilo. Se importava mais em não parecer um aleijado e um fraco diante dos Barceloneses e dos catalães dominados, pois muitos ainda buscavam um líder para continuar a guerra.

Depois que Neus morreu, uma tempestade caiu sobre a cidade condal.

Alguns bairros tiveram problemas de alagamento. As ruas viraram verdadeiros rios, as pessoas que participaram da turba, que ofendeu Neus, tiveram dificuldades de voltar para casa.

Como consequência, a viagem que Felipe III ia fazer para Madrid teve que ser adiada. Muitas das decisões que ele tinha para a nação que conquistou tiveram que ser tomadas ali mesmo, por pressão de Enric e dos ministros, a que viajaram para acompanhar a fase final da guerra.

— Esse aqui é o papel que torna efetiva a criação dos Mossos de Esquadra…

El Rey parou:

— Você acha mesmo necessário, Enric, criar uma milícia com as feridas da guerra nem cicatrizadas ainda? De onde vamos tirar as fardas? As armas?

— Eu vou reaproveitar a farda preta das Esquadras de paisanos de Catalunya e dar um novo nome pra elas, as esquadras ficaram do nosso lado durante toda a guerra e levaram uma bandeira catalã alternativa, com duas listras vermelhas nas bordas de cima e de baixo e uma faixa grande amarela no meio, pra mostrar sua lealdade pra coroa…  

— Mas e as armas?

— Tem muita arma espalhada por aí! No arsenal de guerra o maldito Santi tava preparado pra aguentar as nossas forças por um tempo…

El Rey calou-se e depois continuou:

— Impressionante ter conquistado a Catalunya em um mês com tanta coisa pra resistir aos nossos avanços…  

— Nós somos a Ordem!

Enquanto o monarca e o homem loiro conversavam, Gerard estava alheio à tudo o que estavam falando, com os olhos vazios, fixos no nada.     

Em sua mente, as últimas palavras de Enric eram uma âncora que remexia todo o fundo daquele mar do seu inconsciente, trazendo para a superfície as memórias que pensou estarem enterradas bem fundo, tanto quanto o corpo daqueles que pereceram na guerra.

Lembrou-se de Santi, de quanto humilhou o rapaz e o chamou de “marica” e “fracote” só porque ele tinha medo de minhocas.

Lembrou-se de uma ameaça que tinha feito para aquele rapaz magricela e branquelo, de quebrá-lo na porrada em apenas dois minutos, quando ele se enfureceu com uma zombaria que os colegas fizeram com ele.

Lembrou-se de todas as humilhações que fez o colega passar na frente das garotas.

O rosto morto de Santi não deixava ele esquecer, ela falava com ele a toda hora dentro de sua mente.

A última memória de Santi antes de vê-lo como presidente da Generalitat foi a de um rosto furioso, trincando os dentes de raiva contra ele, depois de mais uma zombaria.

— Você vai me pagar, Gerard! Você vai me pagar um dia! .

O olhar de fúria não estava voltado contra o rapaz barbudo, mas sim, contra Neus.

A memória do abraço que deu no corpo frio e sem vida da amada era como sentir espinhos perfurando seu corpo.

Sim, furou a barriga dela, ela devolveu o gesto com um abraço final.

Apertou o corpo dela contra o seu, ajoelhou e chorou.

Os três novos Interventores cercaram Gerard para que ninguém visse o oficial chorando, abraçado ao corpo de uma traidora.

Fui nessa hora que começou a chover, e então mais uma memória surgiu do fundo da mente dele.

Sua namorada era a pessoa que mais ajudava o 'presidente', era sua defensora e sua melhor amiga, mas também, Santi sempre gostou dela.

Mas nunca, nunca a sardenta daria bola para ele.

Santi já tentou se confessar, mas levou o fora na lata.

Ficaram como amigos.

Santi era fracote demais para a impulsiva Neus.

Fracote demais para qualquer garota, todas as meninas diziam.

“Agora eu entendo tudo. Desde o começo, o Santi tava armando essa trama pra me pegar, e eu caí de otário… só pode”, Pensou. " Mas também…".

— Gerard, Gerard?

El Rey chamava.

— Você ouviu? Você agora é o governador geral da Catalunha, ou não tá querendo ser e quer passar o comando pra mim?

O sub interventor sorria.

Gerard despertou de sua introspecção com a voz daquele homem perverso.

— Você quem deveria ser o grande herói dessa guerra, não é? Afinal, foi você quem capturou Neus Artells, a inimiga número um da Espanha, não acha?

Felipe III e Enric se olharam. Foi o monarca quem começou:

— Eu nunca quis que essa situação chegasse nesse ponto, Gerard. Nunca quis mesmo. Você viu, eu tentei… mas o que eu pude fazer diante da teimosia dela?

— Não fala dela assim! – O barbudo bateu a mão na mesa com força, gritando.

Enric e El Rey ficaram surpresos com a atitude dele. Felipe III o olhava com repreensão.

O interventor, envergonhado, desviou os olhos do monarca.

— Você sabia, ela sabia, todo mundo sabia no que isso ia dar, se essa teimosia continuasse! Não venha se fazer agora de criança mimada que perdeu a guloseima! Agora é hora de você virar homem e aceitar a consequência dos seus atos, porque Neus, sim, foi mulher pra morrer, nisso eu concordo com você, ela foi uma mulher incrível. Agora, resta a você aproveitar essa vida que ela te deu, pra você virar homem também! Entendido?

Gerard fez com a cabeça.

— Excelente! Amanhã, a gente vai no arsenal de guerra, eu vou te apresentar pra uns nobres da Catalunha, gente com que você vai contar nesse novo governo, tá ouvindo?

— Majestade, essas folhas têm que ser assinadas hoje! Amanhã a carruagem real vai partir…

— Amanhã, sem falta, eu assino isso, mais cedo ou mais tarde, tanto faz pra mim, uma hora eu volto para Madrid… O importante é resolver tudo o que tem pra resolver aqui.

El Rey se levantou e saiu da sala.

Só ficou Gerard e Enric.

 

II

 

Gerard se cansou de ficar olhando para o vazio, naquela sala, e foi para o quarto.

A chuva caía com força na janela do quarto, escorrendo como um rio.

Olhou para a cômoda, onde estava adaga transparente, usada para executar a amada, e sentiu uma forte dor de cabeça, vinda do nada.

Tentou se deitar, mas só de sentar na cama, se lembrava de Neus, de todos os instantes que teve a garota nos seus braços, de como ela fazia parar o tempo só de estar com ele.

Lembrou-se da manhã daquele dia, quando abraçou o corpo morto da namorada e chorou sobre os cabelos cor de fogo dela.

Ele não conseguiria dormir naquela noite, nem se quisesse.

Chorou.

A porta do quarto abriu e Enric entrou:

— Eu sei que eu não sou bem vindo aqui, mas não pude deixar de notar que você não estava bem na reunião de hoje…

Com os dentes trincados de raiva, ele olhou para o homem loiro.

— Eu sempre soube, eu sempre soube que você era um fraco, um comum, filho de um associado da Ordem, que não conhecia nada sobre o que é magia e o que é viver com ela…

O barbudo não reagiu. Voltou a colocar a cabeça entre as mãos:

— Você é um fraco, Gerard! Perdeu a namoradinha e não sabe o que fazer! Eu sabia, sabia que seu ponto fraco era esse! Pra um moleque de vinte anos, você sentia muito por ela, né? Eu confesso: eu comeria. Aquela Neus devia fazer um sexo selvagem dos bons com aquela cara de brava, né? Diz aí, você deve saber o que é isso! Aquela coisa rústica do interior, aquela…

Gerard se levantou da cama e gritou na cara dele.

— Fala o que você veio fazer aqui, Droga! – berrou.

O sub interventor sorria como sempre.

— Só vim falar que tou dando o fora daqui. Vou pra Madrid, vou levar a Meritxell comigo… Lá eu tenho mais liberdade…

— Liberdade? Liberdade pra fazer o que?

Gerard gargalhou indignado. Continuou:

— Já sei, liberdade pra fazer suas 'merdas', como você fez com o Josep, como você fez com essa luva preta aí! Tenho pena da Meritxell!

— Peraí, não sou um abusador de crianças!

— Mas você arruinou a minha vida e fala agora tá dando o fora! Fantástico! Depois eu que sou o fraco… Eu devia te matar por ter feito o que fez com a Uxue, pena que o General Urrutia protege teu rabo! É pra lá que você tá indo, né?

— Eu sei que você falou com ele, mas pena que o General não conheça a ordem; teve uma época que eu queria essa armadura, que eu queria lutar com você, mas agora, não quero mais… Eu descobri outras coisas… Outros prazeres…

O rapaz olhou para a luva preta nas mãos do rival.

— Tenho medo de saber que prazeres são esses!

— A superação, meu caro! O prazer de vencer! Perdi minhas mãos, mas agora, tenho outras melhores que as antigas, isso não seria um prazer?

Gerard não queria discutir mais com Enric. Sentou-se na cama e voltou a olhar para o chão

O general se acalmou um pouco e respirou fundo antes de continuar:

— O velho ia te passar pro lugar dele, se você não tivesse estuprado sua irmã…

— Estuprar minha irmã? – disse sorrindo – Eu nem sabia que ela era minha irmã! Eu tou dizendo a verdade!

— Ele gostava da sua sinceridade…

— Eu acho que ele nunca gostou de mim… Eu sempre tive meus métodos pra agir, nunca fui um mentiroso, nem nunca disse que a verdade fosse bonita, se ele não gostava disso, não sei do que ele gostava; ele queria que eu fizesse tudo na sombra e mentisse pra ele?

— Então vamos ser sinceros: foi você quem colocou a Neus e o Pau na guerra, não foi?

— O Pau sim, a Neus veio por acidente. Ela nunca viria se não fosse pelas cartas, aquilo deu uma segurança pra ela, sabe? Quando eu taquei fogo na fazenda dela, sabia que o Pau viria… A Neus foi uma surpresa pra mim… Mas no final, tudo deu certo, né? As cartas Clow vieram pra cá, os dois morreram e você… Você agora é um farrapo fardado…

Enric sorria como uma criança.

Gerard tremeu tanto ouvindo aquilo, que fechou o punho e bateu contra o rosto do loiro, mas se segurou para não acertar o nariz.

— Continua. Você não queria me socar?

Gerard deixou o braço cair.

— Isso não vai trazer tudo o que você roubou de mim de volta!

— Eu posso trazer a Neus de volta… Mas não garanto que seja do jeito que você quer, mas ainda vai dar pra brincar de cachorrinho e papai mamãe com ela… Se você quiser que eu brinque…

O barbudo, finalmente, deu um soco no loiro, antes que ele terminasse de falar.

Enric cuspiu o sangue da boca como se não fosse nada.

— Você quer lutar? Então, vamos lutar! Te prometo que não vai ser como da outra vez.

O arco e flecha dos Interventores da Catalunha estava pendurado na parede.

Gerard pegou a arma e jogou nos pés de Enric, para espanto dele:

— Ficou louco, é?

— Você tá certo, não vai ser como da outra vez, você ganhou, eu já perdi essa luta. Eu não sou capaz de lidar com um adversário com poderes tão sujos como os que você usou contra a Uxue e os nossos guardas…

Gerard pegou a adaga transparente na cômoda e andou até o sub interventor.

— Mas eu sou capaz de lidar comigo mesmo… Já me cansei disso… Já me cansei desse jogo sujo…

Enric estranhou:

— O que você tá fazendo?

Pegou a adaga e enfiou na barriga com as duas mãos.

Ajoelhou-se no chão e sangue saiu da boca dele.

— Adeus, Enric! Fica com essa armadura amaldiçoada pra você… Neus… me perdoe…

Bateu a cabeça no chão e caiu morto, com a farda banhada na poça de sangue, escorrendo pela barriga.

A armadura da ordem estava ao lado da cama. O loiro tocou nela e disse:

— Aparezca Dragón!

A armadura de desmontou no ar e cobriu o corpo de Enric.

— Agora, eu sou um Interventor! depois de cinco anos…

Ele se agachou, tirou da barriga de Gerard a adaga transparente e ficou olhando para ela:

— Essas são as lágrimas da Neus, não é? Sinto muita magia das cartas Clow nelas… Só isso conseguiu parar a gente até agora… Você sabia disso e criou isso aqui… Entendi… Você tinha futuro, mas você é fraco! Você não sabe se superar como eu! Neus bem que daria uma Interventora melhor que você… E depois eu que sou eu o perverso aqui, mas finalmente, eu provei que você estava errado, velho Oriol!

"Adéu Gerard!

Ele fechou os olhos do general e saiu daquele quarto.

 

Continua…

 


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