Meia Lua: One-shots escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 2
Cássio em "O monstro de Frankestein"


Notas iniciais do capítulo

A música que guia esse capítulo é "The Scientist", do Coldplay: https://www.youtube.com/watch?v=KWffZ4aAKNA



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Come up to meet you

Tell you I’m sorry

You don’t know how

Lovely you are

É isso. Sou oficialmente um monstro. Um doente. Uma porra de serial killer.

Matei a Mônica. Puta que pariu, EU MATEI A MÔNICA. A Magá. O DC. Deixei o Cebola morrer. Assassinei meus pais. Que tipo de psicopata consegue matar os próprios pais?

A cada vez eu pensei que não poderia piorar. Meus pais não me reconheceram; a Magá partiu pra cima de nós como se estivesse possuída. Deus, olhar pra ela e ver como ela parecia saudável me deu enjoo por uma semana.

Mas a Mô… de algum jeito ela ainda lembrava quem era. Eu podia ver, nos ossos saltados e no rosto limpo, que ela não devorou pessoas; nem mesmo infectados, como o DC fazia. A vigiava de longe, vendo a garota arrebentar inimigos como quem parte pão. Acho que nenhum de nós sabia de verdade quanta força ela tinha.

Hoje ela me viu e veio atrás de mim. Nimbus se escondeu, mas eu… falei com ela. Mônica me reconheceu, e parou.

E se deixou matar. Merda, foi tão fácil. Ela desabou nos meus braços, e na hora eu só pensei em como ela era leve. Como alguém tão pequeno podia sangrar tanto.

O imbecil do Mauro me arrastou pra dentro e eu estava me sentindo tão mal, tão errado que não pude evitar brigar com todo mundo de novo. Agora eles estão jantando, e mesmo aqui, entocado no lugar mais escondido que achei, consigo ouvir o barulho das conversas.

Deveria ir lá e pegar um pouco. Nem lembro quando foi minha última refeição, se eu demorar demais o Luca e o Fred vão tentar me obrigar a comer.

Mas nem fodendo vou conseguir manter alguma coisa na barriga com esse cheiro de sangue no nariz, que nenhuma quantidade de sabão vai tirar. E lembrar dela dizendo meu apelido com tanta tristeza… esquece, Cássio, você nunca mais vai ter fome.

Merda, eu nem lembro de uma vida sem eles. Desde... sei lá, os dois, três anos de idade sempre fomos nós quatro. E eu não fazia ideia do que queria pro futuro, mas tinha confiança que vocês estariam lá.  

Agora estou aqui, afundado até o cabelo nessa vida de merda, e meus três melhores amigos estão mortos antes de termos idade pra beber.

Nobody said it was easy

It's such a shame for us to part

A cada vez eu me convencia que era necessário, que não me importava o quanto me fazia mal, alguém precisava fazer isso. Quero dizer, tem que haver um limite pra dor, certo?

Nobody said it was easy

No one never said it would be this hard

Mônica… Porra, Mônica, fazer aquilo com você me quebrou, nunca mais serei normal de novo. Não vou conseguir dormir outra vez sem lembrar dos seus olhos me fuzilando, daquele chiado furioso enquanto você se segurava pra não me atacar.

Desencaixei aquela peça metálica que me cobria o lado direito do rosto, olhando aquele sujeito feioso me encarando no reflexo metálico.

Quando acordei, não entendia as reações de Mauro e dos outros quando eu olhava pra eles. Tudo bem, não sou nenhum Roberto Daniel Júnior, mas também não era caso pras caretas … até que finalmente vi.

Não, aquilo estava errado, pensei. Era a imagem de um sujeito azarado pra cacete, só meio parecido comigo. Droga, era um reflexo. O meu. Caralho, isso é o lado direito da minha cara? Cadê meu olho?

Não conseguia me acostumar com aquilo, até que Fred construiu essa prótese pra mim. Agora pareço um Exterminador Futurista de baixo orçamento. Mas não funciona, é só uma fantasia, como eu. Uma ilusão malfeita.

Essa cara sem a prótese combina mais comigo: um assassino de filme de terror. Uma coisa que já foi humana, mas já não é.

— Oh, take me back to the start…— Me pego cantando. Cebola ouviu essa depressão em forma de música por meses inteiros depois que a Mônica cansou de esperar sozinha, e partiu pra outra. Eu ficava lá às vezes, me certificando que ele não faria nenhuma loucura, como fuçar as redes sociais dela ou mais um plano infalível. Ainda rolava uma coelhada se ele saía da linha, e geralmente sobrava pra mim também.

Então, ano passado, meu namoro com a Cassandra acabou. Foi uma merda e doeu pra cacete. A gente não deixou de se amar, mas um belo dia acordamos e descobrimos que só amor não é suficiente. Ainda bem que não tive que matá-la também.

 Fiquei em casa um bom tempo reorganizando minha cabeça e sim, ouvindo “Isso” e essa porcaria sem parar. Quando me ouvi cantando junto — logo eu, uma negação em inglês — soube que estava oficialmente ferrado.

Sim, eu quero voltar pro começo, parar com esse roteiro de merda — passar fome, comer porcaria, matar, adoecer — quero correr de volta pra vida que tinha e ser o cara que eu era. Quero meus amigos. Meus pais. Deus, eu daria qualquer coisa pra ouvir minha mãe reclamar dos meus tênis sujos mais uma vez.

So tell me you love me

Come back and haunt me

Oh and I rush to the start

Running in circles, chasing our tails

Coming back as we are

— Nobody said it was easy...It's such a shame for us to part...Nobody said it was easy… No one ever said it would be so… hard.

Não consigo mais cantar. Estou fodido, sozinho, fazendo um monte de coisas horríveis, e pra quê? Repetir tudo no dia seguinte, e de novo e de novo até finalmente cair morto? Não quero seguir em frente, quero dar meia-volta. Quero apagar três meses da minha vida e ser uma pessoa normal.

Me encolho no canto, escondido até Luca me chamar pra sair de novo. Vou pelo menos fechar o olho um pouco, se pareço dormir normalmente os outros não vem sentir pena de mim.

Bem a tempo. Consigo ouvir o Mauro me chamar. Merda, o que esse chato quer a essa hora da noite? Me deixa em paz, cacete!

Vou pro lugar mais escuro da sala, torcendo pra ele não me achar. O sujeito é mais teimoso que a…

O pensamento me atinge como uma explosão. A Mô estava consciente. Sabia o que estava acontecendo. Puta merda, ela me viu correr com a sai na direção dela.

Todos eles também viram? Será que a última coisa que lembram dessa vida é de mim acabando com eles?

Claro, seu animal estúpido! Eles não eram zumbis, e você sabia! Porque diabos você pensou que eles não sentiriam dor? Que não tiveram medo?

Óbvio que não pareciam com medo, sua ameba! Nenhum deles podia controlar o próprio corpo! Nem podiam fugir! Qual é a porra do meu problema?

O tamanho real do que eu fiz me acerta, e eu não consigo segurar um soluço. Sou pior que um monstro. Uma porra de demônio, foi isso que me tornei. Tateio, minha faca está no bolso, junto com a lanterna que meu pai me deu.

Luca nunca vai me deixar sair sozinho e as máquinas do tempo não funcionam mais, mas existe um jeito de voltar. Se eu fizer direito, nenhum deles vai me encontrar a tempo. Pé no saco como eu estou, aposto que nem vão sentir falta.

Esperem um pouquinho mais, turma. Estou indo encontrar vocês.

— Cássio?

Puta merda, sai daqui! — Vá embora, cacete… me deixe em paz… que diabos você quer?

Minha voz tá uma droga, e se eu continuar falando vou desabar no choro.

— Me perdoe. Eu não fazia ideia que não eram zumbis.

— Agora você sabe… tá desculpado, é isso que você queria? Só… pelo amor de Deus, me deixe sozinho. Eu não aguento mais isso.

Por favor, vá embora.

Me encolho mais, escondendo a faca na minha mão.  O que eu faço pra que esse tapado entenda e saia daqui?

— Vou te deixar em paz. Só sentar aqui um pouco, ok? Vou nem respirar pro seu lado.

Que. Saco. — Você não vai embora, né?

— Eu tô quieto aqui, Casc...sio.

A palavra afunda, destruindo tudo que ainda sobrava em pé aqui dentro. Quantas vezes tenho que dizer que não existe mais Cascão?

— O que eu preciso fazer pra vocês me deixarem só? Eu não quero piedade, não quero companhia! E acima de qualquer coisa, não quero ninguém me chamando de Cascão! Cascão tá morto, porra! Tenho mesmo que matar um de vocês pra me levarem a sério?

Em algum lugar lá dentro, sei que não é dele que estou com raiva. Que vou me envergonhar disso mais tarde, e pedir desculpas pela milésima vez.

Fico surpreso de verdade quando o vejo levantar também. — Então mata, droga.

Como é? Eu sei que ele viu a faca. Ficou maluco? Ele me vê de queixo caído e continua:

— Eu não vou sair daqui. Não vou te deixar rodeado só por fantasmas nunca mais. Não ache que é o único com colhões nessa merda.

Mauro se aproxima ainda mais, como se eu não fosse um assassino em série armado. Mesmo no escuro, eu vejo a raiva nos olhos dele, mas não entendo.

Agora ele sabe que não foi um zumbi sem alma o que matamos no quintal, era mesmo o irmão dele. Ele viu o que fiz. Ele está com raiva por mim? Como não está me fazendo engolir essa droga de faca por tudo que aconteceu?

— Você me ouviu, Cássio. Não vou embora. Estou desarmado. E então? Vem me matar.

Desisto da minha bravata. Não sei explicar que quando falo em matar algum deles, é porque não quero matar nenhum deles. Sou instável e perigoso demais pra ficarem perto.

— A faca não é pra você.

Não quero matar o Mauro. Apesar de irritante e um mágico fajuto, também é meu amigo desde a infância. Não é culpa dele o que eu me tornei.

— Esfaquear a Mônica foi a gota d’água. Não sei mais pra que tô fazendo essas coisas, Mauro, isso nem é vida. Pra mim já chega. E apesar de você ser um pé no saco, não merece ter que lembrar disso.

Ao invés de ir embora, o idiota toca de leve no meu ombro. Sem querer, lembro das coisas boas que aconteceram nos últimos meses: Do Quim cozinhando pra gente, Fred me ensinando a usar as ferramentas dele pra fazer as máscaras, ou do dia em que soltamos todos aqueles bichos do zoológico. O Harambe, aquele gorila imenso, passou tão perto que pude até tocar nele, e ele nem ligou. Pude até encostar a mão na onça-pintada. Cacete, eu quase tinha esquecido. Aquilo foi legal.

I'm going back to the start

Lembro também do estado do Luca depois do Joaquim. Do tempo que ele passava sozinho, olhando pra lugar nenhum. Fred ficou totalmente perdido por dias.

Para com isso, Cássio. Nem de longe é a mesma coisa. Joaquim era um cara decente e você… é só uma merda de cão raivoso demais pra continuar vivo.

— Cássio, eu sei que tá ruim. Ruim de verdade, mas um dia vai passar. Até lá, não precisa carregar o mundo inteiro sozinho. Acho que posso te ajudar.

Fazer tudo ao contrário é de família? — Você não entende. Eu não quero e não mereço mais.

— Cara, o que você fez foi corajoso pra caralho. Ninguém merece é continuar como uma daquelas coisas. Era necessário, mas é óbvio que dói pra cacete. Você é humano, droga.

Agora estou curioso. Lembro que o Mauro sabe umas paradas de hipnose, mas consegue arrumar mesmo um sujeito estragado como eu?

— Como você pode me ajudar?

— Antes de virar esse sensacional caçador de atum enlatado, eu era um mago, e minha especialidade sempre foi a cabeça das pessoas.

— Mago? Aquilo não era só mágica de palco?

— A mágica era pra encobrir a magia, cara. Ainda sei uma coisinha ou duas, posso tentar fazer dessa tua mente um lugar mais decente de se estar. Aceita?

Eu deveria dizer não. Quero dizer, se alguém diz que vai pular numa piscina de lixo tóxico, você tem que impedir, não é? — Tenta. Pior não pode ficar. Mas não esquece que foi você quem se ofereceu, nem eu queria estar aqui dentro.

O babaca parece feliz por isso. Pensei que o DC era doido, mas o irmão dele sai da escala. Se ele quer tentar…

— Toma aí. — Entrego minha faca pra ele. Não sei onde perdi a bainha, mas depois penso nisso. — Pra não dizer que eu não falei sério.

I'm going back to the start

Faz tanto tempo que ninguém fica perto assim. Puxo um pano e arrumo minha mordaça, até eu tenho acordado com a minha gritaria. Já que não consigo expulsar o idiota, melhor tentar dormir. Talvez hoje eu consiga.

— Cara, sei que ninguém dorme se você não usa esse troço, mas ainda é esquisito pra cacete.

— Você fala pra caramba dormindo. Se algum dia nós dormirmos lá fora, vai acabar usando uma dessas também.

— Tá doido? Nem a pau durmo lá fora e menos ainda com uma tranqueira dessas na boca. Prefiro ficar acordado.

Vejo o Mauro se encolhendo no chão, xingando baixo o metal frio. Ele vai dormir aqui? Desamarro a mordaça e ele vira, atento.

— Diz aí.

— Você vai ficar?

Mal termino de falar e já estou amaldiçoando minha estupidez. Óbvio que não, seu burro. Ninguém com meio cérebro ficaria perto desse bicho selvagem que sou agora.

— Já estou aqui, babaca. Não vou embora tão cedo.

Tô ficando meio surdo também, entendi o Mauro dizer que ficaria. Ele suspira, e fala mais alto:

— Vou ficar, Cássio. Prometo. Agora vou dormir, ok?

Ele é completamente pirado. Todos os parafusos frouxos. Doido de pedra.

Quase não acho minha voz pra responder.

— Ok. Boa noite, Mau.

 


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Notas finais do capítulo

* Tradução dos trechos usados:
"Vim pra te encontrar/ dizer que sinto muito/ Você não sabe como é amável"
"Ninguém disse que seria fácil/ É uma vergonha pra nós nos separarmos"
"Ninguém disse que seria fácil/ ninguém jamais disse que seria tão difícil"
"Oh, me leve de volta pro começo..."
"Então diga que me ama / volte e me assombre/ Oh, e eu corro pro começo/ Correndo em círculos, perseguindo nossas caudas/ Voltando ao que nós somos"
"Estou voltando pro começo"

* Roberto Daniel Júnior, ator que faz o Armadura Dourada na Primeira Série ( O mundo Do Contra ).

Mais uma vez, meus agradecimentos, e espero vê-los na próxima história.



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