Meia Lua: One-shots escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 1
Luca em "Ecos num mundo silencioso"


Notas iniciais do capítulo

Meus agradecimentos mais uma vez à Arymura, a melhor beta que alguém poderia desejar.

São capítulos independentes entre si, mas é necessário ler a história principal para que façam sentido.

Esse capítulo é dedicado à Themis.



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Aquele rugido, como um trovão ecoando num lugar fechado.

“Que barulho foi esse?”

Abro os olhos com o susto, estendendo a mão até sentir a forma familiar da pistola ao meu lado. Foi tão real que por um instante penso que verei as paredes escuras do laboratório, talvez Fred olhando pra mim preocupado.

Nada. Estou sozinho, numa cama grande e macia demais. Deus, havia tanto tempo que não pensava naquele mundo. Nos meus pais, no Toni, em Maria.

Em Joaquim.

O disparo e tudo que se seguiu depois continuam na minha mente, espantando qualquer chance de dormir. Sento e ponho a arma no colo, prestando atenção como se a tocasse pela primeira vez. No brilho amarelado das cápsulas, em cada pequeno ruído que a .380 faz em minhas mãos, na pressão da mola ao tirar e recolocar os projéteis.

“Que barulho foi esse?”

Normalmente os estalos e o peso me acalmam, mas não dessa vez. Conformado, ponho um casaco, a arma no coldre e pego a caixa embaixo da cama. Na varanda, tiro a outra arma do baú.

A Desert Eagle reluz no escuro quando a tiro de seu estojo. Muitas vezes tentei destruí-la, concentrando nela meu ódio pelo homem controlador, mentiroso, violento e desconfiado que a empunhava e que todos chamavam de Odin.  

 Ela resistiu, zombando de meu rancor até que compreendi. É uma arma pesada, enorme, incômoda, imponente e poderosa. Sempre fará parte do meu arsenal, porém não como minha arma principal. A aceitei, assim como ao Odin, e achei alguma paz.

A explosão ecoa na memória. Se eu fechar os olhos, posso me ver correndo pelos corredores, o desespero entalado na garganta. Fred foi checar os sistemas, procurando por um acidente ou curto-circuito, mas eu reconhecia o som. Era o disparo de uma arma, o mais alto que já ouvi. Corri e corri, rezando pra não ser o que eu pensava, na direção do quarto do Joaquim.

O encontrei atordoado, a pistola emperrada ainda na mão, o sangue brotando da barriga. Inferno! Aquilo era uma merda de canhão! Quando diabos Joaquim pôs as mãos numa Desert Eagle? Quase caí descendo da cadeira, empurrei a arma longe e o deitei. Pressionei o ferimento no abdômen com a minha camisa e ele gritou de dor. Meu Deus, isso tem que ser suficiente, repetia sentindo o sangue ensopar o tecido. Deixe ser suficiente, já perdemos tanta gente nos últimos dias.

O olhar dele encontrou o meu por um segundo, e ele tentou articular alguma coisa sem sucesso. Segurou minha mão com força, repetindo algo urgente e silencioso sem parar.

— Fica calmo, Quim. Você vai ficar melhor. Respira, eu vou dar um jeito nisso. Por favor, se acalma. Eu sei que dói, mas eu vou conseguir algo pra essa dor passar.

“Eu vou dar um jeito, eu consigo”, sussurrava, negando o vazamento contínuo entre meus dedos. O arquejo atrás de mim me fez virar: O olhar arregalado de Fred saltava do sangue pra arma pra agonia no rosto de Joaquim pro medo nos meus olhos e de volta pro sangue. No chão, na camisa, nos meus dedos, em todo lugar.

Vê-lo parado me fez recobrar a razão.

— Franja, sua camisa, rápido.

Ele me encarou como se eu falasse mandarim.

— Rápido, tire a camisa! Tem algum remédio pra dor aqui?

Droga, precisávamos de mais. Soro fisiológico, curativos limpos, algum antisséptico, remédios. Faltava tanta coisa, meu Deus, e era tudo tão longe.

— Devo ter um pouco de dipirona no quarto-

— Então vá pegar! E não deixe ninguém mais vir aqui, ouviu? Ninguém!

— Ok...ok! Volto num minuto!

A agitação foi dando lugar aqueles arquejos desesperados. Desisti e segurei sua mão, torcendo que você morresse logo. Mas nenhum de nós teria tanta sorte, não é? Fred chegou correndo e me entregou os remédios, esperançoso. Olhei a cartelinha prateada, o Fred, a tristeza imensa da coisa toda.

Não interessa o quanto você queira ou se esforce, a realidade geralmente segue seu curso. Pessoas paraplégicas não andam. Cada erro tem consequências. E não importa o quanto você se arrependa, e implore a todos e qualquer um que esteja ouvindo por só mais uma chance, que eles apareçam novamente e você possa deixá-los entrar... os mortos nunca retornam.  

 — Franja, saia daqui.

— Precisa de mais alguma coisa? O que quer que eu faça?

— Vá embora e tranque a porta. Eu cuido sozinho a partir daqui.

— Mas o que você pode fazer só com as m…

Fred sempre foi esperto demais pro seu próprio bem. Num pulo, pegou a arma e a segurou junto do corpo.

 — Não, Luca. De jeito nenhum. Eu vou guardar essa porcaria e você nunca mais a verá outra vez.

Ah, Fred, se fosse assim tão simples.

— Franja, não tem mais nada que possamos fazer por ele. Me entregue a arma, nem está segurando direito. Vai acertar seu próprio pé.

— Desista. Já perdi muita coisa, mas não minha integridade. Você não vai matar mais ninguém.

Fechei os olhos. Não era como se eu pudesse esquecer do que fiz. Mas a raiva me deu força, e lancei o olhar mais gelado que pude:

— Esconda-a ou destrua, não me importo. Ficarei aqui, e não vou esquecer desse sofrimento inútil por sua causa, Fred. Juro por Deus que você também não vai. 

Fred só me encarou e foi embora. Me desculpei o mais baixo que pude, Joaquim me olhava de volta com medo. Droga, eu era um covarde. Tudo que fiz foi segurar a mão dele e mentir descaradamente sobre como tudo daria certo, e logo a dor passaria.

Olho pra cima, e meu pescoço dói em protesto. Não estou ficando mais jovem e está gelado. Deveria voltar pra dentro, fazer um chá e ir pra cama. É o razoável a fazer.

E é claro que eu não o farei. Vou continuar aqui com o vento e as corujas, lembrando e lembrando até meus mortos sossegarem outra vez. Só assim terei alguma chance de dormir.

Quanto tempo eu passei naquele chão? Minutos? Horas? Hesitava e tremia, pedindo desculpas enquanto sentia a mão de Joaquim apertar na minha, ainda inquieto pela dor. Uma coisa era disparar uma arma, outra era sufocá-lo até a morte. Era cruel. Desumano. Eu me tornaria tudo que Fred pensava de mim, e pior.

Talvez eu quisesse ter esperança, apesar de tudo.

Vendo-o balbuciar e procurar uma posição confortável eu soube que não haveria ajuda. Nem Mônica, nem qualquer outra coisa chegaria a tempo pra nos salvar. Joaquim morreria, e mesmo que isso me partisse em pedaços, era minha obrigação poupá-lo do que pudesse.  

— Desculpe. Só vai levar um minuto — murmurei, soltando a mão dele, quando ouvi o raspar de metal no chão. Fred não conseguiu olhar pra nós dois, mas a arma estava ao meu lado novamente.

— Seja rápido — me disse, e ouvi a porta fechando atrás de mim. Tentei não pensar sobre o que minhas mãos faziam, checando o carregador e puxando o ferrolho como meu pai tinha me ensinado no último ano. O projétil não usado tilintou pela sala. Fechei os olhos do Quim e segurei a arma com toda a força contra sua têmpora.

O disparo fez meus ouvidos zumbirem, e a arma voou das minhas mãos. Quando abri os olhos, levei um tempo pra absorver a cena. Um tiro, um único maldito tiro e metade da cabeça do Joaquim estava espalhada pelo cômodo. A náusea e a tontura pioraram, mas ele já não sentia dor. Fui até a porta e a tranquei.

Quem sabe fosse o choque, mas nem de longe me sentia tão mal quanto imaginei. Mesmo o desprezo e a culpa não estavam tão ruins. Era estranho… vazio. Podia viver com isso. Uma serra, alguns panos e muitas sacolas de lixo depois, tudo que um dia foi Joaquim estava numa caixa de arquivo. Eu estava coberto de sangue, terrivelmente enjoado e decidido.

O mundo era brutal e impiedoso? Que fosse! Eu seria dez vezes pior, então nenhum deles precisaria sê-lo. Lutaria como pudesse, aprenderia tudo que fosse necessário e nós sobreviveríamos. Nunca mais teria que disparar essa minha pistola infernal outra vez.

Porque você é parte de mim, Desert Eagle. É minha desde que a tirei das mãos do Quim, e será minha enquanto eu puder te segurar.

Só quando estava razoavelmente limpo procurei os outros, e entendi o motivo pelo qual ninguém foi atrás de mim. Mauro e Cássio encaravam uma tela no computador principal. Havia uma daquelas pessoas infectadas parada em frente à saída do laboratório. Vestida de preto, empunhava uma lança e eu reconheceria aquele moicano em qualquer lugar.

Enquanto assistíamos, outro infectado recente vagou até o quintal do Fred. DC avançou nele como um cão demoníaco, o pobre-diabo não teve chance alguma. Eu já tentava sem sucesso rebocar Mauro pra longe da cena dantesca quando o fato que mudou tudo aconteceu:

Do Contra, que tinha a cara enfiada na coxa da vítima havia algum tempo, parou de comer e voltou pra posição inicial, sem dar a menor atenção ao coitado que ainda se debatia. Mauro continuou estuporado diante da tela, mas Cássio e eu nos olhamos chocados, e eu sabia que ele também tinha entendido.

Do Contra usou a lança pra atacar. Então comeu, comeu e parou. Eu não tinha um nome praquela infâmia, mas de uma coisa tinha certeza: Ninguém morto tem tanta habilidade. DC não estava morto. Nenhum deles estava.

Outros ouviram os gritos, e logo havia uma turba enlouquecida brigando no quintal. Cássio e eu continuamos presos à tela, olhando o DC se jogar na confusão, até ouvir a voz aguda de Maria:

— Nimbus? O que você tá fazendo? Fecha a porta!

Céu e Inferno, A PORTA! Cássio disparou, comigo logo atrás, e tudo que havia entre nós e a ruína completa era uma garota franzina. A porta interna já levantava. Eu não via Fred em lugar nenhum, onde o diabo do homem tinha se metido?

— Sai da frente, Maria. Eu preciso ajudar o meu irmão.

— Nimbus, você não pode sair. Você vai morrer.

— Meu irmão está sozinho lá fora. Saia da minha frente.

Não. — Ela repetiu com mais força, abrindo os braços diante da porta. — Eu não vou morrer hoje porque você quer brigar junto com seu irmão zumbi, Nimbus!

Maria, você era egoísta, infantil e na maior parte do tempo que passamos juntos, eu preferia que qualquer outro (até mesmo o Bidu) estivesse no seu lugar… Tudo que te fazia tão difícil naquele dia nos salvou. Irônico, não? Mauro ficou tão fora de si que estava prestes a te dar uma surra, mas o tempo que passaram conversando foi o suficiente. Cássio se jogou contra o Mauro e eu fechei e travei a porta interna.

— Me solta! Me larga, porra! Meu irmão precisa de mim!

Cássio só o segurou com mais força contra o chão, aguentando com paciência os gritos e pancadas. Guardei o controle comigo, e Maria se aproximou tremendo. Parecia precisar de um abraço, até que olhou pra mim.

— O que você fez? Deus do céu, o que você fez?

O mesmo olhar que Fred me lançava há dias.

Horror, espanto... medo.

Eu parecia algo pior que os monstros lá fora. De certa forma, era. Ainda cheirava a sangue e carne crua. Fui capaz de matar e esquartejar o Joaquim, e nem sentia remorso por isso. Estava exausto pelo esforço e pela tristeza da coisa toda, não tinha orgulho pelo que fiz, mas culpa… nenhuma. Aquilo foi necessário.

— O Quim… tinha uma arma. Sofreu um acidente com ela. Eu e Fred tentamos salvá-lo, mas ele não resistiu.

— E onde ele está agora?

— Tranquei o quarto. Nada pode feri-lo agora, e temos problemas mais urgentes.

Rodei até os dois no chão. Cássio era mais alto e forte, e ainda lutava pra conter o Mauro.

— Já falei pra me soltar! Vão matar meu irmão! Me larga, Cascão!

— Ele não é mais o DC, Nimbus! Se acalma e escuta, cara!

Desci da cadeira e pus todo meu peso em cima do peito de Mauro. Obrigado por insistir nas aulas de jiu-jitsu, pai. Os protestos foram diminuindo, e Cássio se afastou um pouco, grunhindo e movendo os braços doloridos.

— Nimbus, me escuta. O DC se foi. Aquilo não é ele, entendeu?

— Luca, ele tá sufocando.

— Aquilo lá fora é um zumbi. Você não vai acabar desse jeito idiota comigo aqui.

— Ele não tá conseguindo respirar, Luca. Sai daí.

— Você não vai sair, Mauro. Não assim, não vou deixar. Entendeu?”

Mauro estava mudando para alguma cor entre o vermelho e o roxo, mas eu não iria soltá-lo enquanto ele resistisse. Cássio começou a me puxar com força. Me segurei no lugar.

Luca!

Fui claro?

Mauro desistiu e começou a acenar com a cabeça que sim. O soltei e Cássio quase me arrancou dali.

— O que tá acontecendo com você, Luca? Ficou maluco? — Maria gritava, enquanto a expressão de Mauro me prometia a morte assim que ele voltasse a respirar.

— Escutem aqui, vocês três.

Olhei no rosto de cada um deles. Nós sobreviveríamos. Eu faria acontecer, não importava o preço.

 —Joaquim está morto. — Cássio me olhou de queixo caído, e pude ver a suspeita nos olhos de Mauro. Pra um mágico, ele era transparente demais. — Acidente. Estamos juntos nisso, quer gostem ou não. Nimbus, aquilo não é mais o DC. Aquela coisa atacou e comeu um zumbi. Parece mesmo algo que o Do Contra faria?

— Não fale como se soubesse como é assistir alguém que você ama lá fora. Você não sabe, Luca.

Respirei fundo. — Meus pais estão lá fora, Nimbus.

— E os meus morreram, porra! Aquela coisa é toda minha família no mundo!

— E mesmo sendo o sujeito mais contrariado que já viveu, duvido que ele quisesse você transformado em zumbi também. Viva por ele, cara.

— Não temos chance, Luca. Estamos presos aqui, sem comida ou jeito de sair. Tudo só vai piorar. Quanto tempo pensa que vamos durar assim?

— Nós vamos sobreviver a isso, Nimbus.

— Olha lá pra fora, idiota! Não somos nós quem salvamos o mundo e lutamos contra os monstros, Luca! É a Mônica, o Cebola, a Magá e o Cas! Como nós vamos sobreviver sem os três e com o Cas fodido desse jeito?

Porque eu digo que vamos. Temos água, abrigo e se eu tiver que convencer o Franja a construir um avião pra conseguir comida, é o que farei. Você pode me ajudar ou não me atrapalhar, a escolha é sua.

Os três continuaram me olhando silenciosos. Não tinham motivo pra acreditar em mim. Passamos dias sem comida e eu não era nenhum Cebola ou Mônica.

— Em outras palavras, você tem um plano. — Ouvi atrás de mim.

— Tenho, Franja — respondi com a mesma seriedade. Tínhamos mais que uma chance, só precisava que eles vissem também. Os detalhes (como o plano em si), eu cuidaria no caminho.

— Vou checar todo o perímetro, e desligar o que puder. O que mais você precisa que eu faça?

Seu tom era sóbrio, exatamente o que todos esperavam de você numa crise. Disfarcei a tensão que sentia só de ouvir sua voz.

— Luca tem razão, estamos juntos nisso, e eu farei o que puder pra sobreviver. Quando eu terminar o diagnóstico do sistema, vou até você e discutiremos os detalhes.

Quase suspirei de alívio. Podia sentir a opinião dos outros mudar, afinal se o Fred não me achava maluco, talvez pudessem confiar em mim também.

 Quase posso te ver agora, Fred, os olhos e joelhos vermelhos, irradiando amargura. Não éramos amigos, como você deixava bem claro quando os outros não estavam perto. Você me apoiaria porque era necessário, mas quase explodia por isso. Eu era um mal necessário. Nada mais.

— Deixamos comida pra vocês dois. Tá, a hora é ruim, mas vocês não comeram nada.

— Obrigado, Cas. — Fred murmurou, enquanto arrastava os pés pra longe.

Em algumas horas, tudo parecia melhor, não sei se porque finalmente fazíamos outra coisa que não esperar ou se pelos biscoitos do almoço. Tínhamos uma dúzia de novos cadáveres no quintal, quase todos me detestavam e comida suficiente pra dois dias, com sorte.

Mas tudo bem, porque eu tinha um plano fictício. Fabuloso, não? Ouvi Cássio me chamar na frente da tela, assistindo o DC oscilar apoiado no cabo da lança.

— Você não faz a menor ideia de como fazer, né?

— Mas como...

— Planos infalíveis. Milhares deles. — Bateu de leve na tela. — Essas coisas não são zumbis. Será que existe cura?

— Primeiro vamos não morrer de fome. Depois remédios, roupas, higiene, um jeito de defender esse lugar... Nimbus tem razão, precisamos de um milagre.

— Relaxa. Vou assistir isso aqui um pouco. Segunda regra dos filmes de zumbi: Entender como agem e como se livrar deles. A Mô ainda está por aí, aposto que vai derrubar a porta em uma semana com uma solução prontinha.

— Tenta não se cansar demais, vocês acabaram de levantar.

— Dá um desconto pro Nimbus, valeu? Ele não é assim. Logo ele se acalma e cria juízo. Vou dar um jeito dele não fazer nenhuma maluquice até lá.

Aquele sorriso tímido foi como uma brisa fresca, Cas, mas nunca te falei. Você ficou de cama por doze dias, tinha perdido metade do rosto, estávamos até o pescoço de problemas e você ainda dava um jeito de cuidar dos amigos. Fosse contando dos episódios do Cosmo Guerreiro, me apoiando em silêncio, ou mesmo sentado quieto ao lado do Mauro, que desistiu da raiva e entrava num luto cada vez mais doloroso por um certo idiota contrariado que se recusava a cair.

Ao ver as coisas dando certo, a comida (rala) aparecendo com frequência e uma rotina começando a acontecer, todos acabaram aceitando minha liderança. O Fred apenas continuou monossilábico e de cara fechada como se eu lhe desse uma eterna dor de cabeça.

Até aquela noite. Uma das máquinas começou a apitar sem parar, e logo ninguém mais dormia. Depois de horas procurando no escuro, encontrei um Fred arruinado, rodeado de garrafas, tentando se embebedar. No meio dos choramingos e das palavras sem sentido, entendi tudo.

A obsessiva que os caçara por horas e quase os matara, a infectada da qual ele me falava quando ouvimos o disparo era a Magali. Joaquim não suportou e Fred não sabia lidar com tudo aquilo ou como voltar a dormir à noite. Como último recurso, apelara pro conhaque aberto no chão.

Enquanto eu tentava planejar alguma coisa, Fred confessava que já não sabia há quantas noites precisava beber pra dormir, e que tinha começado a beber pra evitar a ressaca. Os olhos dele eram duas poças assustadas, se dando conta do quão perto estava da borda do abismo.

Fred falou e falou, porém só consegui entender mais uma palavra, cheia de angústia e dúvida:

Marina. “Puta merda” pensei na hora. Fred era completamente louco pela namorada desde os doze anos. Se ela também estivesse infectada... esqueça a pistola, o homem se jogaria pra ela comer. Diabos, era capaz dele se temperar se achasse que isso a agradaria.

Enquanto minha cabeça girava, sem saber o que fazer, Fred oscilou e caiu roncando. Quanto à máquina, um martelo resolveu o problema.

 Nos dias seguintes, nossa relação ficou ainda pior. Cada gesto e palavra eram de uma frieza imensa, como se eu não valesse o suficiente para ser odiado.

Cada vez eu guardava tudo no fundo da mente e continuava o jogo. Não importava o que qualquer um de vocês pensava de mim, repetia. Ou o quanto me sentia mal por ter que fazer aquilo. Eu precisava de respeito, obediência e vocês vivos. O resto era luxo.

— Luca, preciso falar com você.

Porém aquela guerra particular era exaustiva, Fred. Mais desgastante que todo o caos lá fora. Vesti a camisa e a indiferença e estava pronto pra mais um round.

Qual foi a minha surpresa ao ver um pequeno molho de chaves cair no papelão em que eu dormia. Olhei de volta pra você, que respirou fundo algumas vezes antes de falar:

— Você tem que cuidar da sua saúde. Mover essas pernas. Fica sentado o dia inteiro.

Sim, eu podia sentir as escaras abrindo, mas não podia me dar ao luxo de parar e descansar com Mauro e Cássio saindo pela primeira vez dali a poucos dias. Mas por que me acordou pra discutir isso?

E eu… trouxe um colchonete. Dormir nesse papelão vai aumentar a chance de ferimentos, meu colchão também não é adequado, então eu fiz esse.

Arrastou um colchão fino até o meu espaço, me deitei nele e caramba, como era macio. Parecia uma nuvem. Talvez eu pudesse dormir a noite inteira.

— Obrigado, Franja. Boa noite. — Você continuou parado. — Mais alguma coisa?

— Você não disse nada. A nenhum deles.

Ah.

Você nunca me pediu desculpas com palavras, mas a raiva de cada gesto se foi. Descobri que as chaves abriam a sala de bebidas, e nunca as devolvi. Aos poucos pude te chamar de amigo, e mesmo doente, foi por muito tempo o único que me via com clareza.

Quando a culpa finalmente me alcançou, depois da morte de Maria, ter você por perto salvou minha vida, Fred. Meses depois, a depressão e o estresse teriam me consumido. Sem você e os meninos, nunca teria conhecido Viviane ou visto as estrelas outra vez.

Deixo a gratidão e essa coisa boa sem nome ou forma me preencher, e o frio já não perturba mais. Fred, Cássio, Mauro. Meus meninos. Aquele trio de patetas desajustados que eu amo tanto, e que juntamente com Viviane e as garotas, se tornaram meu mundo inteiro.

Deixo as palavras rolarem por minha mente, apreciando o sabor. Minha esposa. Meus filhos. Céus, ainda me emociona ouvir Fred me chamar de pai.

Mas ouvir a Nina ou o Leo me chamando de vô...nem consigo descrever.

Minha respiração começa a vir em nuvens. A Desert Eagle parece gelo em minhas mãos, lembrando-me de todos que ficaram pra trás. Mais uma vez, agradeço por tudo que me deram, e prometo não esquecer de nenhum deles.

Então o silêncio imenso da madrugada me traz de volta ao presente. Olho pra cima, e o céu daqui nunca fica tão límpido quanto nas noites antes do outono. Começo a sentir sono, e quando vier o sol, posso descer a colina e visitar Fred, Marina e as crianças.

E é tudo que eu preciso.


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Notas finais do capítulo

A todos que leram, meus agradecimentos. Espero vê-los próximo capítulo.



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