A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 5
04: Foi por amor.


Notas iniciais do capítulo

Creio que dessa vez não seja necessário um Glossário para o capítulo, mas caso haja algo que não compreendam digam-me, por favor.



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Gintsune havia cometido um erro e sabia disso.

Infelizmente ele só se deu conta tarde demais, quando a humana virou-se para ele com olhos vidrados e espantados.

Ele nunca havia encarado sua vaidade de tal forma, mas naquele momento a viu como sua maior — e talvez única — fraqueza, a vaidade que o obrigou a mostrar-se diante daquela humana, supostamente ele nunca deveria mostrar-se aos humanos de forma a deixá-los saber o que ele era realmente, mas quando ouvira aquela garota idiota falar mal de seu cabelo ele acabara agindo sem pensar de forma totalmente precipitada e estúpida, ludibriado a aparecer pela própria soberba.

Ela quase, quase, chegara a desacreditar nele, a convencer-se de que o que vira na casa de banhos realmente fora somente um sonho... Mas então ele estragara tudo.

Ele mostrara-se diante dela.

E por orgulho ele não podia recuar, mesmo porque isso não adiantaria para nada, a menos que o objetivo fosse lhe envergonhar com tamanha covardia, ele não poderia fazê-la dês ver o que estava vendo, e tão pouco fazê-la acreditar que não passara de um sonho como da última vez, pois agora estava muito bem acordada.

Com as mãos escondidas nas mangas do quimono, e sem deixar aparentar que na verdade cometera um erro, Gintsune ergueu uma sobrancelha de forma arrogante:

—E então? — questionou — Como pretende se desculpar?

Ele podia ouvir o coração dela batendo acelerado de forma quase enlouquecida, como se a qualquer momento pudesse explodir, e viu-a recuar até que o quadril chocou-se contra a mesa e apoiou-se nela para não deixar as pernas cederem.

—Você... Você é mesmo a raposa? — balbuciou olhando-o com olhos vidrados.

Gintsune semicerrou os olhos.

Seria possível que fora aquela garota quem...?

—Sou. — respondeu — E você? Foi quem me chamou aqui?

A garota engoliu em seco e o fez como se tentasse engolir uma pedra.

Ele a viu apalpar a mesa com a mão direita, ainda com os olhos vidrados nele, até que seus dedos se fecharam em volta de um vidrinho de sal — ele deixara aquilo ali por acaso na noite passada.

E de repente o braço da garota girou e o sal, com vidro e tudo, foi arremessado contra Gintsune.

Mas ele desviou-se facilmente, girando para o lado.

—Então é assim? — reclamou agora apoiando a mão direita no quadril — Primeiro você me chama até aqui, depois ofende meu cabelo e agora ainda me joga sal? O que você está querendo afinal garota? Ser devorada?

Terminou aborrecido. Mas quando voltou a olhá-la viu-a pálida, e franziu o cenho.

—Ei calma, eu só estava brincando... — disse esticando a mão em sua direção.

Mas ela gritou e encolheu-se no chão cobrindo a cabeça com as mãos.

Internamente ele suspirou, acabara de cometer mais um deslize, sempre que estava entre humanos ele se passava por um humano e, até então, a única humana com a qual conversara e mostrara-se genuinamente como raposa fora a esposa do tengu, e acidentalmente acabara tratando aquela garota como a tratava... Mas ainda assim aquilo era inaceitável! Ela com certeza nunca havia visto nada tão bonito quanto ele — ainda que ele estivesse cobrindo o rosto com o chapéu do tengu — e ainda assim se comportava daquela maneira, isso irritou Gintsune, afinal como aquela criança idiota ousava ficar assustada com algo tão belo e magnífico quanto ele? Ela devia estar fascinada! Deslumbrada!

—Ei estou dizendo que não vou te devorar! — reafirmou irritado, mas ela só fazia encolher-se e tremer no chão como se nem o escutasse — Eu só quero saber como descobriu o meu nome!

E também que pedisse — não, melhor ainda, que implorasse — por perdão por estar ofendendo-o daquele jeito, falando daquela forma sobre seu cabelo e olhando-o como se ele fosse uma criatura monstruosa, justo ele que era tão belo!

A garota tirou as mãos da cabeça.

—Como... Como assim como eu descobri o seu nome? Todos aqui o conhecem.

Arfando Gintsune recuou um passo para trás.

—O que você quer dizer com isso? Como meu nome pode ter se espalhado dessa maneira?! — revoltou-se acidentalmente erguendo um pouco a voz na última parte e acabando por assustar a humana que se escondeu de uma vez debaixo da mesa. Ginstune suspirou, e tentou falar de forma calma — Ei, pare com isso, eu já disse que não quero te devorar.

Afinal assustada é que ela não ia lhe dizer nada.

Hesitando a garota saiu, mas só um pouco, de debaixo da mesa.

—Você não quer me devorar? — ela fez uma careta quase parecendo ofendida.

Gintsune cruzou os braços.

—Claro que não, eu não como humanos. — ele fez uma careta pondo a língua para fora — Vocês têm um gosto horrível!

—Mas...

—Bem, eu nunca provei, mas tenho certeza que também não gostaria se provasse. — encolheu os ombros.

—Mas como isso pode ser possível se foi por isso que você foi lacrado?

Gintsune parou, e de cima olhou de forma estranha para a garota.

—Mas do que você está falando?

Naquele momento garota e raposa se encararam e pouco a pouco começaram a se dar conta de que, na verdade, não estavam falando da mesma coisa.

Yukari engatinhou um pouco mais para fora da mesa.

—A Raposa de Higanbana. — disse, mas o nome não pareceu trazer nenhum reconhecimento ao rosto dele — Ela foi lacrada mais de um século atrás por um exterminador que buscava vingança pela morte da irmã.

Novamente a raposa escondeu as mãos dentro das mangas do quimono.

—Entendi... Então tem esse tipo de raposa estúpida lacrada por aqui. — resmungou meio que consigo mesmo, lhe dando as costas como se tivesse se esquecido dela. — De qualquer forma isso não tem nada haver comigo, e como você obviamente me confundiu com outra raposa ficou claro que não foi quem me chamou até aqui. O que só nos deixa com um assunto inacabado por aqui...

Ele parou com uma mão sobre a porta e olhou-a de lado por cima do ombro, fazendo Yukari enrijecer por inteira — e por um segundo até acreditou que suas tranças haviam ficado de pé.

—O-o que? — gaguejou.

A raposa lhe estendeu a mão livre.

—Eu quero de volta o que é meu.

Estática, por dois segundos Yukari não soube ao que ele se referia e então de repente lembrou-se do fio de cabelo prateado, ainda enrolado em sua mão.

—Ah sim! Claro! — na pressa de levantar-se quase tropeçou. — Aqui, aqui está.

Pegando o fio entre o polegar e o indicador, e ainda com a outra mão sobre a porta, a raposa ergueu-o a altura dos olhos como se procurasse possíveis danos que ela houvesse causado.

—Não é qualquer um que tem um cabelo desses, sabia disso? — murmurou com ar de satisfação em seu rosto.

E então, de repente, o cabelo incendiou-se.

Inflamando-se com chamas azuis surgidas do nada.

Kitsune bi. — Chamas de raposa.

Gintsune costumava usar aquelas mesmas chamas para assar batatas doces na casa do tengu, e na primeira vez em que fizera isso a esposa do tengu saíra correndo de casa assustada, brigando com os dois — não apenas com ele, mas com o marido também — e avisando-os para pararem de brincar como crianças, porque iam acabar pondo fogo na casa, mas no fim acabara se juntando a eles para comer as batatas. E agora que ele não estava lá, quem assaria as batatas?

Yukari gritou afastando-se horrorizada quando aquele fio de cabelo consumindo-se em chamas azuis caiu no chão.

Quando o fogo extinguiu-se não havia sinal nem de cinzas... E nem da raposa.

—Espere...! — Yukari ainda tentou, por alguma razão irracional, ir atrás dele.

Mas quando abriu a porta de correr não havia ninguém no corredor, e tudo era pura escuridão.

E em momento algum qualquer um de sua família havia acordado e vindo ver o que se passava, mesmo com os gritos dela, aquela era uma família de sono realmente muito pesado.

Suspirando ela voltou para dentro do quarto e fechou a porta. Não que isso fosse fazer qualquer diferença, se Gintsune quisesse entrar de novo ele entraria, bastaria acessar o plano espiritual e atravessar alguma parede, da mesma forma que fazia agora para sair da casa, saltando em direção ao pátio novamente como uma raposa.

Normalmente ele sairia à noite, mas não o fazia desde que chegara ali, pois a noite todos os humanos se recolhiam e as ruas eram tomadas por aqueles estúpidos youkais de baixo escalão com quem nem valia a pena se relacionar, logo a raposa mantinha distancia deles ficando ali durante a noite — espíritos, fossem youkais ou humanos, não tinham o costume de invadir casas a menos que tivessem algum tipo de ligação com a moradia em questão ou fossem atraídos até elas — não que na pousada ele estivesse completamente só, mas com suas casas de banho para banho públicos, abundância em comida e quartos a perder de conta lá parecera ser o lugar mais ideal para ele se instalar.

Quando o sol raiou encontrou Gintsune na forma de homem deitado sobre o telhado da pousada, fumando seu cachimbo de cabo longo com o chapéu do tengu sobre a barriga, mas naquela noite Yukari não conseguiu dormir, claro, quem conseguiria dormir depois de ter visto e conversado com uma raposa?

Não importava o quanto ela pensasse naquilo e soubesse que fora real, ela ainda não conseguia acreditar, de alguma forma agora que ela comprovara a existência da raposa tudo parecia ainda mais inacreditável, como se sua mente estivesse prestes a entrar em colapso e, por várias vezes durante a noite, ela esteve tentada a falar alto sobre o cabelo da raposa, provocando-o a aparecer novamente, mas conteve-se, embora ele tivesse lhe garantido que não comia humanos Yukari não sabia até que ponto podia confiar na palavra de uma raposa e de qualquer forma ela vivia em uma cidade de lendas, e como tal, conhecia várias histórias sobre raposas — uma delas estava lacrada ali mesmo em Higanbana —, portanto sabia que não era bom provocar uma raposa.

Quando o sol raiou encontrou Yukari cansada e com olheiras de uma noite passada em claro.

Fato este que sua mãe e avó logo notaram apesar de ela estar agindo normalmente e ter repartido o cabelo exatamente no meio e o prendido em tranças como fazia todos os dias — o pai não notou, pois estava muito concentrado em seus cálculos que de repente não batiam mais — e transformaram em um tópico durante o desjejum:

—Yuki tem trabalhado tanto ultimamente. — comentou a mãe como quem não quer nada atraindo o olhar desconfiado da filha — Realmente tem se dedicado bastante.

—Ah sim. — a avó concordou — Bem que a menina merecia um dia de folga.

Yukari comeu a refeição em silêncio, experimentando o peixe enquanto a mãe e a avó olhavam para o patriarca da família, esperando que ele esboçasse alguma reação.

Mas ele permanecia alheio a tudo, concentrado em sua papelada, lápis e calculadora.

A mãe pigarreou, o pai ainda permaneceu alheio.

—Daisuke. — a mulher o chamou parecendo um tanto irritada, e repetiu aumentando o tom — Daisuke!

O pai ergueu a cabeça num movimento repentino.

—O que?

—Hoje Yuki terá o dia de folga. — a avó anunciou. — E você irá substituí-la na recepção.

—Eu? Não, não posso. — ele recusou. — Estou ocupado com as contas, há algo estranho acontecendo, há semanas que minhas contas não batem...

As contas do pai não batiam porque ele não estava incluindo nelas uma raposa faminta comendo sua comida, e justamente enquanto pensava nisso Yukari viu uma mão alva se materializar em pleno ar por detrás do cotovelo do pai e, sem que ninguém além dela notasse, surrupiar três pedaços de omelete do prato do pai para então recuar e desaparecer em pleno ar com a comida, deixando-a de olhos arregalados e queixo caído.

A raposa?!

—Se as contas estão erradas há semanas é até melhor que você fique no caixa ao menos por um dia, para verificar o que está acontecendo. — a avó opinou sem perceber nada.

—Eu não estou passando troco errado! — Yukari protestou saindo brevemente de seu estado de choque — O desfalque é na comida e não no dinheiro!

Mal terminara de falar quando uma segunda mão surgiu por detrás do outro cotovelo do pai e arrancou com as garras um pedaço de seu peixe grelhado até então intocado, por que ele estava fazendo aquilo? Por que se mostrar daquele jeito? Por acaso estava provocando-a?!

—Ainda que o desfalque seja na comida e não no dinheiro será bom que Daisuke se afaste um pouco dos números. — a mãe afirmou concentrada demais na conversa para se dar conta do que se passava no prato do marido. — Além disso, uma folga não vai lhe fazer mal Yuki, você tem se esforçado bastante ultimamente.

—Ela precisaria de uma folga se estivesse fazendo o trabalho direito. — o pai a censurou.

Ele obviamente não estava nada contente com a limpeza das casas de banho das últimas duas semanas, que sempre amanheciam como se alguém tivesse usado ao menos uma deles, e muito menos com os objetos variados que surgiam e desapareciam em lugares aleatórios, não que isso fosse culpa de Yukari, mas certamente também não ajudava a diminuir o estresse do pai.

Yukari baixou a cabeça envergonhada ainda que nada daquilo fosse culpa dela.

—Daisuke. — a mãe o chamou seriamente — Mesmo que Yukari seja a única herdeira e futura proprietária da Pousada e Casa de Banhos Shibuya você não pode mesmo estar querendo que ela simplesmente gaste todos os dias de suas preciosas férias de verão trabalhando aqui. Ela também tem uma vida, sabia?

Diante os olhares irritados de sua esposa e de sua mãe, o homem não teve outra escolha além de recuar e aceitar a derrota com um suspiro.

—Muito bem, tire o dia de folga hoje Yuki.

Com os hashis ele tentou capturar uma de suas omeletes, mas o único som a ser ouvido foi o dos pauzinhos se chocando no prato e surpreso ele percebeu que mais de um quarto de seu desjejum havia desaparecido.

Yukari agradeceu curvando-se solenemente, mas a verdade é que, apesar de ela reclamar tanto sobre ter que trabalhar todos os dias nos negócios da família... Aquilo era basicamente tudo ao que se resumia a vida dela.

Tendo tirado o dia de folga da casa de banhos não havia mais nada que ela pudesse fazer naquela cidade monótona e estagnada, ela até pensou em sair para ao menos tomar um sorvete, mas no final acabou mesmo na sala de casa vendo televisão.

Foi em meio a um bocejo que a sua frente alguém comentou:

—Sua vida é realmente entediante.

Com uma exclamação surpresa Yukari caiu para trás ao olhar para frente e ver uma imensa raposa branca sentada do outro lado da mesinha de centro sobre a qual ela se apoiava antes.

Era grande! Muito maior que uma raposa comum!

Com os olhos fixos na televisão a raposa bocejou, abrindo sua enorme bocarra cheia de dentes pontiagudos que poderiam facilmente arrancar fora a cabeça de Yukari.

—E eu que já achava a minha vida lá em casa chata, mas a sua parece muito mais tediosa. — afirmou.

Em estado de choque apoiando-se na mesinha para se sentar novamente a única coisa que ocorreu a Yukari dizer foi:

—V-você tem uma casa?

A raposa a olhou.

—Bem, é claro que eu tenho uma casa. — respondeu — Não tem banheiro, e é tão pequena que caberia inteira num único quarto daqueles que vocês têm lá na hospedaria e ainda restaria espaço, mas ainda assim é minha casa.

Yukari já ouvira falar de animais falantes em lendas e os vira em vários desenhos e filmes também, mas estar ali conversando cara a cara com uma raposa falante era surreal — chegava a ser até ainda mais inacreditável do que quando a raposa tomara forma humana em seu quarto na noite passada.

Espreguiçando-se e deixando de prestar atenção à televisão a raposa deitou-se no chão, a cabeça e as patas dianteiras aparecendo de um lado da mesinha, a longa cauda e mais da metade inferior do corpo aparecendo do outro lado.

—Eu ia deixar a cidade, não porque você descobriu sobre mim, mas porque já estou cansado daqui. — afirmou cruzando as patas dianteiras e deitando a cabeça sobre elas — Mas aí decidi ficar mais um pouquinho.

Fechou os olhos como se fosse dormir.

—Por quê?

—Por quê? Bem, ontem à noite você me falou de uma raposa que está selada em algum lugar por aqui, não é? — falou de maneira quase preguiçosa.

—Sim... — ela acenou lentamente com a cabeça.

Virando a cabeça em sua direção e olhando-a com olhos semicerrados a raposa disse languidamente:

—Pois então, isso me deixou curioso. Eu quero ver como é um lacre de verdade antes de ir embora. — sorriu de uma forma que, em seu rosto, parecia ser bizarra e sinistra ao mesmo tempo — E é por isso que você vai me levar até lá.

Por alguma razão, novamente Yukari reparou em seus olhos.

Os olhos da raposa eram cinzentos como nuvens de tempestade.

***

Descendo a montanha de forma irritada, um tengu com as asas ocultas afastava com as mãos todos os galhos que surgiam em seu caminho.

Ele poderia expor as asas e descer a montanha voando se quisesse, mas não o fazia porque daquela forma acreditava que seria capaz de procurar mais cuidadosamente pelo pilantra que lhe surrupiara o chapéu.

Fazia, mais ou menos, uma quinzena que Gintsune desaparecera com o chapéu de Satoshi e desde então o tengu vinha procurando aquela raposa traiçoeira de cima a baixo da montanha sem encontrar qualquer pista dela, havia buscado por ele até mesmo na vila dos tengus — na verdade lá fora o primeiro lugar no qual o procurara —, mas, ao que parecia, aquele pilantra já não dava as caras por lá há algum tempo.

Aquela raposa sabia como ele gostava do chapéu e certamente desaparecendo com ele Gintsune queria ver Satoshi agonizar, porque isso fazia bem o estilo dele, e mesmo sabendo disso Satoshi estava louco atrás daquele cara e do seu chapéu.

A montanha fazia parte da vida e da essência de quem Satoshi era, ele era afinal um tengu e não havia lugar como uma montanha para um tengu, era portanto inconcebível que aquela raposa astuta se escondesse dele em sua própria montanha, e ainda assim...!

Satoshi não conseguia encontrá-lo em lugar algum, nem sinal dele ou de seu chapéu.

Suspirando ele entrou na cidade e logo ao fazer isso se trombou com alguém que saia, mas não teve tempo de ver que tipo de youkai era, pois um segundo depois foi involuntariamente engolido pela multidão, era sempre complicado andar ali, de jeito nenhum conseguia se acostumar com toda aquela multidão e agitação tão diferente da pacata vila na qual ele nascera, era tão sufocante que nem sequer podia expor as asas e voar, mesmo se quisesse, não importava quanto tempo passasse ali, Satoshi ainda não conseguia se acostumar. Mas apesar de tudo, fosse pela proximidade com a montanha ou não, uma cidade youkai não o afetava da mesma forma que uma cidade humana.

Havia acabado de se desviar de um bando de crianças correndo e, por causa disso, trombado com alguém que derrubou um vaso de água — e parecia prestes a devorar sua cabeça por isso — quando a viu.

Ela estava saindo da poeirenta ruazinha de Gintsune, vestida em um lindo quimono cor de lavanda a alguns metros dali e ele nem sequer se lembrou de pedir desculpas ao youkai que queria devorar sua cabeça antes de sair correndo atrás dela, erguendo-a do chão pela cintura assim que a alcançou.

— Eu me pergunto o que está fazendo a minha bela esposa hoje. — disse pondo-a no chão.

—Isso eu é que devia perguntar, não é? — sua querida Mayu, a sua bela e amada esposa, perguntou de volta virando-se para ele, com uma das mãos trazia uma panela apoiada no quadril e com a outra espanou uma folha do ombro dele — Você estava na sua vila?

—Parte do tempo. — confirmou, e apontando a panela perguntou: — E isto o que seria?

—Sopa de cogumelo, eu acabei fazendo a mais e pensei em trazer um pouco para Gintsune.

—Então o desgraçado está em casa?! — espantou-se.

Então este era o plano dele afinal, sumir com o chapéu e depois fazê-lo procurar por ele como um tolo de cima a baixo naquela montanha, enquanto o maldito ria-se dele em casa.

—Não. — Mayu lhe respondeu — Desde que saiu para caçar Gintsune ainda não voltou.

Ela estava fazendo uma cara preocupada, Satoshi franziu o cenho tocando com as costas da mão a lateral de seu rosto.

—Vamos, vamos, não faça essa cara. — pediu — Tu sabes tanto quanto eu que ele está bem.

—Será que sei? — ela o olhou e então lhe deu as costas.

Satoshi passou a caminhar ao seu lado.

—É de Gintsune que falamos, afinal. — afirmou.

Ele teria se oferecido para carregar a panela se não soubesse que, ao contrário dela, acabaria a derrubando.

—Ainda assim. — Mayu suspirou — Já faz um mês?

Entre os youkais havia uma noção muito ruim de passagem de tempo, e ela parecia ser pior ainda para Mayu.

—Não, longe disso. — respondeu — Mas é de Gintsune que falamos, tu sabes que volta e meia ele desaparece.

—Isso era antes quando havia humanos. — ela respondeu enfática — Não se preocupa nem um pouco?

—Não, certamente que ele só está querendo nos pregar uma peça. — respondeu passando o braço por sobre o ombro dela e a puxando para beijá-la na testa, ainda que estivessem em público e aquilo fosse um comportamento inaceitável no mundo humano, ali, no entanto, era algo normal — Tu bem sabes que, apesar de o ser às vezes, Gintsune não é realmente nenhuma criança, confia em mim, aquela raposa sabe se cuidar.

Mas, apesar de suas palavras tranquilizadoras, ele definitivamente ainda queria o chapéu de volta.

***

A cidade de Higanbana era uma cidadezinha turística de interior, cercada por muitas colinas e cheia de verde.

E a Casa de Banhos e Pousada Shibuya tinha justamente uma das melhores vistas da cidade estando bem no cume de uma dessas colinas, cujo acesso era feito principalmente por uma larga ladeira que descia pela frente da colina, para os carros e, para os pedestres por uma escadaria de pedra que descia em zigue zague pela lateral da colina em quatro lances de escada com quinze degraus cada, divididos por três patamares, e era dessa mesma escadaria, do terceiro degrau do primeiro lance — se contarmos de cima para baixo — que, reclinado sobre o corrimão de pedra novamente com os cabelos escurecidos que o faziam passar por humano e com o chapéu do tengu sobre a cabeça, Gintsune observava a cidadela imaginando em que ponto dali exatamente estaria lacrada a tal raposa.

Gintsune estava curiosíssimo para saber como seria o selo, pois, até onde sabia, selos podiam ter qualquer forma, desde árvores sagradas e pedras, até objetos como espadas e espelhos, escondidos em cavernas ou templos, ou mesmo a céu aberto — entretanto seria um pouco problemático se estivesse em um templo.

—Bem, você demorou. — disse virando-se — Mostre o caminho.

E gesticulou para que ela fosse à frente, e a garota o obedeceu calada e rigidamente.

—Ei garota. — ele a chamou ao chegar ao primeiro patamar e ela praticamente pulou de susto. — Você ainda está achando que eu vou te devorar?

Rapidamente e claramente com medo ela começou a balançar a cabeça de um lado para o outro e, sem dizer uma palavra sequer, apressou ainda mais os passos, como se quisesse aumentar a distância entre eles.

Gintsune suspirou, pois a verdade... É que ele não estava acostumado com aquilo.

Fosse por nenhum humano normal nunca ter descoberto sobre sua natureza de raposa antes ou por ele ser belo demais, Gintsune não estava acostumado a ser temido por humanos e sim a deslumbrá-los.

Na verdade a única humana que já tivera medo dele, fora a esposa do tengu, e embora tenha sido apenas no inicio ela, ainda assim, parecia muito mais apavorada do que aquela garota agora... Ah sim, Gintsune lembrava bem daquele dia, foi quando o tengu finalmente retornou depois de dez anos fora conhecendo o mundo humano, e ele estava dormindo dentro de sua casa quando ouviu que o chamavam.

—Oooooi! Gintsune! Oooooi!

Uma das orelhas de Gintsune moveu-se e ele abriu apenas um olho.

—Quem...? — resmungou.

—Oooooi! Gintsune! — o chamaram novamente.

De repente reconhecendo a voz, Gintsune ergueu a cabeça.

Aquele idiota! Então ele finalmente tinha voltado?!

Correndo para fora de casa Gintsune simplesmente saltou sobre o tengu, mas o que atravessou a cortina de palha trançada não foi uma raposa branca, foi uma mulher de longos cabelos prateados.

—Está de volta! — gritou pendurando-se em seu pescoço.

Por vezes Gintsune gostava de transformar-se em mulher para constranger aquele tengu porque, devido a sua pouca, ou melhor, nenhuma experiência com mulheres ele sempre se punha desconfortável, tímido, sem saber o que fazer e até bravo, quando o amigo se transformava em mulher o que era extremamente divertido para aquela raposa.

—Q-q-q-q-q-q-que está fazendo maldito?! — gaguejou o tengu alvoroçado sem conseguir afastá-lo justamente por não saber onde poderia ou deveria tocá-lo. — Me solte! Os teus seios, maldito! Os teus seios estão encostando-se a mim! Maldito estás fazendo de propósito!

Em resposta Gintsune apenas riu e pressionou ainda mais os seios contra o tórax do tengu, até perceber que não estavam sós.

Ela estava agarrada ao braço direito do tengu, de rosto baixo e com o chapéu dele na cabeça, tremia dos pés a cabeça e Gintsune percebeu de cara que ela era humana.

—Ei tengu. — chamou afastando-se, seu tom se tornando mais sério e os braços eram cruzados na mesma velocidade em que ele se transformava de mulher para homem com a mesma facilidade que alguém trocaria de chapéu — Que tipo de idiotices você fez entre os humanos?

A princípio o primeiro pensamento de Gintsune fora que o tengu estupidamente acabara tendo seu nome roubado e agora a humana que o governava, de forma mais estúpida ainda, o ordenara a levá-la até o seu próprio mundo onde ela poderia roubar mais nomes de outros youkais.

Mas o tengu ergueu a mão livre como que para apaziguá-lo, mas antes de falar com ele voltou-se para a humana e disse como quem conta um segredo:

—Este é meu querido amigo de quem te falei, não te preocupas que ele não lhe fará mal. — e então se virando novamente para ele pediu — Podemos entrar, meu irmão?

Quando Gintsune os deixou entrar e o tengu contou tudo, a raposa percebeu que toda aquela idiotice era ainda maior do que ele pensara a principio.

—Estúpido, estúpido! Estúpido tengu! — Gintsune se irritara agarrando ambas as bochechas do tengu e as puxando — O quão estúpido você acha que tem o direito de ser?!

E cansado atirou-se para trás deitando-se no chão com os braços abertos.

—Então o que pensa em fazer agora? — perguntou olhando para o teto.

—Agora? — repetiu o tengu.

Gintsune fechou os olhos com irritação e perguntou por entre os dentes.

—Maldito... Trouxestes essa menina do mundo humano e sequer sabe o que vai fazer agora? — furioso ele sentou-se e atirou uma pedra no tengu, que quicou em sua cabeça como se ela fosse oca, talvez o fosse mesmo, e transformou-se numa folha em pleno ar — Idiota! Há um limite para o quão idiota alguém pode ser! Mesmo um tengu estúpido como você!

O tengu se limitou a sorrir de maneira idiota, sequer se importando com a pedrada que levara.

—Sinto muito amigo, parece que só lhe causo problemas, não?

Gintsune queria muito esganá-lo! É sério!

—Ah, deixa estar. — suspirou baixando a cabeça com desistência — Por agora se preocupa com o que vai dizer na sua vila.

—Dizer na minha vila...?

Gintsune ergueu a cabeça, uma veia quase pulsando aparente na testa.

—Sim, que te deixastes cativar por uma garotinha humana simplória qualquer, e ainda por cima a trouxe para cá e... Esqueci alguma coisa? Ah sim... — de repente ele agarrou o tengu pela frente do quimono e o sacudiu como a um boneco gritando a plenos pulmões — QUE DEU PARTE DE TUA ENERGIA VITAL PARA ELA! POR ACASO É IDIOTA?!

Não era qualquer um que conseguia irritar Gintsune, na verdade, por natureza ele era uma raposa bem calma e despreocupada e até pacifica, mas naquele momento estava tão furioso que a cauda e as orelhas já estavam inclusive à mostra e se não se controlasse um pouco ia acabar cuspindo fogo ali.

O tengu, depois de uma boa sacudida no cérebro, pareceu finalmente começar a compreender a gravidade da situação e tornou-se branco como papel.

—Mas... Como explicarei isso?

—Isso já não é problema meu! — ele largou o tengu e deitou-se de costas para ele, com a cabeça apoiada na mão — E vá logo que a sua estupidez me irrita! Se eu não fosse tão bonito garanto que já teria cansado a minha beleza! Quanto antes for melhor, pode deixar a garota aqui que eu cuido dela.

 Ele viu por pálpebras entreabertas a garota, calada e recolhida no canto até então, arregalar os olhos ao ouvir aquilo.

—Deixá-la... Aqui? — ouviu o tengu balbuciar.

—Claro. — Gintsune nem se dignou a olhá-lo — Não pode levá-la a sua vila, sabe disso, e também não pode deixar uma humana sozinha num lugar desses, estava esperando deixá-la esperando do lado de fora da vila? Nem sabe quanto tempo levaria... É por isso que digo para deixá-la aqui, não se preocupe eu cuido dela, e prometo que não tocarei nela.

—Tudo bem... — ele ouviu o tengu levantar-se e o som da madeira rangendo conforme seus passos o levavam para a saída, mas antes de sair parou por um momento para falar com a garota — Então fica aqui, certo? Gintsune te protegerá com a vida dele se preciso.

Gintsune girou os olhos, fracamente ele não diria que iria tão longe assim.

—Tengu! — chamou ainda mal humorado — Não esqueça o seu chapéu, idiota!

Sem olhar para trás pegou o chapéu e o arremessou girando por cima do ombro, e só depois do tengu sair e de Gintsune ter certeza de que ele realmente havia ido embora foi que se levantou.

—Você está com fome? — perguntou — Aquele tengu não conhece quase nada sobre humanos então tenho certeza que ele nem sequer te alimentou adequadamente na viagem até aqui. Eu posso ir procurar alguma coisa que seja comestível para você se quiser...

Mas ela permanecia calada e sentada rigidamente sobre os tornozelos, Gintsune se aproximou.

—Ei, não precisa ter medo, aquele tengu disse que eu te protegeria, não disse? Claro que eu não daria a minha vida por você, isso seria estúpido e um desperdício, mas você deve ficar bem desde que não saia daqui, ninguém seria idiota o bastante para invadir a minha casa. Entendeu? Por isso não há com o que se preocupar... 

Ele aproximou a mão de sua cabeça, para acariciá-la, como um adulto faz com uma criança, ou uma pessoa qualquer com um bichinho bonitinho.

—Pare, por favor!

A garota gritou de repente, foram suas primeiras palavras desde que chegara até ali e pegaram Gintsune de surpresa de tal forma que ele saltou para o outro lado da cabana.

Suspirando Gintsune pôs uma mão sobre o quadril e levou dois dedos à testa.

—Escute, eu sei que disse ao tengu que não te tocaria, mas eu estava me referindo... — começou a dizer de forma aborrecida.

—Não é isso. — ela o interrompeu — É que... É que... Não é certo eu está aqui sozinha com um homem que sequer é da minha família!

Deixando os braços caírem de lado Gintsune a olhou com uma expressão cansada de quem não acreditava no que estava ouvindo.

—Depois de ter fugido de casa com um youkai e abandonado a sua família às vésperas de seu casamento está falando sério mesmo? — mas ela permanecia rigidamente sentada, encarando as mãos firmemente apertadas sobre o colo, com o rosto tornando-se cada vez mais vermelho e a beira das lágrimas de tanta tensão, a raposa suspirou — Entendi, entendi. Você por acaso se sentiria mais confortável se eu me parecesse assim?

E diante dos olhos dela ele assumiu uma forma feminina.

O tengu levou ainda duas semanas para voltar, durante as quais a mulher adoeceu e recuperou-se sem que ele sequer tomasse conhecimento, e quando retornou trazia a noticia de que havia sido parcialmente exilado: ele ainda podia ir até a vila sempre que quisesse, mas enquanto permanecesse com a mulher não poderia voltar a morar lá, e tampouco ela teria o direito de pisar na vila deles.

Talvez esperassem que ele se cansasse logo daquela vida e abandonasse a mulher para retornar à vila, mas ele não a abandonou.

E durante as duas semanas em que Gintsune e a garota esperaram por ele Gintsune permaneceu durante a maior parte do tempo como mulher e quando não, como raposa, porque é sempre mais fácil para alguém, seja humano ou youkai, confiar em quem é seu igual, crianças se relacionam melhor com outras crianças, homens com outros homens e mulheres... Com outras mulheres.

—Ei garota! — Gintsune chamou pela menina de tranças que o guiava.

Estavam agora passando por um beco pequeno e deserto entre duas casas de muros altos — ela parecia estar propositalmente tomando o caminho com o menor número de pessoas possível.

—S-sim?

Mas quando Yukari virou-se percebeu que havia algo de errado, a começar pelo fato de agora a raposa ter seios.

Inclinando-se levemente para frente com uma mão sobre as coxas e a ponta dos dedos da outra tocando delicadamente o ponto entre as clavículas deixando ainda mais evidente os seios praticamente amostra naquele quimono que já fora vestido de forma totalmente desleixada e agora ainda por cima ficava-lhe folgado a raposa lhe sorriu e disse mansamente:

—Você por acaso se sentiria mais confortável se eu me parecesse assim?

Quase em choque Yukari afastou-se recuando uns três passos.

—Você... Você se disfarçou de mulher?!

—Ah... Mas eu não me disfarcei, eu me transformei. — disse de forma quase manhosa, aproximando-se na mesma proporção que Yukari se afastava — E quando eu me transformo em mulher eu realmente sou uma... Quer ver...?

Perguntou já afastando um dos lados da parte de superior do quimono já mostrando um ombro e quase expondo algo mais.

—Pare, por favor! — Yukari desviou o olhar erguendo as duas mãos — Volte a ser homem.

—Tudo bem. — a raposa escondeu as mãos sob as mangas e tornou-se novamente um homem com a mesma facilidade com a qual um polvo mudava de cor. — Apenas achei que ficaria mais confortável na companhia de uma mulher.

—De que jeito eu poderia ficar confortável assim? — ela resmungou baixando os braços.

—O que disse? — a raposa perguntou.

—Eu disse... Como eu poderia me sentir mais confortável com você agindo de forma tão constrangedora?!

Yukari estava nervosa, muito nervosa, e quando ficava nervosa tendia a falar coisas desnecessárias, mas ela simplesmente não podia acreditar, o rosto estava fervendo de vergonha, como aquela raposa podia se comportar daquele jeito?! De maneira tão leviana?! E ainda por cima... Como era possível que mesmo cobrindo o rosto ele ainda fosse claramente mais bonito que ela... Mesmo estando disfarçado como mulher?!

— É assim que você retribui minha consideração com você? — ele reclamou — Eu não quero ouvir isso de uma garota mais do que comum como você!

Yukari parou, e olhou seriamente para a raposa por sobre o ombro.

—“Mais que comum” você disse? O que isso quer dizer?

—Ah eu estava me perguntando isso há algum tempo já. — ele respondeu virando o rosto de lado parecendo fazer beicinho enquanto enrolava uma mexa de cabelo em um dos dedos, claramente agindo como uma mulher fazendo birra apesar de ser um homem — Eu vi roupas, acessórios, maquiagens e cabelos tão bonitos naquelas revistas que por um momento cheguei a pensar que os humanos haviam se refinado, mesmo que apenas um pouquinho.

—Então foi realmente você quem bagunçou meu quarto! — ela acusou virando-se.

—E quem mais teria sido? — admitiu despreocupado. — De qualquer forma quanto mais ando pela cidade menos parece que os humanos mudaram, continuam simples e nada impressionantes como sempre... Mas você é a pior de todas. — ele suspirou deixando os braços cair como se realmente estivesse decepcionado — Minha nossa, que tipo de roupas são essas e esse cabelo então? Admito que antes eu tinha ficado impressionado por agora mulheres poderem andar sozinhas na rua, e ainda serem permitidas usarem roupas que deixam os braços e até dos joelhos para baixo a mostra, mas quando vi aqueles outros tipos de roupas em revistas... Percebi como na verdade as pessoas daqui se vestem todas cafonas e sem graça. Onde estão as pessoas interessantes das revistas?

Aquela raposa arrogante...!

Yukari virou-se cruzando os braços.

—Bem, me desculpe por essa ser uma cidadezinha de interior parada e sem graça e pelas pessoas daqui não estarem habituadas com roupas extravagantes ou o estilo sofisticado dos ocidentais que se usa nas cidades grandes.

A raposa cruzou os braços.

—Cidadezinha de interior? Estilo ocidental? — perguntou inclinando a cabeça de lado.

—Sim, me desculpe senhor raposa, mas essa aqui é apenas uma cidadezinha de fim de mundo. — disse entre dentes — E eu sou apenas uma pobre caipira nascida aqui nessa cidade simples, por isso perdoe-me se sou muito mais que comum para você.

Gintsune levou a mão ao queixo.

—Entendi então isso aqui é só uma cidadezinha de fim de mundo. — murmurou consigo mesmo. — Eu não tinha percebido porque apesar de menos movimentada ela ainda parece mais avançada do que as últimas cidades humanas que conheci... Como é mesmo o nome desse lugar? Higanbana? E ainda parece um lugar novo... Entendi, entendi. Então como será que está a cidade de Edo agora? Será que mudou muito? Não, espere, acho que da última vez que estive lá ela tinha recentemente mudado o nome para Tóquio...

—Ei senhor raposa. — a garota de tranças o chamou tirando-o de seus devaneios, ao que parece ela saíra do beco sem sequer ele perceber e acabara voltando para buscá-lo. — Aquilo que queria ver está logo ali.

—Ah, então já chegamos? — perguntou e num único salto se colocou ao lado dela.

Ela confirmou com um aceno de cabeça e apontou o outro lado da rua.

—Fica logo ali naquela praça, pode vê-la daqui mesmo até.

Do outro lado da rua havia uma praça cercada por grades de ferro.

E no centro dessa praça um lago.

E no centro deste lago uma raposa de pedra sentava-se.

Gintsune juntou as palmas das mãos.

 —Então é ali! — exclamou.

E animado saltou para o outro lado da rua, parecendo sequer se importar se alguém o veria ou não e correu para dentro na praça sem olhar para trás.

Yukari deu meia volta para retornar para casa... Mas parou.

E diferente da raposa, ela olhou para trás.

...

Gintsune estava dando a volta no lago até encontrar uma posição em que fosse capaz de encarar a raposa de pedra diretamente de frente.

—Ei garota, por que está me seguindo? — Ele não precisava olhar para trás para saber que ela estava lá.

E de fato Yukari o seguia, olhando impassível para o lago que rodeavam naquele momento. Dizia-se que a raposa permanecia selada em escuridão na ilha no centro do lago, mas para Yukari tudo não passava de uma grande hipérbole.

Pois o lago não devia ter mais que trinta metros de diâmetro em seu ponto mais largo e em seu ponto mais profundo a água mal ultrapassava a altura de seu umbigo, a própria “ilha” em si onde estava sentada a raposa de pedra, não era, na verdade, nada mais que uma rocha e ainda que fosse, pelo menos, duas vezes maior que Yukari, ainda não chegava a ser uma ilha.

—Desde que nasci eu venho vivendo uma vida tediosa e monótona neste lugar estagnado no tempo que parece nunca mudar, é sempre bom quando os turistas vêm porque eles tiram um pouco do ar monótono daqui, mas até hoje a coisa mais emocionante que já me aconteceu num verão, quando não há qualquer vestígio de turistas, foi a sua aparição. — respondeu calmamente — E você disse que iria embora depois de ver onde a Raposa de Higanbana estava lacrada, por isso, mesmo que pretenda me devorar...

—Ei...! — ele começou a protestar.

Mas ela não lhe deu ouvidos, parando quando finalmente se encontraram numa posição que os punha frente a frente com a raposa de pedra.

—... Ou que liberte a tal raposa e cause uma grande calamidade, eu ainda quero ficar e ver o final da história. Porque, basicamente, não tenho nada melhor para fazer.

—Então a coisa mais emocionante que já aconteceu na sua vida foi ter pensado que seria devorada por uma raposa? Não me admira que tenha ficado tão obcecada e se recusado a acreditar que apenas sonhara comigo. — Gintsune comentou segurando um cotovelo enquanto levava uma mão ao queixo — Isso é meio triste sabia?

Yukari o fuzilou com os olhos.

—Não preciso da sua piedade!

—Eu só estava dizendo. — ele bocejou e virou-se para frente.

No centro do lago uma imensa rocha erguia-se e sobre essa rocha sentava-se uma raposa de pedra com uma grande esfera bem segura entre os dentes que em nada parecia diferir das centenas de raposas de pedra presentes nos templos de Inari.

—Francamente é um pouco decepcionante para a principal lenda da cidade. — a garota voltou a falar ao seu lado.

—Principal lenda da cidade?

—Eu lhe disse que turistas vêm a Higanbana todos os anos com exceção de quando estamos no verão, não é? — ela gesticulou fazendo círculos com a mão — O principal atrativo de Higanbana para os turistas é, além das fontes termais, as lendas daqui que parecem brotar tão naturalmente aqui como as próprias higanbanas. E a lenda da Raposa de Higanbana é a principal delas.

—Ah... — Gintsune murmurou um pouco decepcionado — Então isso aqui na verdade não é um selo de verdade e não passa de uma “armadilha para turistas”?

Este era um termo que ele tinha aprendido com alguns rapazes com quem saíra num dos dias em que se divertira pela cidade, segundo eles toda a cidade era uma grande “armadilha para turistas”.

Yukari o olhou de lado, sinceramente aquilo fora o que ela sempre pensara a respeito de tudo aquilo, mas estando agora bem ali lado a lado conversando com uma raposa de verdade como ela podia dizer com certeza que a Raposa de Higanbana também era ou não real?

—Quem sabe? — respondeu por fim.

—Ah... E eu estava tão animado, pensei que finalmente veria um lacre de verdade. — ele reclamou desanimado agachando-se a beira do lago — Minha mãe, ou talvez meu pai, sempre me contavam histórias assustadoras de youkais que foram lacrados ou exterminados... Mas eu nunca vi nada assim. E no fim isto aqui é apenas uma falsificação...

E ele não parava de se lamentar, como uma criança.

Ele podia ser uma raposa, mas — por mais extraordinário que isso fosse — no fim não era muito diferente dos milhares de turistas que vinham até ali.

Perdendo o interesse Yukari girou os olhos e preparou-se para ir embora.

Mas então a raposa gritou.

Puxando a mão para trás e agarrando o pulso Gintsune caiu para trás sentado na grama, os cabelos escuros tornando-se prateados num piscar de olhos, as orelhas de raposa saltaram por debaixo do chapéu e a cauda cresceu sob o quimono.

—O que houve?! O que houve?! — Yukari perguntou de repente assustada ajoelhando-se ao seu lado.

—A água... — a raposa respondeu quase em choque — Queimou-me.

—Queimou você? —Yukari olhou para o lago — Como a água pode tê-lo queimado?

Ela mesma então encostou levemente os dedos na água, e até passeou-os em círculos levemente pela superfície, mas nada aconteceu.

Recolhendo a mão ela sacudiu os dedos e os enxugou na blusa.

—Não há nada errado com a... — mas quando voltou a olhar para a raposa, percebeu que ele sorria.

—Então é legitimo. — disse, mas ele não sentiu necessidade de disfarçar mais os cabelos ou recolher as orelhas e a cauda, já que estavam sozinhos ali.

—O que?

—O lacre é legitimo, por isso quando toquei a água senti como se queimasse, ela tentou purificar-me. — explicou. — Ah... Ainda bem que não foi a minha mão esquerda...

Yukari olhou surpresa para a raposa de pedra que, de repente, não parecia mais tão ordinária, e de volta para a raposa de carne e osso a sua frente que, com a mão ilesa, desfazia o laço sob o queixo que prendia o chapéu de palha em sua cabeça.

—Então está me dizendo que ali realmente...!

A raposa tirou o chapéu.

E ele era se é que isto é possível, ainda mais belo do que Yukari se lembrava — mas quem é que liga para o que era ou não possível ali? Ela estava afinal, lidando com uma raposa, o fantástico em pessoa.

Porque não havia palavra melhor para descrever tamanha beleza, que de cara logo se via que não podia pertencer a nenhum humano, do que aquela: Fantástico.

—Eu não posso te dizer com certeza que é uma raposa que está lacrada ali, mas com certeza há alguma coisa. — ele lhe garantiu.

Mas estranhando quando a garota não lhe respondeu nada Gintsune a olhou, e então se deparou com um olhar que muito já conhecia, pois já o vira no rosto de centenas de milhares de humanos e youkais.

Sorrindo de lado Gintsune passou o braço direito em volta dos joelhos e apoiou o cotovelo esquerdo sobre eles, descansando o rosto sobre a mão esquerda, cujo pulso era adornado por uma finíssima pulseira prateada.

—Hum... O que foi? Por que me olha desse jeito? — perguntou cinicamente — Será que já se apaixonou por mim?

Piscando a garota pareceu voltar à realidade.

—O que? Nem pensar! Mas a sua mão, ela está ferida, não é?

—Hum... — ele ergueu a mão e virou-a lentamente de um lado para o outro em frente ao rosto, certamente havia se queimado, estava vermelha e ardia, mas... — Na verdade não é nada demais.

—Não diga besteiras isso está parecendo uma queimadura de primeiro grau! — ela o repreendeu — Me dê aqui a sua mão, quero pelo menos enfaixá-la!

—O que? Eu já disse...

Só que sem deixá-lo falar ela puxou seu braço para si e, deixando-o ainda mais surpreso ouviu o som que o tecido faz ao se rasgar quando a garota levou um pedaço da saia aos dentes e o rasgou para enfaixa-lhe a mão com ele.

—Hum... — murmurou virando-se totalmente para ela apoiando o rosto na mão livre enquanto permitia que ela enfaixasse a outra. — Então você realmente se apaixonou por mim...

—Já disse que não é isso! — ela respondeu irritada voltando a se concentrar em enfaixar-lhe a mão, quando terminou Gintsune recolheu a mão de volta para ver o resultado e ela, sem erguer o rosto, recomeçou a falar. — Então... Aquela raposa... Pretende libertá-la?

Gintsune olhou-a de forma cansada como se até pensar nisso o cansasse.

—Libertá-la? Por que eu libertaria um bicho burro desses?

—O que?! — ela o olhou surpresa.

—Se esse bicho foi estúpido o suficiente para perder para um humano e ainda ser lacrado ele, no mínimo, merece a punição que tem. — respondeu olhando para a estátua.

—Que cruel.

—Além do mais... — ele continuou.

—Além do mais...?

—Na primeira vez você tinha me confundido com esse aí. — indicou a estátua com um movimento do queixo — Disse que “eu fui lacrado justamente por devorar humanos”, então porque eu libertaria um tipo desses? Que fique aí pela eternidade.

Yukari olhou-o, mas não sabia mais o que pensar. De repente ele não parecia mais tão cruel assim... E ainda assim parecia mais cruel do que antes.

—Mas... — ele voltou a falar — Você sabe me dizer? Como aconteceu?

Ela sorriu pacificamente inclinando a cabeça de lado e sentou-se sobre os tornozelos.

—Claro. — respondeu — Diz a lenda, que há muito, muito tempo...

E assim Yukari contou a uma raposa a lenda que ouvira inúmeras vezes desde que era apenas uma menininha.

A lenda da Raposa de Higanbana.

Quando terminou de contar a raposa ficou em silêncio por um longo, longo tempo.

—Entendo, então foi isso o que aconteceu. — ele disse quando finalmente voltou a falar, levantando-se e pegando o chapéu que deixara sobre a grama — Mas que pena para aquele exterminador estúpido, dedicou toda a sua vida a uma vingança idiota e nem sequer pegou a raposa certa. Idiota.

Yukari o olhou surpresa, com os olhos arregalados.

—Como assim?!

—E além do mais tem uma coisa que está errada na sua história. — ele recolocou o chapéu e inclinou levemente a cabeça em sua direção — É que não foi por inveja que a irmã do exterminador foi levada...

E diante de seus olhos a raposa desapareceu, como se nunca houvesse estado ali.

No entanto... Suas palavras ficaram.

Foi por amor.


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Notas finais do capítulo

Originalmente "A Lenda da Raposa de Higanbana" era o titulo só desse capitulo, enquanto a história chamava-se simplesmente "Gintsune", mas depois acabei colocando "A Lenda da Raposa de Higanbana" como titulo da história em si e tendo que arranjar outro nome para o capitulo... Mas na verdade informalmente eu continuo chamando-a de "Gintsune" kkkkk

Curiosidade do Japão:

Inari é uma das principais divindades do Xintoismo no Japão é a protetora das raposas e representa prosperidade na agricultura e nos negócios, sua representação varia de acordo com a região, podendo ser, principalmente, uma bela e jovem mulher ou um ancião com uma longa barba branca segurando fardos de arroz, entretanto, independente da forma que assuma, a divindade sempre se faz acompanhar de duas raposas brancas.



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