A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 47
46: Não pode evitar.


Notas iniciais do capítulo

É Sexta-Feira 13, mas vocês estão com sorte, porque temos capítulo novo! XD

Glossário:

Aneue: irmã mais velha.

Kappogi: é um tipo de bata, originário do Japão. Projetado inicialmente para proteger o quimono de manchas ao cozinhar, ele tem mangas largas com punhos franzidos terminando logo após o cotovelo, e o torso desce até os joelhos do usuário. Fecha-se por meio de tiras de pano que são amarradas na nuca e na cintura.



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Sendo uma criatura extremamente passional, Furin se desesperava com a frieza de sua linda flor e lamentava que ela fosse tão indiferente a tudo e todos que não fosse seu encantador irmãozinho To-chan — que as duas concordavam ser a criatura mais preciosa do mundo, apesar dos protestos em forma de rosnados do pai —, mas, embora nunca retrucasse, Momiji discordava completamente dessa opinião, pois ela era sim muito capaz de grande emoção e encanto.

Pois mesmo ela era capaz de ver e admitir que os humanos, que em grande parte eram apenas reles macacos grosseiros, podiam sim ter entre seus exemplares, alguns capazes de sensibilidade e verdadeira beleza.

Poucas pessoas podiam pensar em gelo como algo belo, mas ali estava ela, completamente sem fôlego.

Momiji sempre considerou como um de seus maiores prazeres da vida apreciar as estações no auge de sua beleza e, para o inverno, Hokkaido era seu destino favorito.

Então dessa vez sua escolha havia sido o desfiladeiro de Sounkyo, em Kamikawa, cujas cachoeiras “Via Láctea” e “Estrela Cadente” eram de uma beleza arrebatadora, mas o que encontrou ali foi algo muito além de suas expectativas…! Parece que mesmo sendo majoritariamente uma raça de reles macacos grosseiros, os humanos sempre encontravam formas de surpreendê-la com toda sua criatividade e delicadeza.

As cachoeiras congeladas haviam sido esculpidas impecavelmente por artistas de mãos habilidosas e ganhado vida com um show de luzes coloridas e transformado as várias galerias de gelo no que parecia ser uma passagem mágica para outro mundo.

Esse era o Festival da Queda de Gelo.

Graças à sua altura e beleza superiores, longos cabelos prateados, olhos dourados e vestes tradicionais, Momiji era alguém que chamava atenção onde quer que fosse pelo mundo humano, então era apenas natural que várias cabeças se voltassem em sua direção enquanto a elegante dama passava por entre eles com sua wagasa aberta sobre a cabeça, protegendo-a dos flocos de neve que caíam rodopiando do céu, mas tudo bem, pois era ela quem estava no território deles, no festival deles, e estavam todos ali para compartilhar seu mesmo fascínio e amor pela beleza, e poderiam muito bem conviver em perfeita harmonia… desde que nenhum daqueles macacos cometesse a grosseira imprudência de tentar deliberadamente tocá-la e fotografá-la como se fosse uma das peças de gelo expostas para apreciação pública.

Afinal Momiji possuía sim um coração sensível e capaz de ser tocado, e fora essa a principal razão — e talvez um pouco do quanto sua mãe a sufocava — do porquê ela deixara os pais e seu auspicioso príncipe para trás e passara a viajar pelo país sempre seguindo as estações… mas havia deixado uma parte de si com ele, para que pudesse contatá-la sempre e quando precisasse.

Ainda assim, ele nunca quis incomodá-la — como se algo que seu adorável príncipe pudesse fazer realmente pudesse incomodá-la — e em todos aqueles séculos ele nunca havia chamado por ela… até hoje.

Momiji havia apenas acabado de fechar sua wagasa e adentrar por um dos vários corredores de gelo quando aquela voz a atingiu.

“Masami!”.

Foi quase como ser atingida por um raio ou, pelo menos, como a sensação deveria se parecer para criaturas não elétricas e, com os olhos arregalados, Momiji levou uma mão ao peito sentindo o coração acelerado.

—Senhorita? Está tudo bem com você…? — um dos visitantes do festival fez menção de se aproximar.

Mas Momiji afastou o humano inconveniente com um aceno impaciente de mão e, tão rápido quando foi capaz, embrenhou-se por alguns corredores mais vazios e estreitos, antes do próximo chamado alcançá-la:

 “Masami!”

Todo o corpo da dama raposa pulsou e paralisou quando o chamado ressoou dentro de seu crânio, ela quase não pôde reconhecer a voz de seu auspicioso príncipe, pois ela continuou vinda de todas as direções e de nenhuma ao mesmo tempo confundindo seus sentidos:

“Masami venha!”

Surpreendida, ela arqueou as costas e abraçou-se fincando as garras nos próprios braços, com um curto e baixo grito de dor quando uma onda de calor repentina cresceu e espalhou-se rapidamente por seu interior, queimando suas entranhas até que um repentino clarão a cegou.

Piscando, Momiji deu-se conta de que seu entorno era completamente diferente agora e já não estava mais na área de belas geleiras coloridas do festival em Hokkaido e sim em uma área arborizada de alguma zona desconhecida, mas não lhe importava onde estava, pois seu auspicioso príncipe a havia chamado.

Mas onde ele estava? O que tinha lhe acontecido?  Momiji virou-se de um lado para o outro, preocupada e levando a mão, que segurava a sombrinha, ao peito, enquanto correntes elétricas brancas subiam-lhe pelo outro braço, certamente aquela mulher desprezível havia…!

Um rastro prateado cruzou sua visão periférica.

—Pare aí seu pilantrinha sujo!

Gintsune ladrou irritado em sua perseguição.

A presa dele parecia ser uma criaturinha pequena, rápida e escura, o que a tornava difícil de ser vista à noite e, além dela, havia três pequenas criaturas brilhantes e velozes ao encalço de seu príncipe, mas To-chan a perseguia tão empenhado que nem parecia ter notado elas ou a chegada da irmã.

E definitivamente não parecia em perigo, machucado ou magoado, o que era bom, mas o que estava acontecendo ali? Não era comum ver To-chan irritado assim.

E agora eles estavam vindo na direção dela.

Ainda com as fagulhas estalando na mão livre e a outra sobre o peito, Momiji semicerrou os olhos e deu um passo para trás ocultando-se ao lado de uma árvore, esperando que eles se aproximassem.

—Quando eu te pegar, sua bola imunda de lodo com olhos, eu vou enfiar seu nariz atrás das…!

Aí vinham eles, Momiji então esticou uma perna para frente, delicadamente.

Como esperado, a “bola imunda de lodo com olhos” tropeçou ali e, na velocidade em que estava, acabou por dar varias cambalhotas antes de estatelar-se no chão.

—Oi! — regougou com uma voizinha aguda — Vê se toma cuidado seu o…!

 Porém o olhar da criatura recém-chegada, carregado de fria e perigosa hostilidade o fez esquecer o que ia dizer, quase imediatamente.

Aquela minúscula criaturinha suja não parecia ser perigosa, e não podia ser a razão pela qual seu querido To-chan a havia convocado pela primeira vez em séculos…

—Irmã! — To-chan saltou em seus braços com um tamanho muito mais diminuto, fofo e calmo do que instantes antes, dissipando automaticamente as centelhas de Momiji e a fazendo derrubar a wagasa quando ela aconchegou-o em seu colo. — Quando chegou? O que está fazendo aqui?

—Você me chamou até aqui. — Momiji respondeu acariciando-lhe o topo da cabeça entre as orelhas fofas. — Não se deu conta, querido?

A flor!

A delicada e fria filhote primogênita de seus pais.

É claro que sim, Anko já devia saber disso, uma mulher como sua mãe que havia se apaixonado por aquela fera aterradora, certamente teria um conceito deturpado também de delicadeza e gentileza.

Anko mostrou as presas recuando cautelosamente… antes de sua cabeça ser empurrada contra o chão e ele engolir um grande torrão de terra.

—É terrível irmã!

Um clone de Gintsune em forma humana exclamou com olhos arregalados, enquanto o original permanecia confortavelmente aconchegado nos braços da irmã e, de repente, as três minúsculas criaturas brilhantes de antes se enxamearam em torno da cabeça dela.

—É a jovem dama! — comemoraram estridentes — Finalmente temos os filhotes reunidos, a mestra ficará tão feliz!

—To-chan. — Momiji piscou confusa e sem saber se olhava para a adorável bolinha de pelos em seus braços, ou para o lindo rapaz segurando a bola de sujeira fedendo a carniça — O que está acontecendo?

—Nossos pais enviaram criados à nossa procura! — o irmãozinho relatou equilibrando-se desesperadamente nas patinhas traseiras e apoiando as patinhas dianteiras no peito dela.

—E os encontramos! — comemoraram os pequenos criados, vibrando de empolgação — O jovem mestre tinha razão…!

—O jovem mestre veio pela mulher tediosa!

—E a pequena dama veio por ele!

—O jovem mestre é genial, a mestra e o mestre ficarão orgulhosos!

Eles gritaram e se afastaram momentaneamente, quando To-chan ladrou e tentou saltar para abocanhar algum deles, enquanto Momiji observava-os ainda desconcertada.

—Como eles chegaram a esse mundo?

—Mais importante que isso irmã: — o clone exclamou cobrindo a boca e o nariz com a mão livre enquanto erguia a criaturinha selvagem que rosnava e debatia-se: — Mesmo já tendo dois brilhantes e belos filhotes como nós, aparentemente eles tiveram mais essa coisa aqui também!

—Como disse? — Momiji entreabriu os lábios, com expressão chocada, esquecendo-se completamente dos pequenos insetos se avultando em torno de sua cabeça, comemorando — Um filhote de nossos pais?

A pequena coisa suja contorceu-se e coçou o que, provavelmente, era uma orelha.

—E aí, aneue? — ele mostrou-lhe as pequenas presinhas brancas e perfeitas.

Ele tinha os olhos de mamãe e o sorriso de papai!

—Oh. — Momiji emocionou-se cobrindo os lábios com a ponta dos dedos — To-chan, ele é tão… adorável!

As duas versões de To-chan e o filhote de olhos dourados paralisaram.

—Hã?!

Momiji ajoelhou-se, e estendeu a mão para o pequeno filhote.

—Como se chama bebê?

—Não sou nenhum bebê!

O bebê tentou arrancar-lhe o dedo com as presas afiadas, e ela riu retraindo a mão.

—Oi! — To-chan o sacudiu — Mais respeito!

—To-chan cuidado, ele ainda é muito pequeno!

Momiji o censurou colocando o irmão delicadamente no chão e então puxando as mangas para cobrir as mãos antes de pegar o novo e adorável irmãozinho.

—Vai ter que jogar essa roupa fora, viu? — To-chan reclamou sentando-se ao lado dela e vendo-a aconchegar o novo bebê no colo. — E queimá-las!

—Por que ele está cheirando dessa forma? — ela enrugou delicadamente o nariz, distorcendo levemente as expressões nobres.

O filhote começou a arranhar e debater-se tentando escapar desesperadamente, mas se acalmou rapidamente quando Momiji o apertou um pouco mais e deixou-o momentaneamente tonto e sem ar.

Adorável.

—Eu sei, não é? Quase o confundi com um animal morto. — To-chan deitou-se cobrindo o focinho com as patinhas, ao mesmo tempo em que o clone tampava o nariz — Mas já estava assim quando o encontrei.

—Serviçais. — a voz de Momiji estalou com um chicote, quando ela colocou-se de pé regiamente.

—Estamos aqui, pequena dama! — os criados responderam imediatamente ao chamado, enfileirando-se diante dela.

Momiji manteve o filhote negro bem preso em seus braços.

—Comecem a explicar. — ordenou. — Do começo.

As pequenas raposas tubo estremeceram ansiosas.

—A mestra estava muito chateada…! — disse a primeira.

—Muito chateada!  — acrescentou a segunda.

—E completamente despedaçada com seus filhotes desnaturados…! — retomou a primeira.

—Como sofre a nossa mestra! — a terceira raposinha estremeceu abraçando a si mesma, com se inclusive pudesse sentir os raios de sua mestra atravessando-o naquele exato momento.

Foi quando o filhote negro escapuliu por baixo de uma brecha nos braços da irmã, e pousou no chão reassumindo sua forma humana.

—Eu me chamo Kazuki, sou o terceiro filhote da união entre a raposa feiticeira Fuuko e a besta prateada Katsuo. — ele apresentou-se formalmente com um joelho no chão e o antebraço esquerdo apoiado sobre o joelho erguido enquanto levava a outra mão ao coração — E fui enviado aqui para rastrear e capturar seus filhotes desgarrados!

Talvez ele parecesse um pouco mais solene e convincente se não fosse um fedelho imundo e fedido.

De volta à forma humana Gintsune sentou-se no chão ao lado da irmã.

—Isso é o que ele diz irmã. — afirmou com um bocejo entediado — Infelizmente ele sabe nossos nomes e os criados o reconhecem, mesmo que sejam bastante fáceis de enganar para tudo há um limite, então temo que não haja como negar a linhagem, e saber que nossos pais geraram essa criatura selvagem e suja mesmo depois de ter tido dois lindos filhotes como nós deve ter sido a notícia mais chocante que recebi desde que o tengu veio até mim e disse que a esposinha estava com medo de por um ovo gigante… e aquilo ainda pareceu mais provável do que essa falácia que o pirralho está tentando nos empurrar.

—Oi idiota, o que quer dizer com falácia?! — o filhote negro se eriçou.

Gintsune enrijeceu os músculos, como se estivesse preparado para saltar sobre o filhote ou ser atacado por ele, porém ambos foram obrigados a se aquietarem quando a eletricidade estalou no ar.

—Mamãe sempre foi impulsiva e inconstante, e comumente abandonava seus filhotes sem aviso e sumia para ir brincar com reles humanos. — Momiji comentou enquanto parecia avaliar friamente o seu novo irmão — Mas ainda assim ela nunca absolutamente nos deixava fora de sua proteção: nunca se afastava demais, sempre nos mantinha no interior de seu território, imbuídos de feitiços protetores e vigiados, mesmo que não os percebêssemos, por seus minúsculos criados.

—Estamos ao serviço da mestra há muitas gerações! Somos leais até o fim! — as raposinhas comemoraram, se enxameando em volta da cabeça de Momiji — A mestra é muito cuidadosa com seus filhotes!

Leais?! Os pequenos traidores eram como insetos ridículos, sempre atraídos para a luz mais forte. Anko trincou os dentes.

—E é por isso que não faz sentido aquela mulher tão emotiva e afeiçoada, simplesmente enviar um filhote pequeno para tão longe, sozinho… — prosseguiu Momiji, ainda avaliando-o com aqueles gélidos e perigosos olhos dourados.

Mas Anko havia crescido sob o constante olhar mortal de Tamaki, e não era nenhum bebê, então ele não tinha medo daquela mulher também! Nenhum pouco!

Ele levantou-se, recuando meio passo para trás, com um braço erguido instintivamente.

—Talvez porque vocês dois fossem muito incompetentes…!

—E você ainda é muito pequeno. — ela prosseguiu com voz impassível, mas o brilho de seu olhar não fazia as pernas dele formigarem, de jeito nenhum.

—Ele ainda não parece ter despertado nenhum poder inato, não sabe voar, parece incapaz de se manifestar fisicamente e nem tem pleno controle da forma. — Gintsune acrescentou com um sorriso de quem parecia estar se divertindo muito apontando todas aquelas falhas — Que incompetente, não é mesmo irmã?

Quando Anko colocasse purgante em sua comida, ele veria quem era o incompetente ali! O garoto rosnou.

—Mas mesmo sem ter pleno controle da forma ainda, está obviamente mais habituado a sua forma reduzida do que à sua forma original, o que significa…

—Que é só um bebezinho de peito! — Gintsune o provocou rindo.

—Sim! A Mestra sempre guardava o jovem mestre no peito!

As raposas tubo confirmaram rindo e se entrelaçando umas as outras.

—Junto ao coração!

—Seu amado raio de sol!

—Calem as bocas, seus traidores imbecis! — Anko reclamou enchendo a mão de terra e pedras e atirando contra os criados tagarelas.

Mas os vermezinhos ardilosos se esquivaram rapidamente, sumindo por detrás das árvores próximas, e o projétil acabou atingindo o ombro da irmã mais velha, simultaneamente fazendo as orelhas e a cauda do filhote se manifestar, sobressaltadas.

—Oi!

Gintsune gritou avançando com uma mão estendida para pegar o moleque insolente, mas Anko esquivou-se saltando para trás, porém o irmão continuou a persegui-lo, retornando á forma animal na sequência e tentando abocanhá-lo.

—Há! Otário! — Anko tripudiou após esquivar-se com mais um salto. — Você é muito lerd…!

Ele foi ao chão com um solavanco.

—Chega. — Momiji ordenou com um pé sobre a cauda e as roupas de Anko, e Gintsune, ao perceber isso, puxou a própria cauda para perto com uma careta de dor. — Mesmo que nos deixasse sob sua vigilância quando éramos filhotes, nossa mãe não enviaria um filhote tão pequeno e indefeso acompanhado apenas de um trio de criados incompetentes, que sequer são capazes de cuidar adequadamente de sua higiene, para uma missão tão delicada e perigosa quanto atravessar os mundos. — ela estendeu os braços para erguê-lo do chão, pegando-o novamente no colo — Se ela não veio pessoalmente buscar seus filhotes, é porque a missão era arriscada demais para que nosso pai permitisse isso, então certamente mamãe subornou, ludibriou ou ameaçou alguém para que viesse como emissário em seu lugar.

—Ou fabricado. — Gintsune acrescentou — Eu já o encontrei: é um shikigami de madeira finamente talhado, vestindo roupas de monge, com um corpo físico, mas capaz de facilmente interagir com o etéreo e que podia facilmente passar despercebido pela maioria dos humanos… e um grande estraga prazeres. — resmungou para si mesmo.

—E você é um pequeno rebelde e péssimo mentiroso, que invadiu a missão alheia, certo meu doce irmãozinho? — Momiji completou virando o rosto com um movimento brusco, procurando pelos criados, ou talvez apenas tentando fugir do odor poderoso do irmãozinho — Criados! Onde está o verdadeiro enviado?

Mas ao invés de voltarem voando ansiosos para agradar sua pequena dama como das últimas vezes, eles permaneceram quietos e ocultos por detrás das árvores.

—Oi! A minha linda irmã está falando com vocês! — Gintsune indignou-se retornando à forma humana e se levantando. — Como ousam não respondê-la?!

Ele tinha o rosto do pai, porém era tão volúvel quanto à mãe.

Mas ao invés das pequenas raposas tubo, quem surgiu por detrás das árvores foi o silencioso shikigami de madeira, que se aproximou trazendo o tubo de bambu em uma das mãos e estendendo a outra mão com a palma voltada para cima, onde uma tatuagem de raposa se alongava desde o interior de sua manga até a ponta de seus dedos, quase parecendo querer saltar dali.

—O emissário. — concluiu Momiji com um leve sorriso.

—Um grande estraga prazeres. — Gintsune estalou a língua.

Se aquele idiota tivesse esperado só mais uma ou duas horas para estragar com toda sua diversão… apenas tempo o suficiente para que Gintsune pudesse saborear os morangos bem diante de seus olhos, ao invés de apenas olhá-los… pare!

O que estava pensando? Ele umedeceu os lábios nervosamente, parece que independente de suas intenções… sempre seria um cretino libertino.

A raposa podia agora mesmo sentir as emoções bagunçadas e conflitantes em erupção de Yukari, com certeza a essa altura ela já havia se tornado racional o suficiente para lembrar-se do canalha que ele era e também dar-se conta de que deliberadamente a seduzira e agora estava colocando grades nas janelas e pesquisando o canil mais próximo.

—Que vai virar lenha para fogueira. — acrescentou Anko tracejando ameaçadoramente uma linha na garganta.

Detendo-se onde estava o Shikigami ajoelhou-se com as pontas dos dedos das mãos se tocando diante de si e curvou-se até que a cabeça tocasse o solo.

Aquele… boneco estúpido!

Anko se revoltou, ele nunca tinha lhe feito uma reverência daquele nível, assim que estivesse solto, iria chutar a cabeça daquele inútil para longe como um melão maduro!

Rigidamente, o shikigami voltou a colocar-se ereto e puxou do obi a familiar máscara negra de raposa.

—Pare. — Momiji ordenou com um olhar mortífero, antes que Gintsune pudesse arrancar o braço do boneco com um chute, ou Anko escapar como um gato escaldado. — Nossa mãe não pode ver seu adorável raio de sol nesse estado insalubre.

Mokujin deteve-se momentaneamente, olhando-a com seu rosto inexpressivo, a mão livre ainda a poucos centímetros do rosto para retirar a máscara que lhe emprestava aparência humana e substituí-la pela máscara de raposa.

Suas ordens eram para reunir os filhotes de sua mestra e contatá-la imediatamente, os filhotes estavam reunidos agora e não parecia que se separariam — mesmo porque não era como se qualquer um dos três pudesse abandonar a área delimitada —, mas, afora o filhote negro, seria difícil lidar diretamente com eles agora, então, por hora, guardou de volta a máscara negra, se não colaborassem com o desejo de sua mestra, teria que capturá-los.

Um. A. Um.

O Shikigami voltou a inclinar a cabeça.

—Ótimo. — Momiji lhe deu as costas — Agora… To-cha?

—Hã? — Gintsune desviou o olhar desconfiado do boneco de madeira, os criados de sua mãe podiam ser idiotas e influenciáveis, mas seus shikigamis eram uma história a parte, afinal, as habilidades daquela Senhora eram de verdade muito surpreendentes — Sim irmã, o que foi?

—Precisamos dar um banho no bebê. — Momiji avisou-o.

—Pare de me chamar de bebê!

Anko protestou revoltado voltando a sua forma diminuta e saltando para longe… mas Momiji voltou a capturá-lo em suas garras em pleno ar com um piscar de olhos.

—Então como devemos chamá-lo? — Momiji sorriu-lhe — Suponho que não podemos simplesmente sair chamando o seu nome para todo lado, você já tem uma alcunha querido?

Anko podia tentar morder e arranhar para se libertar, mas se tentasse algo agora, provavelmente aquela mulher, que agia como sua mãe, porém era impetuosa como o pai, voltaria a espremê-lo até ele perder a consciência.

—Bolor fedorento. — Gintsune resmungou tampando o nariz por cima do ombro da irmã. — Irmã nós precisamos dar banho nele? Jogue-o em uma máquina de lavar com alvejante, coloque umas moedas e deixe o Pinóquio ali vigiando.

E enquanto o fedelho lavava e secava, Gintsune poderia voltar para Yukari…

—Não podemos fazer isso, To-chan.

Momiji sorriu-lhe com se Gintsune houvesse feito alguma piada, enquanto acomodava o filhote negro junto ao peito, a essa atura talvez seu olfato já tivesse morrido.

—É Anko! — o filhote respondeu de má vontade.

—Adorável. — Momiji sorriu.

Adorável? O diabrete era mais esperto do que parecia!

Toda aquela sujeira e o fedor não eram simplesmente porque o fedelho era um imundo sem higiene que gostava de rolar no esterco, mas uma camuflagem, Gintsune deveria ter percebido isso antes, quando quase o confundiu com um animal morto ou com um daqueles insetos repugnantes, mas só se deu conta realmente depois de sua linda irmã passar quase quarenta minutos esfregando-o, o ensaboado e o enxaguando — embora Gintsune insistisse que podiam jogá-lo numa máquina de lavar ou dá-lo aos criados para ir batê-lo em uma pedra no rio, quem sabe, ela foi decidida ao dizer que “eles não foram capazes de cuidar adequadamente dele durante todo esse tempo, não o farão agora!” — até que o cheiro finalmente começasse a desaparecer e algo semelhante a um filhote de raposa pudesse surgir por debaixo da crosta de sujeira.

O odor de antes era tão poderoso que escondia a já fraca presença do fedelho e inclusive bagunçava os sentidos de qualquer um que se aproximasse dele, e mesmo se, por ventura, Gintsune ou outro alguém pudesse rastrear qualquer de energia vulpina nele, o fedelho havia se preparado de antemão também: embrulhando-se no rico uchikake de sua linda irmã, assim qualquer um acharia que a energia vinha da roupa e não dele.

—As roupas não têm salvação. — Gintsune resmungou chutando o monte de mofo puído e fedido que com certeza já haviam visto dias melhores — Teremos que queimá-las.

—Queime as minhas também. — Momiji pediu-lhe ajoelhada de costas para ele, enquanto puxava um dos pés de Anko para si, e atacava seus dedos com a escova, determinada a livrar-se de qualquer crosta de sujeira que pudesse ter se aderido a ele.

Com os cabelos presos no alto, já tendo se livrado das hakamas, amarrado as mangas do quimono e prendido as pontas da barra no obi, mesmo ela não podia negar que aquele horror pungente nunca sairia das roupas.

—Eu já estou limpo! Estou limpo! — Anko reclamava causando vários sulcos no chão com suas garras, enquanto tentava escapar da irmã, sem sucesso — Já chega!

De forma impensada ele tentou chutá-la, mas isso só serviu para a irmã agarrar seu outro tornozelo.

—Eu tomaria cuidado se fosse você: uma vez o velho virou o pé da minha linda irmã para trás enquanto dava banho nela e ela tentou fugir desse mesmo jeito.

Gintsune comentou passando próximo a ambos com uma toalha na cabeça depois de ter se livrado das próprias roupas para sentar-se em um dos bancos vazios e começar a se lavar também.

—Nosso pai é um bom protetor, mas nunca teve jeito com filhotes, por isso eu odiava quando era ele, e não a mãe, quem nos banhava. — Momiji concordou quase deslocando o ombro de Anko ao puxá-lo de volta enquanto o garotinho tentava fugir. — Uma vez ele quase afogou você, To-chan!

Exclamou virando uma bacia de água no filhote mais novo.

—Eu sobrevivi então tudo bem. — Gintsune deu de ombros pegando uma esponja macia para ensaboar os braços e observando enquanto Anko tossia para expelir a água de seus pulmões.

—A mãe sempre foi mais delicada em nos lavar. — Momiji enrolou uma perna em volta do filhote e puxou-o de volta para perto, enquanto suas mãos estavam ocupadas pegando o xampu.

—Exceto quando ela nos eletrocutava. — Gintsune acrescentou.

—Isso também.

E com energias renovadas começou a esfregar a cabeça do filhote tão forte que seria melhor o moleque segurá-la no lugar com ambas as mãos para que ela não saísse voando do pescoço.

—Irmã, seria muito mais fácil se você apenas me deixasse pegar uma navalha e fazer o serviço. — Gintsune sugeriu algum tempo depois, se submergindo na água quente da banheira com um suspiro relaxado enquanto abria um pacote de máscara hidratante facial.

—To-chan, ninguém aqui vai raspar a cabeça do Zu-chan!

Momiji o repreendeu agora prestes a começar uma árdua batalha com uma escova de cabelo contra a massa disforme e embaraçada que um dia já havia sido os cabelos daquele filhote, enquanto o mantinha no lugar com as pernas entrelaçadas ao redor de seu corpo.

—Não me dê nomes estranhos!

Anko protestou, ele podia tentar escapar novamente, mas estava ocupado cravando as garras no chão e tentando se manter no lugar enquanto os nós de seu cabelo eram desfeitos à força, mas a irmã seguiu tão determinada em sua tarefa que nem sequer lhe respondeu e, enquanto isso, aquele otário parecia ter dormido na banheira!

Assim que Anko tivesse chance iria afogá-lo!

Gintsune só percebeu que havia caído no sono quando o chamado da irmã o sobressaltou:

—To-chan! Veja isso!

—Hã? — ele ergueu a cabeça, deixando uma rodela de pepino cair de seus olhos — O que foi?

Momiji agora estava ocupada afastando a cabeça do filhote negro para o lado com uma mão bem firme em seus cabelos úmidos e recém escovados e a outra parecendo torcer sua orelha direita.

—Ai! Ai! Ai mulher! — Anko reclamou estridente, derrubando produtos no chão e entortando uma torneira enquanto se debatia e chutava o ar. — A minha orelha não é um item destacável!

—Oi! — Gintsune virou-se irritado, tirando o outro pepino do olho — Tenha algum respeito com a nossa linda irmã mais velha, seu moleque!

—Aqui está o selo de sonhos da mãe. — Momiji afirmou, ignorando os respectivos protestos dos irmãos mais novos.

—Verdade? Já faz séculos que não vejo um desses! — Gintsune sorriu provocador virando-se e cruzando os braços na borda da banheira — O bebê já tirou a naninha?

—Você quer cair dentro otário?! — Anko se enfureceu corando, mas era difícil dizer, depois de tanto tempo sendo esfregado e esfoliado, ele todo estava vermelho brilhante, porém antes que pudesse avançar contra o irmão, a irmã o puxou de volta pela orelha que ainda segurava — Ai mulher!

Gintsune jogou longe a máscara hidratante e içou-se para fora da banheira.

—Irmã, cuidado para não deixar nenhum chumaço de pelo nos banhos… é altamente improvável, mas se alguém encontrar um fio sequer pode dar problema.

—To-chan, é claro que eu não seria tão descuidada assim, não somos mais filhotes. — Momiji sorriu-lhe agradavelmente.

—Ah… claro. — Gintsune passou a mão na nuca — Então eu vou incinerar suas roupas, que o cheiroso fez o favor de empestear, e buscar uma cerveja na cozinha, deseja alguma coisa, irmã?

—Prontinho Zu-chan, pode ir para a banheira. — Momiji alongou-se o liberando — To-chan, o bebê vai precisar de roupas novas.

Avisou antes que o irmão deixasse os banhos e a pilha de roupa flamejante para trás, usando apenas uma toalha na cabeça e deixando um rastro de pegadas molhadas pelo caminho até a cozinha enquanto acendia o cachimbo… até deter-se diante de uma janela.

Gintsune praguejou, ele havia dito que voltaria logo.

E agora o dia já estava raiando.

Yukari sobressaltou-se com o alarme do relógio despertador, a noite havia passado em um piscar de olhos, ou até menos, pois não havia conseguido fechar os olhos por um minuto sequer.

Depois de passar a primeira parte da noite surtando e se revirando na cama, a mente de Yukari pareceu simplesmente se cansar do estado psicótico e decidiu se ocupar reorganizando o guarda-roupa, afinal ela precisava arrumar um lugar para esconder o casaco e os tênis daquela raposa… talvez junto com o seifuku, o outro tênis, as calças jeans e camisa de mangas compridas que ele já havia deixado lá antes.

Afinal, quando foi que ela passou de uma casta colegial morando com a família e dormindo em seu quarto de infância para uma desavergonhada mulher moderna que dividia um quarto com um homem?!

Isso a fez perceber que estava surtando de novo, então se sentou de braços cruzados com o relógio caro que ele lhe dera sobre a escrivaninha e refletiu sobre o que deveria fazer com aquilo.

Com certeza aquilo era caro demais para o uso corriqueiro de uma colegial do interior, e levantaria perguntas as quais ela não seria capaz de responder, mas também não podia simplesmente devolver e dizer que não o queria ou deixá-lo guardado no fundo de uma gaveta e acabar magoando Gintsune, ele havia trabalhado duro e honestamente — com certeza pela primeira vez naquela longa e devassa vida dele — apenas para se desculpar com ela — e não unicamente no intuito de ser um suborno, que fique claro — e isso era muito significativo.

Tudo bem, Yukari bufou e desligou o alarme do despertador, era só um relógio, algo pequeno e delicado, nada extravagante e nem parecia tão caro assim também — mesmo que fosse —, então não havia por que pensar tanto sobre o assunto, se o usasse por debaixo das mangas do uniforme com certeza ninguém repararia.

Tiraria para a aula de Ed. Física e no verão, quando chegassem às mangas curtas, pensaria no que faria.

—Então Shibuya, que relógio é esse? — a representante perguntou de repente durante a aula de economia doméstica enquanto vestia o kappogi.

Ela havia trocado depois do último incidente.

—O que? — Yukari deixou a touca cair.

—Ah, verdade, eu ia perguntar, mas esqueci. — Kaoru concordou — Eu nunca te vi usar relógio, foi presente de aniversário?

—Uh… sim. — Yukari esfregou a lateral do pescoço nervosamente, como foi que elas haviam o visto? Se havia notado o relógio sob a manga, e quando ao seu pescoço? Já não tinha certeza se a desculpa que pensara para caso alguém perguntasse era tão plausível assim… ela com certeza iria estrangular aquele libertino da próxima que o visse! Yukari olhou em volta. — A sala está um pouco vazia, não está?

—Não me admira, mais da metade da turma quis ir para a enfermaria assim que ouviu “aula de economia doméstica”, depois daquele poltergeist tenho certeza que nem a professora queria entrar aqui de novo, eu com certeza não queria estar. — a representante deu de ombros — Mas estamos a dois dias do Dia dos Namorados e hoje teremos nossa aula anual de chocolates.

—Não vai acontecer mais nada. — Yukari suspirou, pegando a touca do chão, aliviada por elas aceitarem a mudança de assunto.

Mas só por via das dúvidas ela estava com um pacote grande de mashmallows na mochila.

Pelo menos o fato de Gintsune não ter mais voltado talvez pudesse significar que ele estava ocupado amarrando e amordaçando aquele menino grosseiro, e… talvez procurando a mãe dele, sobre quem Yukari definitivamente não queria pensar.

Minha nossa, ela não só havia beijado um homem em seu quarto, mas um canalha com filho e que ignorava a existência da criança e o deixava solto feito um animal selvagem…!

Não devia ter aceitado o relógio!

—Você tem alguém para entregar seus chocolates esse ano, representante? — Kaoru perguntou com um sorriso contido. — Você parecia bem irritada no ano passado.

É verdade, Yukari tinha quase certeza que fora a história da representante sobre “comer todos os biscoitos na frente do irmão” que a inspirara a comer os biscoitos de Gintsune acompanhados de leite.

—Pode-se dizer que sim, esse é o último ano de Hiroshin no colégio, e se não posso convencer aquele imbecil de que ele deveria ir para a faculdade, quero pelo menos conseguir suas anotações! Especialmente porque, segundo as informações de Ichinose, o idiota parece completamente imune a formas mais abertas de suborno. — a representante respondeu determinada. — E vocês têm planos para os chocolates desse ano?

Yukari se sobressaltou como se tivessem descobertos os mashmallows que estava contrabandeando para dentro da escola.

—É complicado. — Yukari murmurou desviando o olhar.

Ela devia dar chocolates a Gintsune? Nem sabia em que pé estava à relação deles agora, ela… ela havia dito para ele rejeitá-la e ele…! Ele…! Yukari começou a corar violentamente. O que ele podia entender e o que mais faria se de repente ela lhe desse chocolate?!

Não devia ter aceitado o relógio!

—Você parece estranha. — representante comentou arqueando as sobrancelhas — Está escondendo alguma coisa?

—Não! — respondeu tão repentinamente que surpreendeu às duas colegas.

—Tudo bem então. — representante concordou com um dar de ombros, a fazendo suspirar aliviada, mas só até suas palavras seguintes: — Se for importante eu vou acabar arrancando de você mais cedo ou mais tarde.

E era exatamente isso que Yukari temia.

E ficar apreensível com a perspectiva de que algo que você estava tentando ocultar logo viria à tona era, com certeza, um sentimento que Gintsune sabia muito bem como era.

—Realmente precisamos fazer isso irmã? — perguntou hesitante enquanto abria e dispunha os andares das caixas de bento sobre a toalha no chão.

 

Eram cinco ao todo, enormes e com três andares cada, Gintsune não fazia ideia de para quem era aquele almoço a princípio, mas um pequeno assalto a uma pousada local com algum prejuízo financeiro, não contava como “destruição da cidade”, então ele não estava quebrando sua promessa com Yukari.

Sua linda irmã sempre preferira os campos abertos e jardins ornamentais, enquanto Gintsune preferia as regalias e comodidades da civilização… mas aquele fedelho mal educado aparentemente era mais do estilo de cemitérios!

Inacreditável que sua linda irmã tivesse que se submeter às vontades daquele moleque!

Momiji assentiu.

—Algo de valor superior ao uchikake perdido deve ser oferecido para compensar Inari.

Ela estava ocupada fazendo uso do que To-chan dissera de chamar “secador de cabelos” para se certificar de que o bebê estava perfeitamente seco em todos os cantos, podia ser um pouco barulhento e incômodo, mas ela precisava admitir que ele tinha sua utilidade, tudo o que precisava fazer era segurá-lo e apontá-lo enquanto eletrificava a ponta do cabo com a outra mão para que o ar quente soprasse.  

—Ah… não isso. — Gintsune hesitou — Realmente precisamos ligar para nossos pais agora?

—Mas é claro que sim, To-chan! — Momiji descartou o secador de cabelos — Mamãe realmente deve ter algo sério a nos dizer para ter se dado a todo esse trabalho de descobrir como enviar emissários através dos mundos, e pense no quanto ela deve estar preocupada com seu pequeno bebezinho foragido e principalmente: talvez ela tenha uma forma de voltarmos para casa.

Embora sua mãe fosse uma criatura extremamente sensível e emotiva, que desejava ter seus filhotes junto a si pelo máximo de tempo possível, ela também era alguém tão dispersa que nunca procurava por seus filhotes crescidos a menos… que algo muito sério houvesse acontecido.

Francamente Gintsune não temia a mãe, pois embora imprevisível ela era, quase sempre, puramente inofensiva… o problema era o velho, que era sim bastante previsível e brutal.

E, não que pudesse dizer isso a sua linda irmã, mas Gintsune não estava pronto para voltar para casa ainda, havia Yukari ainda… então fosse qual fosse à situação, Gintsune precisava estar preparado para acalmar os ânimos de sua mãe antes que o velho lhe decepasse um braço e começasse a bater nele com o próprio braço, o problema era apenas que aquela senhora era imprevisível demais e levaria algum tempo para que ele pudesse calcular todas as probabilidades…

—Você está ferrado otário!

Anko, que agora era uma bola de pelos negros macios e lustrosos e que não cheirava a carniça, riu debochado antes de enfiar o focinho na carne de porco e repolho picados mais próximos.

Ele tinha que admitir — não em voz alta, é claro — mas tinha alguma vantagem em ter os filhotes prateados de sua mãe por perto, por exemplo, aquele otário era muito melhor coletando comida do que aqueles criados estúpidos que nem podiam trazer seus mashmallows!

E também ele podia se manifestar fisicamente e comer mesmo em sua forma animal, desde que estivesse dentro de um território estabelecido por algum dos irmãos, mas o problema era que isso também era basicamente uma prisão, pois não havia com sair facilmente desses territórios sem a permissão deles e, mesmo que saísse, continuaria sem forma física lá fora, a menos que conseguisse de volta a máscara que aquele estúpido boneco pegara.

—Pare de comer como um animal selvagem, o velho te levava para caçar com ele por acaso? — seu irmão idiota o censurou — E por que não fala de uma vez o que é que você sabe? Por que mamãe se deu a todo esse trabalho para nos procurar?

—Zu-chan, coma devagar, pode se engasgar. — sua irmã disse mais gentilmente, limpando sua boca com um lencinho antes de ele encontrar as batatas e ovos cozidos.

Comer naquela forma era com certeza o melhor!

Mas de repente aquele imbecil o agarrou pela pele frouxa do pescoço e o afastou da comida.

—Você também estava com a ficha suja, não é moleque? Desembucha!

—Me solta otário! — Anko se debateu rosnando — Eu estou faminto aqui!

—To-chan, cuidado! — Momiji exclamou chocada, pegando o bebê para si — O bebê pode engasgar ou ter indigestão!

Assim que ela o colocou no colo, Anko encontrou o salmão grelhado.

—Ninguém morre porque se engasgou ou teve uma dorzinha de barriga, querida irmã. — Gintsune reclamou.

E Anko ergueu a cabeça por tempo o suficiente para dizer:

—Mamãe tem um veneno mortal que causa as duas coisas!

—E você! Pare de comer feito um animal e babar na comida toda, não é o único que quer comer aqui!

Gintsune reclamou, embora ainda houvesse outras quatro caixas de obento perfeitamente intocadas.

—Há! Otário! — Anko esquivou-se saltando para longe do colo da irmã — E porque eu estaria encrencado? Foram vocês, filhotes tolos e insensíveis, que abandonaram sua dramática mãe durante tanto tempo que ela se consumiu por solidão e não conseguiu pensar em outra maneira de aplacá-la exceto dando a luz a um novo filhote. — lambeu os lábios — Ela até deve ter feito algum escândalo quando eu pulei no portal, mas e daí? Vai esquecer-se disso e minha utilidade terá acabado depois de ela ter seus preciosos filhotes de volta às suas garras… especialmente considerando o quanto ela estará ocupada com o seu mais amado e doce filhote, que foi cruel o suficiente para apunhalá-la pelas costas e esconder a existência de uma tão rara e preciosa humana em seu mundo!

Sem alterar sua expressão, Momiji inclinou a cabeça de lado esticando dois dedos ao lado do rosto enquanto observava-o atentamente, sua mãe havia se enganado: não era ela o mais insensível de seus filhotes afinal.

E então deu um olhar de relance para seu adorável To-chan que, com um semblante bastante pálido, acabara de se descuidar e deixar um camarão empanado cair de seus hashis antes mesmo de alcançar-lhe a boca.

—De que humana você está falando…? — perguntou abismado.

—Há! Então isso significa que tem mais de uma? — Anko riu — Você está muito ferrado, seu otário!

Gintsue quase virou a caixa de obento mais próxima, no seu desespero quando se inclinou para frente apoiando a mão no chão.

—Como ela encontrou a esposinha?!

—Foram eles quem nos encontraram e o tengu imbecil até me confundiu com você! — Anko mostrou-lhe a língua.

O tengu confundiu-o com seu estúpido irmão mais velho e aquela mulher tediosa achou que fosse o filhote dele. Parece que, assim como todas as criações da mãe, mesmo que involuntariamente, ele cumpria ao seu propósito: Ser um substituto daquele idiota.

Afinal o que aquele otário tinha de tão bom assim? Estava tremendo tanto de medo feito um covarde que nem reparou em Anko se aproximando e roubando seu camarão empanado.

Aquele tengu idiota! Gintsune levou as mãos à cabeça e inclinou-se para frente a um fio entre o desespero e o colapso. Se ele estava assim tão zangado pelo chapéu era melhor ter mandado um cão atrás dele! Mas para que recorreu ao velho?!

—Fique calmo To-chan, vai ficar tudo bem. — sua irmã tentou consolá-lo, passando a mão em suas costas — Por que escondeu algo assim de nossa mãe?

—Não foi minha intenção! — Gintsune lamentou-se se recolhendo ao colo da irmã com sua menor forma — É só que o tengu é meu irmão do coração e a esposinha é minha irmã por casamento, eu queria dar a eles algum tempo juntos de paz enquanto ainda eram recém casados, e depois a esposinha estava muito sensível porque não conseguia ter filhos e… só não me parecia o momento adequado, e aí vieram os garotos… e eu só fui deixando para depois e depois, e quando vi muito tempo já tinha se passado e eu sabia que ela ficaria chateada por eu não ter contado antes, então apenas continuei retardando… talvez para sempre. Mas você conhece a mamãe, irmã, ela teria feito da esposinha o seu precioso rouxinol na gaiola!

Eles estavam tão ocupados se lamentando e se consolando, que nem repararam o filhote negro se aproximando para roubar os camarões empanados e batatas cozidas.

—Uma gaiola? Do que você está falando, To-chan? — Momiji perguntou acariciando a macia pelagem prateada — Mesmo que mamãe ame os humanos, ela nunca tentou ter uma como mascote, nós e ela sabemos bem que nosso pai teria exterminado qualquer um, a exceção de seus próprios filhotes, que recebesse mais atenção dela do que ele.

—Mas isso foi antes de os mundos se separarem, quando havia humanos para todos os cantos e ela podia brincar com uma dezena hoje e encontrar outra dezena amanhã! — Gintsune rebateu erguendo a cabeça, e deixando a irmã coçar-lhe debaixo do queixo — Agora a esposinha é a única humana naquele mundo!

—Ainda assim, mamãe não separaria uma mãe de seus filhotes. — Momiji tentou consolá-lo, coçando-lhe atrás da orelha esquerda.

—O que ela está querendo dizer é que nenhuma dessas suas desculpas cola seu otário! — Anko, de volta a forma humana e com os cabelos negros soltos, tripudiou com a boca cheia de salmão e repolho picado — Você está muito ferrado!

Momiji ainda tinha consigo algumas das peças que To-chan lhe arranjara no último outono, mas o bebê estava vestido com uma yukata vermelha simples de tamanho infantil com um emblema estampado ao lado esquerdo do peito e que, provavelmente, pertencia à pousada onde eles havia estado pela noite, ela torceu o nariz quando o mais novo enfiou uma mão no arroz, talvez alguns modos não lhe fizessem mal… Momiji estendeu a mão e limpou novamente com um lenço as migalhas e restos de arroz espalhados no rosto do irmãozinho.

—O que eu quis dizer. — começou a reformular, acenando para que o shikigami, sentado ali perto, se aproximasse — É que mesmo se nosso pai é uma criatura selvagem e sanguinária, a nossa mãe, por mais instável que seja, ainda sabe ser razoável.

*.*.*.*

Furin estava completamente irracional.

Nunca era fácil para uma mãe ser afastada de seus queridos filhotes, mas o terceiro foi o mais perturbador.

Ao menos os dois primeiros eram crescidos, sabiam como se cuidar, mas seu raio de sol…! Ele era só um bebê indefeso! E agora estava sozinho com um trio de criados incompetentes e um shikigami feito para caçar filhotes, e não para cuidar deles, em um mundo tão perigoso que fazia os raios de sua linda mãe explodir continuamente todos os dias e apertava o coração dela em absoluta angustia!

E agora todos os seus raios haviam explodidos juntos!

Oh seu querido bebê, o que tinha lhe acontecido?!

Furin uivou e rasgou o próprio rosto com as garras.

Era uma sorte que suas máscaras tivessem sido mandadas ao outro mundo, pois se estivessem de posse delas agora, Tamaki teria mergulhado o território do dragão em fogo e carnificina ao sentir a agitação de sua amada esposa.

O que, é claro, não a impedia de causar caos e destruição por si mesma.

Ryosuke ainda se lembrava de tempos mais simples, quando seus maiores problemas no território era lidar com alguns desordeiros ocasionais causando brigas de rua ou destruindo plantações.

Mas agora precisava lidar com ataques quase diários de grandes bestas ambicionando o coração divino de sua jovem hóspede, e uma raposa feiticeira extremamente perigosa e completamente fora de si!

—O que pode ter acontecido com ela? — Ryosuke tentou gritar por sobre o barulho do vento. — Ela parecia ter se acalmado!

“Se acalmado” não era exatamente a palavra que Satoshi — que havia se prontificado a fazer parte do pequeno destacamento que iria acompanhar o mestre dragão até o “olho do furacão” — usaria.

Segundo Mayu, a mãe de Gintsune havia visitado Hikari-chan há poucas horas e sua pouca sanidade aparentava estar a apenas a um fio de romper-se, e agora parece que alguma coisa havia rompido esse fio, como resultado, uma tempestade de raios e ventos fortes o bastante para arrancar árvores ancestrais de suas raízes estava varrendo toda área mais a nordeste do território do mestre dragão.

—Tem certeza que é seguro para os garotos estarem lá em cima? — Satoshi gritou para ser ouvido.

—Muito mais do que aqui em baixo. — Ryosuke garantiu partindo com as garras um tronco de árvore que veio voando em sua direção — Além disso, preciso deles lá em cima… eu devia ter sido mais específico quando pedi as previsões de Ohika-chan: perguntei-lhe se a cidade e os cidadãos ficariam bem, e ela disse que sim, mas esqueci-me que há muito mais em meu território do que apenas a cidade… — ele suspirou longamente — Os campos de arroz e os pomares estão arruinados agora…

Naquele instante um raio quase os atingiu, separando o grupo ao lançar Ryosuke e Satoshi para um lado e o restante do grupo a mais de três metros de distância.

—Como eu não vi isso chegando?! — Misaki, o dodomeki, gritou enfurecido, com todos os seus cem olhos arregalados.

—Do que você está reclamando?! — Ryota esbravejou se levantando — Fui eu quem foi atingido! Já é a quinta vez!

Mesmo em sua verdadeira forma, a pele do grande oni vermelho fumegava e parecia estar começando a rachar em algumas partes.

Quanto mais se aproximavam do “olho do furacão”, pior ficava a situação, com ventos que assobiavam de forma ensurdecedora, carregando árvores, pedras e fragmentos a velocidades tão absurdas que eram capazes de fazer dezenas de cortes inclusive na grossa pele de um oni.

—Pelo menos estamos no auge do inverno, e nenhuma colheita foi perdida!

Satoshi tentou amenizar, colocando-se de pé com os braços estendidos diante de Ryosuke e interceptando o trajeto direto de um pedregulho que quase atingiu a cabeça do dragão, e ganhando, em troca disso, um grande corte no braço esquerdo.

Que bom que não havia sido seu braço da espada.

Mayu havia sido terminantemente contra a deixar seu marido e filhos saírem no meio daquele pandemônio, no entanto, Satoshi sentia-se responsável pela situação, já que a família de Gintsune só havia se envolvido naquilo graças à sua intervenção, e não pôde deixar de ir, e quanto aos garotos, ambos haviam fugido da mãe — Akihiko provavelmente fora arrastado por Akira — e provavelmente seriam esfolados quando voltassem.

—Parece que seus garotos localizaram a feiticeira aflita.

Ryosuke afirmou levantando-se com uma mão sobre os olhos, tentando protegê-los da poeira quando avistou os feixes de luz e pequenas explosões de fogos à distancia, significando finalmente a localização de seu alvo, depois de incontáveis horas caminhando e buscando naquele ambiente hostil de visibilidade quase nula.

E o dragão tinha certeza de que havia também algum feitiço de confusão mental imbuído pela feiticeira — propositalmente ou não.

—Ali! — Mizaki apontou com os olhos de seu braço se alternando entre semicerrar-se pela força do vento e tentar arregalar-se com total foco ao alvo a sua frente — Eu posso vê…! Cuidado!

Gritou atirando-se de lado quanto outro raio verde caiu sobre eles.

—É a sexta vez! — Ryota gritou enfurecido de algum lugar do furacão após ser atingido e lançado para longe pelo raio.

Não parecia que eles poderiam reencontrá-lo sem perder de vista o alvo novamente, mas ao menos sabiam que ele estava bem.

A raposa feiticeira era agora uma grande fera negra de sete caudas e em profunda agonia, talvez ainda mais que no fatídico dia em que seu filhote saltou para o outro mundo, Ryosuke nunca vira um youkai liberar tamanha quantidade de energia sinistra sem estar ou tornar-se completamente corrompido por isso.

—Não o sinto…! Para onde foram minhas crianças?! Por que não respondem à sua linda mãe?! Os raios explodiram! Explodiram! Explodiram! — a gigantesca fera negra lamentava-se enquanto caminhava desorientada, com eletricidade faiscando em torno de todo o seu corpo — Eu preciso rasgar os mundos!

Seus olhos estavam desfocados e vazios, emanando uma luz verde aterrorizante, mas, apesar de toda a energia sinistra e elétrica que liberava, não parecia estar corrompida, isso era um bom sinal ao menos, e ela sequer parecia se dar conta das contínuas pequenas explosões de fogos coloridos que estouravam ao seu redor — os sinalizadores mágicos dados por Rysosuke aos meninos de Satoshi para indicar a localização da raposa quando a encontrassem — mas ainda assim, de alguma forma ela se deu conta da aproximação do grupo e, ao abrir a boca, disparou dali uma descarga elétrica tão grande e poderosa que poderia inclusive ter matado Satoshi, caso ele fosse atingido.

—Furin-Sama! — Satoshi gritou-lhe, tentando chamar sua atenção — Por favor, acalme-se e nos diga o que aconteceu! Furin-sama! Pode nos escutar?!

Porém, mesmo os vendo, ela estava completamente fora de si, Satoshi queria expor as asas e voar mais perto, mas isso não ajudaria em nada: naquelas condições só resultaria em ele sendo soprado para longe, tal qual Ryota, ou Mayu se tornando uma viúva com três filhos para criar… o tengu olhou desconfiadamente para o dragão, será que era esse o plano dele?

—Por que não consigo senti-los?! — ela uivou angustiada, e mais raios caíram à sua volta — Nenhum deles responde ao meu chamado! Meu raio de sol não fecha os olhos! Onde ele está? Onde? Onde? Meu querido filhote, minha linda flor, e meu raio sol, todos perdidos naquele mundo distante, tão distante! Sua linda mãe está em agonia! — de repente ela abriu a boca novamente e seus olhos brilharam com ainda mais intensidade quando cuspiu outra descarga elétrica mortal ao gritar: — ONDE ESTÃO MEUS QUERIDOS FILHOTES?!

Satoshi quase não conseguiu pegar Mizaki a tempo e esquivar-se.

—Okuro-Yoko-sama! — Ryosuke a chamou puxando um rosário da manga e o erguendo acima da cabeça — Aqui! Olhe para cá!

O dragão girou o braço por repetidas vezes e, a cada movimento, o artefato em suas mãos parecia estender-se mais até que Ryosuke o soltou repentinamente e o rosário arrebentou-se, espalhando suas contas em um circulo perfeito em torno da grande fera elétrica, impedindo-a de tentar se afastar e refletindo seus raios para si mesma, e a raposa lamentou-se com um choro angustiado quando foi atingida por um de seus próprios raios

—Onde estão meus queridos filhotes? — Ela tentou dar-lhes as costas e escapar, mas a barreira de contas a impediu — Você! — a raposa voltou-se de novo para Ryosuke, seus olhos agora focados e repletos de raiva — Por que está me mantendo afastada deles?!

Doze contas explodiram em fragmentos quando Furin tentou avançar sobre Ryosuke, e a força do impacto o fez ser empurrado quase meio metro para trás, mas o dragão firmou os pés no chão e fez o um selo com as mãos.

—Furin-sama, deixe-nos ajudar! — Satoshi gritou-lhe tentando chamá-la de volta a si — Conte-nos o que aconteceu!

—Meus filhotes! Devolvam meus filhotes! Os raios explodiram, e eu não os sinto! Não os sinto! Não os sinto!

Furin rosnou, lamentou e uivou, atacando a barreira com garras e raios, outras nove contas se fragmentaram e Ryosuke trincou os dentes com todo o esforço que estava fazendo para manter a barreira de pé, mas… parece que estava dando certo, Okuro-Yuko-sama estava começando a se exaurir: ainda murmurando e lamentando ela estava começando a diminuir de tamanho, e os ventos a reduzir a velocidade.

—Os meus queridos filhotes, onde estão meus filhotes? — Furin soluçou de volta a forma humana, com as roupas em farrapos e os cabelos desgrenhados sobre o rosto, encolhendo-se sobre si mesma e abraçando-se — Os raios explodiram, meu bebê está sozinho…

Suspirando aliviado, Ryosuke relaxou e cambaleou de lado.

—Ryosuke-Sama! — Satoshi o amparou antes que ele caísse.

—Mestre cuidado! — Misaki passou-lhe o braço por sobre o ombro — O senhor está bem?

—Sim estou. — Ryosuke garantiu recompondo-se — Foi apenas toda essa adrenalina.

Quando Akira e Akihiko pousaram não muito distante dali, seus olhares fixaram-se imediatamente na raposa que, sentada sobre os próprios joelhos, abraçava a si mesma e se balançava para frente e para trás, murmurando frases desconexas consigo mesma.

—E o que vai acontecer com ela? — Akihiko perguntou preocupado — Ela vai ficar bem?

—Sim, ela está em choque, mas só precisa descansar um pouco. — o dragão afirmou se aproximando da raposa, e ajoelhando-se diante dela — Senhora? Senhora, por favor, levante-se, eu vou levá-la ao castelo e cuidarão de você lá, a banharão e alimentarão, e poderá estar confortável até que seu marido retorne…

Mas assim que ele tocou-lhe o ombro, Furin repentinamente ergueu os olhos, focando sua atenção completamente nele e parecendo vê-lo pela primeira vez, embora seu olhar ainda fosse completamente maníaco.

—Tamaki disse que os traria até mim! — exclamou angustiada — Mas os raios explodiram…! O meu bebê…! — ela calou-se, seus olhos arregalando-se com uma clareza que lhe era ausente até poucos momentos atrás, e esboçando um sorriso perturbador ao dizer: — É um dragão! É realmente um dragão! E esse poder…! Tanto… poder!

—Senh…?

Não houve tempo de reação para o dragão: antes que pudesse se dar conta,  uma dor lacerante atravessou-lhe o peito e ele cuspiu um jato de sangue direto no rosto da raposa feiticeira.

Chocado, Ryosuke baixou o olhar, e viu como as garras de Furin haviam penetrado e rasgado seu peito até a altura do pulso.

—Porque preciso rasgar os mundos e uni-los? Eu mesma irei atrás de meus filhotes! — decidiu a mulher alterada.

Outra golfada de sangue foi tossida por Ryosuke quando as garras da raposa fincaram-se em seu coração.

—Mestre!

—Ryosuke-sama!

Seus companheiros gritaram preocupados, mas, segurando o punho da raposa com uma mão e impedindo-a de mover-se, Ryosuke ergueu a mão livre para detê-los onde estavam após o que retirou de dentro do quimono um pergaminho marcado com estranhos diagramas negros e, levando-o aos lábios, sujou-o com seu próprio sangue.

—Meu querido filhote, minha linda flor, meu raio de sol… eu só quero meus filhotes de volta. — Furin chorou — Eu sinto muito.

—Eu sei senhora. — Ryosuke a tranquilizou — Tenha um bom descanso.

Assim que ele colocou o pergaminho com seu sangue sobre o rosto da raposa, os olhos de Furin giraram para dentro das órbitas, e ela caiu desacordada.

Ryosuke também cambaleou para trás, mas uma mão forte agarrou-lhe o braço e içou-o.

—Você está um trapo, mestre dragão! — Ryota o criticou brutalmente. — Aquele pássaro vai perder todas as penas quando o ver!

—Isso não é nada. O ferimento já terá fechado quase completamente quando chegarmos ao castelo. — Ryosuke garantiu colocando a mão sobre a boca, quando voltou a tossir sangue — Mas as roupas rasgadas e cobertas de sangue… ah, isso me vai render um sermão daqueles das lavadeiras.

—Mas que tipo de rei é você?! — Ryota riu largando-o quando viu que o dragão era capaz de manter-se de pé por si mesmo — Minha filha rasga e inutiliza suas roupas o tempo todo, e ninguém ousa dizer uma palavra!

—Sua filha é uma deusa e não uma rainha. — Ryosuke devolveu limpando o sangue da boca com a manga do quimono.

—Isso tudo foi culpa daquela peste de pirralho com certeza. — Akira comentou vendo o pai pegar Furin no colo.

Akihiko deu-lhe uma cotovelada.

—Fica quieto, quer acordar ela de novo?! — reclamou.

Akira o afastou com um empurrão.

—E não seria melhor deixar ela aqui também?

—Que cruel! — Akihiko reclamou chocado.

—Eu só estou dizendo. — Akihiko esquivou-se de outra cotovelada do irmão mais novo — Que se aquela besta selvagem do marido dela voltar e encontrá-la nesse estado e desacordada, eu duvido que ele vá parar para pensar quem a está ajudando e quem a está prejudicando antes de fazer chover sangue!

—Nós não vamos deixá-la aqui! — Satoshi encerrou com o debate definitivamente. — Ela é a mãe de Gintsune, e vamos levá-la conosco!

Os garotos aquietaram-se, aceitando a decisão do pai, e o seguiram em silêncio, passando por Ryosuke que havia parado para olhar em volta e constatar toda a devastação causada.

Àquela altura o sol já havia passado da metade do firmamento e por vários quilômetros a terra era um terreno completamente planificado, o dragão suspirou — fazendo uma breve careta de dor, pelo incômodo que o ato lhe causou — quando a primavera chegasse, aquela tundra congelada ter-se-ia transformado em um deserto.

Raposas realmente davam muito trabalho.

*.*.*.*

Depois de muitas horas e várias tentativas desperdiçadas, toda a comida já havia acabado e Gintsune estava incrivelmente entediado.

—Já chega. Tudo isso é inútil! — reclamou deitado no chão com os braços estendidos — Essa máscara é falsa ou está quebrada!

Ele lançou um olhar irritado para o shikigami que, sentado ali perto, colocava a máscara negra de raposa sobre a face lisa e permanecia imóvel por mais de uma hora antes de retirá-la e, depois de alguns poucos minutos, tentava colocá-la novamente.

—Você é idiota, otário? — Anko o provocou de uma árvore, onde estava pendurado de ponta cabeça pelas pernas — É claro que a máscara é verdadeira, porque mamãe iria enviar uma máscara falsa, estúpido?!

—Então por que não está funcionando, hein espertinho?!

—Mamãe nunca tentou uma comunicação entre mundos diferentes, ela não tinha como saber o real alcance de sua magia, tudo é um experimento.

Momiji interveio calmamente, enquanto moía as pétalas de rosa que dois criados continuamente jogavam dentro da delicada tigela de porcelana que ela segurava, enquanto o terceiro de tempos em tempos acrescentava azeite à mistura.

Todos querendo demonstrar ao máximo sua gratidão à jovem dama por tê-los libertado novamente.

Gintsune não sabia de onde eles haviam arranjado o azeite, mas as flores para a maquiagem de sua linda irmã com certeza haviam sido roubadas dos túmulos.

—É uma perda de tempo! — reclamou sentando-se impaciente — E já está quase anoitecendo também!

Parecendo chegar á mesma conclusão, o shikigami finalmente desistiu de estabelecer uma ligação com a máscara negra, e pegou a máscara branca de raposa… mas não foi ágil o suficiente para colocá-la, antes que Gintsune a arrancasse de suas mãos e jogasse para longe.

—To-chan! — Momiji exclamou chocada.

—Ah… é que… — Gintsune olhou-a quase parecendo envergonhado, antes de pigarrear e dizer: — Eu estou muito entediado aqui, irmã, de verdade! Quero dar uma volta para me distrair e depois tentaremos de novo, está bem? Eu trago comida também!

—Oi! Aonde você vai?! — Anko saltou da árvore, disposto a segui-lo — Eu quero ir, também estou entediado aqui!

—Você não! — Gintsune retrucou, saltando para longe no mesmo instante — Sai do meu pé fedelho, isso é hora de criança ir dormir!

—O que?! — o mais novo irritou-se — Não me trate como se eu fosse um bebê! Oi! Volte aqui!

Protestou inutilmente quando o irmão simplesmente saiu voando e o deixou para trás.

Que grande babaca! Anko pegou um vaso vazio de um túmulo próximo e o arremessou. Tomara que fosse atingido por um raio!

Oposto ao temperamento do pequeno irmão, Momiji manteve-se impassível, preparando sua maquiagem cuidadosamente, ela sabia para onde To-chan estava tão inquieto e ansioso para ir… mas não queria pensar sobre isso.

Ás vezes não pensar mais era a melhor saída.

Yukari já estava acordada a mais de trinta e seis horas agora e se encontrava em estado de completa exaustão, porém muito mais por sua mente em turbilhão desde a noite passada, do que pela ausência de horas de sono.

Por sorte, hoje à noite seus pais cuidariam da limpeza e sua avó faria o jantar, então ela podia simplesmente deitar-se e dormir mais cedo, estava tão exausta que sequer sentia fome, com um suspiro ela sentou-se na beira da cama… e sobressaltou-se quando sentiu braços a envolverem por trás na altura da cintura.

Gintsune sentou-se atrás dela, com uma perna de cada lado dela, e escondeu o rosto na curva de seu pescoço.

—Precisamos conversar. — murmurou.

E ela engoliu em seco e agarrou o próprio antebraço quando aquele mísero gesto a fez se arrepiar.

—É sobre seu filho? — perguntou seriamente — Você o encontrou?

—Eu o encontrei. — ele concordou a abraçando um pouco mais forte, ainda com o rosto escondido em seu pescoço — Antes fosse mesmo um filhote meu!

Yukari franziu o cenho ao ouvir aquele lamento tão estranho.

—O que quer dizer?

—Ele é o filhote de minha mãe. — respondeu como se fosse uma confissão.

Yukari franziu ainda mais o cenho e tentou afastar-se, mas ele nem se moveu.

—Ele disse que estava procurando pelo príncipe da mãe…!

—E sabe quem me chama de príncipe, querida? — a mão dele começou a subir — Minha mãe e minha linda irmã.

Yukari segurou a mão dele, o detendo antes que pudesse alcançar uma área inadequada.

—I-isso…! — ela arregalou os olhos, corando. — Ah, nossa, eu me sinto tão…!

—Tudo bem. — Gintsune esfregou levemente o nariz no pescoço dela, mas, pelo menos, suas mãos atrevidas ficaram paradas onde estavam — Aquele fedelho é uma praga, ele gosta de jogos… raposas, sabe?

—Sei. — Yukari cobriu o rosto com ambas as mãos, ela estava morta de vergonha. — Você é tão… apegado — na verdade a palavra que iria dizer era “obcecado” — à sua irmã, como é possível que não sabia que tinha outro irmão também?

Parando para pensar aquele molequinho nunca tinha dito que estava procurando o pai, ela apenas concluiu isso, e ele não se deu ao trabalho de esclarecer.

—Já deve fazer por volta de um século que não vejo meus pais, e em nosso mundo a comunicação por cartas ou ligações não é exatamente algo comum. — ele justificou-se — Geralmente nossa noção de tempo é deturpada também.

Ela podia acreditar nisso também, pois mesmo a “tão amada e linda irmã” dele havia passado séculos presa sem que ninguém sequer se desse pela falta dela.

—E agora estou em maus lençóis com meus pais: a mamãe já sabe da esposinha. — Gintsune falou algum tempo depois. — E guarde minhas palavras Yukari: você não conheceu a verdadeira violência até conhecer meu velho. — Yukari o sentiu estremecer, e ele finalmente endireitou-se e afastou o rosto do seu pescoço — Você e eu temos que conversar.

—Temos.

Concordou recostando as costas ao peito dele e deitando a cabeça para trás, apoiando-a em seu ombro para olhá-lo de lado.

Não sabia por onde começar, então o deixou decidir.

—Eu desejo você Yukari, carnalmente falando.

Ela só queria que ele tivesse escolhido uma forma mais sutil!

Yukari se sobressaltou tanto que quase pulou para longe, mas Gintsune a manteve firme onde estava, e daquela posição ela nem conseguiria um bom ângulo para tomar a péssima decisão de estapeá-lo outra vez.

Voltando a enterra o rosto no pescoço dela, dessa vez do outro lado, Gintsune continuou:

—Isso foi um dilema para mim durante algum tempo, porque você é minha amiga valiosa, e nem mesmo eu poderia ser tão canalha para brincar assim com o coração de quem verdadeiramente me importo, mas quando falei com Arisu…

—Você realmente conversou bastante com essa mulher. — Yukari o interrompeu antes que percebesse.

Gintsune deu de ombros.

—Ela tem praticamente um estoque ilimitado de bebidas a um estalar de dedos de distância.

Comentou como se isso esclarecesse tudo… na verdade se tratando dele esclarecia, Yukari girou os olhos: você atrai mais moscas com mel… e mais libertinos bêbados possuindo um antro de depravação e bebidas.

—E o que ela te disse?

—Que você é grande o suficiente para tomar suas próprias decisões e escolher se quer ou não estar envolvida comigo, ela chamou isso de “explicar as regras do jogo”. — ele apoiou o queixo em seu ombro — Mas falando francamente, Yukari, eu tenho sérias dúvidas a respeito do seu bom senso.

—Eu também. — ela admitiu.

—Você é minha amiga valiosa e eu jamais sonharia em machucá-la, mas… realmente a desejo ardentemente. — de repente ele lambeu seu pescoço, fazendo Yukari soltar um gritinho.

—Não faça isso! — reclamou enfiando a mão na cara dele para afastá-lo, antes que a mordesse outra vez — V-você já deixou uma m-marca aí noite passada…!

Reclamou corando.

Mas quando o atrevido lambeu a palma da sua mão, Yukari afastou-a rapidamente, quase se engasgando.

—E agora que sei que sou correspondido, não sei porque simplesmente não vamos em frente… — continuou falando calmamente.

Novamente Yukari precisou deter as mãos dele, que começaram a se moverem perigosamente, tentando subir e descer para áreas inadequadas, e fizeram seu rosto queimar ainda mais de vergonha.

Como se já esperasse que ela fizesse exatamente aquilo, Gintsune entrelaçou os dedos de suas mãos às delas.

—O que quer dizer com “agora que sabe que é correspondido”? — Yukari reclamou de cabeça baixa — Eu te disse que gosto de você romanticamente falando, e você me respondeu algo completamente diferente!

A raposa fez uma careta, sem entender porque ela soava chateada agora.

—Não é completamente d…

—E também não é a mesma coisa! — ela o interrompeu. — Foi por isso que não me rejeitou como eu te pedi, mesmo não me correspondendo? Seu devasso!

Gintsune piscou surpreendido.

—Mas eu não quero rejeitar-te! — negou prontamente — Achei que nós poderíamos…

—E depois? — voltou a interrompê-lo — Se conseguir de mim o que quer, irá simplesmente se cansar e ir embora para contar á sua irmã e seus amigos uma história divertida?

Seu tom era muito sério agora, e um pouco chateado também, perigosamente próximo da mágoa, talvez, mas mesmo assim Gintsune não pôde evitar rir levemente — um mau hábito que precisava corrigir — antes de ficar completamente sério novamente.

—Isso seria impossível. — garantiu com absoluta certeza — Você já me era valiosa muito antes de eu querê-la, então quer meu desejo por você acabe ou não, Yukari, eu sinto que você nunca mais poderá escapar de mim.

Yukari engoliu em seco, tensa entre seus braços.

—Isso… que acabou de dizer foi um pouco assustador. — ela comentou.

—Foi mesmo? — ele refletiu. — De qualquer forma só quero que fique claro que não é meu propósito magoá-la, e não tenho absolutamente nenhuma intenção de usá-la e descartá-la.

Não, só tinha intenção de ser seu amigo e ganhar direito a certas liberdades que amigo algum deveria ter, até que se cansasse delas.

Yukari bufou.

—Se isso é tudo o que tem a me dizer, por que não me rejeita de uma vez? Continuamos amigos, e você sacia esses desejos lascivos com outras pessoas com quem não tenha nenhuma amizade, todos ficam felizes!

—Mas eu não fico! — Gintsune protestou abraçando-a mais forte e enterrando o rosto na curva de seu pescoço novamente — Por que fica me dizendo para rejeitá-la? Parece que, ao invés disso, é você quem quer rejeitar-me Yukari, mais ninguém irá me satisfazer além de você!

O poder da escolha era assustador, a qualquer instante ela podia simplesmente ordenar que ele tirasse as mãos dela e não havia nada que ele poderia — moralmente falando, porque sim, ele tinha alguma moral quando se tratava de alguém importante para ele — fazer para detê-la.

—Mas eu não ficaria satisfeita! — Yukari protestou tentando desvencilhar-se das mãos dele, isso não era justo! Ele dizia a ela que tinha escolha, mas não a deixava ir! — É completamente normal que sejamos amigos um do outro e de várias outras pessoas também, mas não posso admitir ter tais liberdades com alguém que as tem com várias outras pessoas também!

Gintsune suspirou e tentou subir as mãos, mas ela o segurou.

—Acabei de dizer que não faria nada para te magoar ou incomodar.

—E se eu o rejeitar?

—Mantenho minha palavra.

—E se não puder mantê-la? Você é um libertino da pior espécie.

Gintsune riu com aquela descrição.

—Então antes de isso acontecer, irei rejeitá-la, como você pediu, e não estarei quebrando nenhuma promessa… certo?

Yukari refletiu.

—Certo… eu acho.

Mesmo a breve hesitação dela, foi o suficiente para animá-lo, Gintsune ergueu a cabeça já todo sorridente e empolgado:

—Então isso significa…!

—Na noite passada. — Yukari fez uma pausa para respirar e Gintsune ouviu-a com atenção. — Eu gostei quando você me beijou.

Foi tudo rápido demais, em um momento Yukari estava sentada na beira da cama com Gintsune atrás dela — sentindo o coração dele contra suas costas — e sendo abraçada por ele, e no instante seguinte estava deitada na cama com Gintsune sobre ela, segurando-lhe ambas as mãos ao lado de sua cabeça.

—É claro que gostou. — concordou com um sorriso ardiloso… logo antes de piscar confuso, como se ele próprio não tivesse se dado conta de como chegaram àquela posição — Espere, isso foi um elogio ou um pedido?

Yukari suspirou.

—Ambos. — admitiu.


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Notas finais do capítulo

Os irmãos estreitando laços e Furin precisando de um sossega leão... Quando Tamaki pegar esses filhotes... vixe!
E, admito, está ficando cada vez mais difícil controlar Gintsune quando ele está na mesma cena que Yukari kkkkkkk



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