A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 45
44: Uma sina com raposas


Notas iniciais do capítulo

Vocês não sabem a correria que passei para postar esse capítulo hoje, preciso de dorflex... em fim, espero que gostem, e me avisem sobre qualquer erro ou palavra que não entenderem.

GLOSSÁRIO:

Ginza: Repleta de boutiques de luxo é comparada com a Quinta Avenida de Nova York, sendo a zona mais elitista e cara da cidade.

Isetam Shinjuku: Loja de departamentos com vários andares de roupas e artigos de alta costura.



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Arisu já levava mais da metade de sua vida em uma rotina quase exclusivamente noturna, na qual costumava ir dormir às 6h depois de uma longa noite e só acordar por volta das 17h, a menos que houvesse algum compromisso urgente que exigisse sua presença, mas mesmo então ela não acordava antes das 15h… e hoje era um desses dias.

—Que sorte que o aniversário da sua garotinha simples do campo tenha caído justamente em uma segunda-feira, não é Gin? — comentou com um braço enlaçado ao de Gin enquanto caminhava sem prestar atenção aonde iam com as botas de salto alto estalando no assoalha enquanto deslizava o dedo continuamente na tela de seu celular — Afinal o País das Maravilhas geralmente fecha nas noites de segunda-feira, a menos que alguma cliente especialmente abastada queira reservá-lo com alguns meses de antecedência, mas isso quase nunca acontece.

—Todos os seus negócios fecham na segunda-feira? — Gintsune perguntou distraidamente olhando a volta.

Ele ainda se lembrava quando, em tempos antigos, as grandes damas e senhores da corte recebiam os mestres artesões em seus palácios, mas agora parecia que a nobreza é quem tinha quem se mover até o palácio dos comerciantes, tudo parecia muito caro, exclusivo e nobre ali também, mas frio e distante, sem nenhuma alma verdadeira do artista… na verdade parecia quase uma extensão da própria essência de Arisu.

—Não, mas essa é a vantagem de ser a dona, e eu estava curiosa sobre você e achei que seria uma boa oportunidade para relaxar.

Você podia tirar uma mulher de seus negócios, mas não os negócios da mulher.

Pois mesmo enquanto ela falava isso, não desviava os olhos da tela do celular nem por um instante sequer, da mesma forma como parecera ter usado o mesmo esmero para se arrumar para um passeio casual que usaria para uma de suas cotidianas noite de negócios, vestindo uma calça de couro preto e botas de cano alto e abrigando-se do frio com uma capa casulo transpassada cor de terracota, de lapelas largas e adornada com quatro grandes botões pretos divididos em duas fileiras, combinando com o cinto largo em sua cintura e a blusa sem gola que usava por baixo, os cabelos prateados haviam sido cuidadosamente escovados e modelados em cachos, arrumados sob um chapéu floppy também preto que, mesmo dentro do shopping ela ainda não fazia menção de tirar, bem como os grandes óculos escuros, mas aparentemente abrira uma concessão para optar por um tom mais rosado de batom no lugar de seu costumeiro vermelho e trazia como únicas jóias um par de brincos compostos de três perolas penduradas.

—Então seu tédio é a razão para me mostrar onde comprar um bom presente para Yukari? — ele sorriu querendo provocá-la — Por que apenas não é sincera e me diz que não queria ficar longe de meu belo ser?

—E se eu te dissesse isso, você ficaria? — ela deu de ombros — Geralmente eu gosto de fazer compras em Ginza, mas o Isetan Shinjuku é bom também, sabia que é a loja de departamentos mais chique do Japão? Todo o prédio principal é focado na moda feminina, se quiser posso ajudá-lo a escolher algo para a sua…

—Não. — Gintsune a recusou imediatamente — Eu mesmo quero escolher algo que demonstre a ela meu arrependimento e que também me importo. — mas essa imagem tão segura não durou muito, pois um instante depois ele suspirou e reclamou: — Eu devo ter dito a ela uma dúzia de vezes como era tediosa e simples, só que essa não é bem a verdade. Já levo muito tempo interagindo com humanos, mas por que essa mulher tinha que ser tão complicada? Com a esposinha tudo era mais simples: mesmo se eu derrubasse parte de seu telhado ou incendiasse o seu portão de entrada, eu só precisava sumir por uns tempos, deixar que ela descarregasse toda a sua fúria no meu irmão e depois voltar trazendo algum presente caro e bonito, ela ama tudo que é bonito, mas Yukari? Parece que não há nada que ela goste ou queira!

Pelo menos, nada além de vê-lo bem longe dela.

—Você é um cunhado e tanto. — Arisu ironizou com um sorriso de escárnio — Primeiro de tudo, “simples e tediosa”? Devia dar-se por satisfeito dessa garota não ter te mandado pastar a tempos atrás! E em segundo lugar… — ela ergueu o rosto com seu típico sorriso de negócios enquanto afastava a mão do braço dele para gesticular um sinal de dinheiro enquanto dizia: — Lembre-se que o grau da sua sinceridade está diretamente ligado ao tamanho do diamante.

Mesmo tendo dito que não queria ajuda para escolher, Gintsune não desconsiderou completamente a sugestão de Arisu.

Ele queria dar algo a Yukari tão excepcional que ela esqueceria completamente qualquer emoção negativa que ainda pudesse nutrir contra ele e também que pudesse levar sempre consigo — acalmando-a quando ela começasse a se aborrecer de novo com ele.

Roupas não serviriam, pois elas eram sazonais, nem adornos de cabelo, porque Yukari era tão desnecessariamente teimosa que se recusava até a trocar o penteado e levara mais de um ano só para usar o grampo de cabelo que ele dera a ela… além de que, depois das atitudes dele no último encontro, qualquer presente do tipo poderia reavivar nela mágoas que ele estava tentando fazê-la esquecer.

Então joias realmente pareciam ser a melhor opção… mas talvez não diamantes, nem nada tão ostensivo assim.

—Ela acharia que estou sendo pedante e tentando manipulá-la para me perdoar sem me importar com… seja lá o que for que ela acha que eu fiz de errado.

Ele se justificou com um leve repuxar de um dos cantos dos lábios desviando o olhar e se ocupando em ajeitar alguns fios prateados que escapavam por debaixo de seu gorro azul aço quando Arisu sorriu-lhe chamando-o de sovina.

—E não é exatamente o que você está tentando fazer? — Ela provocou-o claramente se divertindo com o impasse dele.

—Mas ela não precisa saber disso! — ele brincou.

Anéis seriam muito inconvenientes e estavam fora de questão, pois Yukari já havia lhe falado do significado daquelas argolinhas para os humanos atuais, e isso com certeza só deixaria as emoções dela mais turbulentas ou gerariam o efeito oposto ao desejado e a faria ter a completa certeza de que ele estava apenas zombando dela.

Nada de brincos também, suas orelhas não eram furadas.

Alguns braceletes pareciam discretos e delicados como Yukari, mas eles seriam problemáticos de disfarçar sob as mangas do uniforme, especialmente com as mangas curtas do uniforme de verão, um colar seria mais fácil, porém ela era certinha demais, será que realmente iria usar…?

—Você vai escolher algo, Gin, ou prefere ir para outro lugar? — Arisu comentou, sentada a uma pequena mesa de vidro com dois extravagantes mostruários de jóias diante de si enquanto balançava os dedos parecendo lustres de cristais com, pelo menos, três diamantes de diferentes formatos e tamanhos em cada dedo — Eu só preciso de um momento aqui…

Mas Gintsune balançou a cabeça.

—Aqui está bom. — respondeu avaliando com interesse um mostruário ali perto.

Será que ela gostaria disso? Eles eram permitidos pelo código de vestimenta da escola, além de serem práticos e dar a ela uma razão plausível para usar sempre, mas será que combinariam com seus quimonos? Yukari não se importava com isso, mas ele sim.

—Se a questão for o valor, não precisa se preocupar, se gostar de algo eu mesma posso… — ela começou a sugerir.

Porém, mais uma vez, o lindo homem recusou-a com um balançar de cabeça.

—Eu mesmo posso cuidar disso. — garantiu com um tom anormalmente sério para si.

—Ele está com sérios problemas. — Arisu comentou sorrindo zombeteiramente com a atendente próxima a ela, que sorriu cúmplice de volta, como se compartilhassem alguma piada interna.

Geralmente quando algum de seus rapazes pisava em uma joalheria ou boutique, era para eles próprios receberem presentes e mimos sem precisarem gastar um único centavo sequer e absolutamente nunca levavam o assunto tão a sério quanto seu pobre Gin naquele momento, que continuava a andar de um lado para o outro na joalheria, avaliando e considerando minuciosamente cada peça exposta.

Minha nossa, ele parecia tão lindo, concentrado e seriamente refletindo sobre cada possibilidade daquele jeito, passando uma imagem completamente diferente do sujeito despreocupado e confiante que sempre transparecia ser quanto estava junto com ela, que Arisu só tinha vontade de tirar algumas fotos e atormentá-lo um pouco mais, pois não havia nada que a agradasse mais do que ver homens bonitos inquietos, mas também se sentia cada vez mais intrigada, afinal, que tipo de mulher era aquela capaz de tomar daquela maneira a mente de um homem — quer ele admitisse ou não — com o tipo de aparência e personalidade de Gin? Especialmente se ela realmente fosse apenas uma simples garota do campo, como ele afirmava… Arisu cruzou as pernas, observando-o.

—Eu estou nesse ramo há mais de vinte anos Gin, e não pergunte a minha idade, e já conheci vários tipos de homens, solteiros ou comprometidos, dos invisíveis aos mais poderosos, há aqueles que simplesmente estão solitários, mas na maioria das vezes alguns deles gostavam de fingir ter uma vida perfeita e usavam-nos como parte de seu espetáculo, outros tinham uma vidinha medíocre e deplorável e nós éramos apenas seu meio de escape, havia também uns tantos que vinham a nós só para reclamar e dizer-nos o quanto éramos melhores que suas companheiras tediosas que arruinavam suas vidas, esses porcos canalhas costumam ser os mais lucrativos. — ela estendeu a mão direita à frente, avaliando as jóias em seus dedos — Mas em algumas raríssimas vezes… um tipo como você aparece.

Gintsune sorriu afastando-se do balcão com mostruários de joias e aproximando-se dela, inclinando-se por trás de seu assento com uma mão apoiada de cada lado dela na mesa para observar por sobre sua cabeça todos os diamantes dispostos à sua frente e dos quais ela tanto gostava.

—Isso parece inacreditável. — comentou tranquilamente. — Mesmo se estivesse nesse ramo há cinquenta anos, como eu poderia crer que você já encontrou outro tão belo e encantador quanto eu?

—A modéstia não é um de seus pontos fortes, com certeza, mas não é a isso que me refiro Gin. — Arisu devolveu três dos anéis de suas mãos ao mostruário e pegou mais um para experimentar — Acho que posso contar nos diamantes da minha mão às vezes em que um de vocês veio a nós porque arruinou uma relação… e se culpa por isso ao invés de culpá-la e, o mais chocante: — ela deitou a cabeça para trás, olhando para o alto como se estivesse genuinamente abismada: — Você é uma raridade entre as raridades, porque mal consigo me lembrar de outro que veio a nós buscando conselhos sobre como reatar a relação e eu definitivamente nunca vi alguém entrar para o nosso meio para reconquistar alguém… geralmente é o oposto.

—Você foi bem carismática, admito, mas eu não queria conselhos, só espairecer. — Gintsune retrucou se afastando — E Yukari e eu não temos esse tipo de relação.

—Ainda. — Gintsune não respondeu à provocação, e Arisu começou a devolver um a um a maioria dos anéis ao mostruário — Não posso decidir, então levarei esses três.

A atendente curvou-se agradecendo à compra e, sorrindo cordialmente, se ofereceu para mostrar mais algumas joias caso ela estivesse interessada.

—Não, hoje estou apenas acompanhando, mostre o resto a meu amigo, é ele quem precisa comprar o perdão de alguém. — dispensou com um aceno da mão. — E é por isso que, mesmo você sendo um diamante que só se pode encontrar uma vez a cada cinquenta anos, meu tolo coração foi tocado e me disse para deixá-lo ir.

—E acha mesmo que alguém pode me manter contra vontade onde quer que seja?

—Amanhã abriremos o País das Maravilhas, mas também é sua noite de folga. — Arisu evitou olhá-lo enquanto avaliava mais algumas joias nos mostruários — Porém… creio que não voltarei a vê-lo na quarta-feira, estou certa?

—Você foi uma amiga divertida Arisu.

—E você um jovem e lindo rapaz muito promissor e lucrativo. — ela devolveu com um suspiro — Acho que na quarta-feira me arrependerei de ter um coração tão complacente, na verdade, já estou me arrependendo agora.

Mas quer Arisu estivesse arrependida ou não, o fato é que Gintsune estaria partindo esta noite nem que a pior nevasca da história cobrisse e parasse o país inteiro!

Pois era o aniversário de Yukari, e seu primeiro ano crítico também, além de que a combustão das chamas dela finalmente havia diminuído de intensidade nos últimos dias, indicando que ela havia se acalmado afinal e também estava quase no fim, o que dava a ele o combo para dar a desculpa perfeita — a ele próprio e a ela também — para ir vê-la, apesar de sua proibição.

Ei, ele não estava desrespeitando sua vontade — não completamente —, mas como poderia saber se já tinha permissão ou não para vê-la, se não a verificasse uma vez ou outra?

E ele até tinha uma oferta de paz para ela!

Mas antes disso… Gintsune olhou a volta, seria imperdoável deixar aquele lugar sem levar absolutamente nada para sua linda irmã… mas como poderia escolher apenas uma coisa ali, quando tudo parecia combinar tão bem com ela?

Ainda bem que Arisu havia tirado o dia livre porque, ao que parece, ele ainda ficariam por mais algum tempo lá…

—Ela foi feita e pintada inteiramente à mão, com materiais de alta qualidade, por um artesão experiente da 12° geração de uma família que os produz desde o período Edo, está avaliado em quase ¥ 60.000, e é um modelo exclusivo e único e assim que o vi eu soube que ele precisava ser seu, irmã.

Gintsune explicou orgulhosamente, enquanto abria a refinada wagasa para o escrutínio de sua amada irmã.

—Ela é muito linda To-chan, você é realmente atencioso meu príncipe. — Comentou avaliando como o grou voava elegantemente sobre um fundo verde por entre delicados galhos de cerejeira e grandes ramos de peônias — Mas e quanto a essa outra caixa?

Gintsune fechou a sombrinha com um movimento abrupto.

—Isso… eu… — ele parecia tão desconcertado enquanto guardava a sombrinha de volta na caixa e propositalmente evitava seu olhar, que Momiji soube imediatamente para quem era. — Na verdade, irmã… eu estava querendo lhe dizer, eu… — ele umedeceu os lábios — Estava pensando em volta à Higanbana.

Sentindo a textura da wakasa com as pontas dos dedos, Momiji perguntou:

—Por que quer voltar a ver aquela reles humana?

—Mas… — ele passou a mão pelos cabelos — Para mim ela não é só uma reles humana, irmã.

Chamas azuis em uma noite de inverno vieram à mente de Momiji e ela cerrou os punhos sobre o colo, mas ainda assim respondeu com suavidade em sua voz:

—Eu sei.

—Ela é minha amiga. — seu auspicioso príncipe continuou. — É importante para mim.

Suas garras fincaram-se nas palmas das mãos.

—Mesmo depois de como ela o magoou?

To-chan ergueu a cabeça de repente, com os olhos muito arregalados.

—Magoar-me? Não! Fui eu quem…! — ele deteve-se suspirando — Eu… talvez, só talvez, tenha ficado um pouco abalado, é claro, mas nada do que ela disse magoou-me irmã, nem um pouco, e tudo o que ela disse foi apenas porque eu a magoei. — quando Momiji tocou a lateral do roso dele, To-chan contou rindo: — Mas isso foi antes, ela deve estar mais calma agora… e eu também tenho um presente! Sempre era assim com o tengu e a esposinha também, irmã, você não imagina quantas vezes eu os deixei a um fio da sanidade, então eu sempre dava um tempo e voltava com um presente…

—E quantas vezes eles o abalaram? — Gintsune calou-se, Momiji suspirou. — Eu estive pensando em visitar Hokkaido, já faz um tempo, mas se realmente tem que ir, meu amado To-cha, pode me procurar quando quiser…

Gintsune pegou a mão da irmã entre as suas e beijou-lhe as dobras dos dedos.

Ele realmente precisava voltar agora… ou talvez não conseguisse mais ir.

Não que ele tivesse passado todo esse tempo reunindo coragem para voltar a procurá-la e tivesse medo de perder essa coragem. Longe disso.

E de forma alguma ele estava com receio de que Yukari ainda estivesse magoada com ele e o rejeitasse, não, isso definitivamente não aconteceria, ela já havia se acalmado afinal, não era mais um turbilhão de emoções descontrolados que atraía insetos… e definitivamente não era porque já havia se esquecido dele ou simplesmente deixado de se importar com ele.

Corações humanos eram volúveis, mas… não tanto assim, certo?

Mas, diferente do que podia se passar pela cabeça daquela raposa prateada, não eram os pensamentos que Yukari podia ter ou deixar de ter em relação a ele aquilo que realmente vinha servindo de estopim às chamas dela durante todo esse tempo, assim como a verdadeira razão para o súbito apaziguar das combustões espontâneas ocasionais:

Uma semana antes, Yukari estava deitada de costas em sua cama com as mãos cruzadas sobre a barriga por debaixo da coberta, no silencio quase absoluto, e mal ousava respirar enquanto esperava, e então, de alguma forma ela soube e, ainda sem abrir os olhos ou mover-se na cama, pronunciou-se:

—Eu sei que você está aí. — apenas o silêncio absoluto foi sua resposta, mas ela não tinha dúvidas — Mesmo se não consigo vê-lo ou ouvi-lo, eu apenas sei que está aí, e depois de mais de uma semana me atormentando, de alguma forma reconheço-o quando está ou não por perto, então não adianta se esconder. — suspirou abrindo os olhos — Você está agindo sozinho? É só um garotinho… não pode estar sozinho, certo? — fez uma pausa em seu monólogo, balançando levemente a cabeça antes de continuar: — É só um garotinho, então é claro que não pode estar sozinho, mas quem está cuidando de você? Aquela pessoa sinistra está com você…?

Certa vez, Yukari havia ferido o ego de uma raposa extremamente vaidosa e a provocado a se manifestar, mesmo que não intencionalmente, depois de por acaso desdenhar de seus cabelos, e dessa vez parece que havia feito a mesma coisa novamente.

Em um piscar de olhos o garoto estava de pé sobre ela na cama, com um pé imundo firmemente plantado de cada lado de seu corpo e uma expressão de completa indignação.

—Acontece que não sou nenhum bebê e posso me cuidar sozinho, sua otária!

Mesmo que soubesse que ele estava ali em algum lugar, ela ainda se sobressaltou com sua aparição repentina, mas apenas por um instante após o qual franziu o cenho e cobriu a boca e o nariz com a coberta.

—Quando foi à última vez que tomou banho e esfregou bem atrás dessas orelhas?

Reclamou agora surpreendida em como ele podia ter conseguido cheirar daquela forma em pleno inverno, e tinha até receio de perguntar onde estivera rolando para conseguir essa façanha!

Anko, por sua vez, tentava ocultar sua própria incredulidade, pois ele conseguia dizer, pelo seu ritmo cardíaco, que ela não estava apenas fingindo estar calma, mas não sabia se aquela mulher era maluca ou apenas incrivelmente estúpida!

Ali estava ele, podendo rasgar sua garganta a qualquer instante, e ela queria saber da limpeza das orelhas dele?!

Eram aquelas chamas irritantes que davam tanta confiança a ela? Que estúpida!

—Você tem alguma ideia da situação em que está?! — reclamou.

—Absolutamente nenhuma. — ela respondeu no mesmo instante, com expressão completamente neutra, fazendo-o piscar — É por isso que estou lhe perguntando: Por que eu? Estava entediado e achou que eu seria divertida?

—Nunca vi alguém mais tediosa! — Anko retrucou cruzando os braços e virando a cara, irritando-se com toda aquela falta de reação dela.

A mulher suspirou.

—Eu já esperava por isso. — admitiu — E então, o que quer de mim? Já que, mesmo sendo tão desinteressante você tem dedicado bastante tempo a me atormentar.

—Não fique se achando, porque não era você que eu queria sua estúpida. — ele bufou saltando da cama com uma agilidade e leveza surpreendente para suas vestimentas, pousando no chão sem se enroscar nelas e quase sem produzir som algum, e sentando-se ali, de costas para ela — Mas se eu a incomodasse, isso o afetaria, mamãe está sempre exaltando como seu príncipe era adorável e gentil, até abandoná-la insensivelmente e passar a ignorar todos os seus chamados, então eu queria ver que cara aquele otário faria quando seu brinquedo favorito se quebrasse! — ele mordeu a ponta do polegar irritadamente — Mas tediosa desse jeito, você não colabora em nada na minha motivação, mulher!

E concluiu seu monólogo tão irritado que sequer percebeu que, na verdade, havia alcançado seu objetivo secundário: Pois, atrás dele, o coração de Yukari havia dado um salto no peito ao mesmo tempo em que ela se sentava na cama de olhos arregalados.

Quando seu brinquedo favorito se quebrasse”, ela não havia gostado nada de como aquilo havia soado!

Mas ela tinha que se acalmar, pensou em frenesi, se pouco motivado como estava com sua falta de reação, ele já estava se empenhando tanto, imagine o que faria se ela o “motivasse” minimamente sequer? Pelo contrário: tinha que desencorajá-lo tanto quanto possível!

—Se… esse realmente era seu único interesse, então você perdeu tempo. — avisou-o engolindo em seco.

—O que quer dizer com isso? — o garotinho perguntou com os olhos semicerrados.

Yukari desviou o olhar, virando o rosto para o lado oposto e encarando a parede enquanto respondia:

—As coisas entre ele e eu não são como você pensa. Mesmo se tivesse conseguido alguma reação de minha parte, ainda não teria obtido nenhuma dele.

Ainda sentado no chão o garotinho virou o tronco e apoiou o antebraço sobre o colchão.

—O que está tentando dizer mulher? Que, na verdade, ele não se importa com você? Há! Acha que eu sou idiota?! Pois saiba que eu posso farejar mentiras! — mesmo sendo quase inacreditável ele conseguir sentir o cheiro de qualquer outra coisa envolto naquele odor poderoso, Yukari ainda enrijeceu e cobriu a boca com a mão, quase sem conseguir conter o arquejar que essa fala lhe provocou, mantenha a calma, disse a si mesma. Mantenha. A. Calma. — Se ele realmente não se importa, por que invocou essas chamas? Ou você é estúpida demais para saber o que elas significam?

Provavelmente querer discipliná-lo com algumas tapas no traseiro não era a mais sensata das ideias, então Yukari baniu esse pensamento de sua mente.

Por agora, o que ela precisava era de uma forma de convencê-lo que se focar nela não era só tedioso, mas também uma grande perda de tempo.

Mas como faria isso? Yukari franziu o cenho, mas parou subitamente.

 Independentemente do ângulo que se olhasse, Gintsune era um cretino insensível, então qual poderia ser a dificuldade em pintá-lo exatamente dessa forma?

—Você tem razão quando diz que sou apenas um brinquedo: Ele só invocou essas chamas para que os insetos não se aproximassem de mim e ninguém mais pudesse me incomodar além dele. — deu de ombros, finalmente voltando a encará-lo, independente dos motivos altruístas que Gintsune pudesse ter tido ao “querer proteger uma amiga” com suas próprias chamas, não seria surpreendente se aquele pensamento também tivesse passado, mesmo que rapidamente, pela mente dele. — Mas isso foi antes.

O garotinho olhou-a com desconfiança.

—Por quê? O que aconteceu depois? — quis saber.

—Desde o início, tudo o que ele queria era ter alguém com quem pudesse falar de todos os crimes que cometia e problemas e desastres que causava e, quando eu descobri, por acaso, a sua verdadeira natureza, acabei me tornando na vítima ideal. — explicou-lhe devagar e tomando o cuidado de não se atrapalhar com suas palavras, mas, conforme seguia falando, a declaração ia-se tornando cada vez mais verdadeira até, em algum momento, tornar-se numa reclamação legítima: — Ele me perseguia e também me mantinha acordada por noites a fio contando-me todo tipo de história sórdida que eu não queria saber! Tentava me fazer beber saquê! Instalou-se em meu quarto como se fosse sua própria casa, colocou aqui feitiços estranhos sem minha permissão e trazia para cá o fruto de vários de seus furtos! E todo dia parecia pensar em uma maneira nova de me arrumar dor de cabeça, sabendo que eu não podia falar com ninguém…! — calou-se subitamente, dando-se conta que deveria estar convencendo-o de que já fora descartada, e não exaltando seu valor como joguete enumerando todas as formas que Gintsune a havia atormentado, pigarreou antes de continuar: — Mas quando ele se reencontrou com a irmã, ganhou uma ouvinte mais interessada e bem disposta, então eu me tornei obsoleta em minha função. — ela deu de ombros novamente — Os dois foram embora já tem alguns meses e, a essa altura, já devem até ter se esquecido da minha existência.

O garotinho não precisava saber sobre as inúmeras vezes que Gintsune havia se declarado amigo dela, ajudando-a e se preocupado por ela à sua maneira cretina e problemática de ser, e nem que esses sumiços por tempos indeterminados eram normais para ele, especialmente quando sabia que a havia irritado.

Já sem conseguir aguentar, ela livrou-se das cobertas, saltou da cama e foi até a janela abri-la, o vento gelado assoviou em seus ouvidos, mas, pelo menos, agora ela podia respirar de novo.

—Você é mesmo uma mulher inútil e entediante! — o garotinho reclamou atrás dela.

E você é um molequinho grosseiro e sujo. — ela pensou de volta, mal-humorada — Quando os transtornos na cidade começaram, eu achei que ele havia retornado… desde então você já estava o procurando? Por que quer tanto assim afetá-lo…? — de repente Yukari virou-se novamente com os olhos arregalados quando uma ideia louca trespassou sua mente sem aviso: — Não me diga que ele é seu pai!

Aquilo pôs o menino imediatamente de pé, como se houvesse recebido um choque.

—Mas que ideia mais louca é essa, mulher? — bradou.

Como se até ela própria estivesse assombrada com sua linha de raciocínio, Yukari agarrou o batente da janela com uma das mãos, em busca de algum apoio.

—Você… acaba de dizer que ele foi o príncipe de sua mãe, até que a abandonou, além de que agora ele também ignora todos os seus chamados e… você é uma raposa, não estou certa? Também… parece-se muito a ele…! — cobriu a boca com a mão livre, arregalando ainda mais os olhos — Então é verdade? É realmente filho dele…?!

—Você não é só estúpida, seu cérebro deve estar com defeito também! — o garotinho reagiu defensivamente, levando uma mão ao rosto e desaparecendo.

Ele não apenas sumiu, mas Yukari soube que ele de fato havia ido embora também, e caiu sentada no chão, ainda com a mão sobre a boca, em completo choque.

—Oh… pelos deuses! — murmurou com voz abafada.

Sempre soubera que Gintsune era um canalha e houvera apenas uns poucos momentos em que suas expectativas fossem o contrário disso, mas parece que, ainda assim, ele ainda era capaz de se superar!

Um filho!

Aquela mulher só podia estar doente da cabeça para pensar em uma loucura daquelas! Anko saltou do telhado para a cerejeira no pátio interno da pousada e, de lá, para o chão, onde libertou seus criados do tubo de bambu, que saíram entrelaçando-se uns aos outros e já maquinando todas as coisas que poderia fazer esta noite entre risadinhas e murmúrios mal contidos:

—O que faremos hoje, jovem mestre?

—Trocaremos o açúcar por sal?

—Colaremos os talheres no teto?

—Cobriremos tudo com…?

Mas aos poucos, eles se deram conta de que não estavam dentro da casa como esperavam, e deram voltas confusas situando-se ao novo ambiente.

—Por que estamos aqui? — elas conferenciaram entre si.

—O jovem mestre está com fome novamente? — sugeriu uma delas.

—Mas não há mais peixes. — a segunda constatou sobrevoando o lago artificial.

—Então talvez um banho? — sugeriu a terceira, juntando-se a ela.

—Mas a água está fria! — a primeira raposinha protestou enrolando-se em torno do pescoço do jovem mestre, como um cachecol e estremecendo. — Muito fria!

—Há banheiras e água quente lá dentro! — as duas restantes sugeriram animadamente.

—Ah, calem-se! — Anko impacientou-se arrancando o criado de seu pescoço e o lançando contra a dupla restante. — Isso não é hora para comer nem para banhos! Escutem aqui idiotas: aquela mulher está tentando me fazer de tolo!

—Que ousadia! — sibilaram dois dos três criados imediatamente em resposta.

—Como ela fez isso? — o terceiro piscou curioso.

Anko sentou-se de pernas cruzadas e expressão carrancuda na neve enquanto contava:

—Aquela mulher patética acha que sou algum pirralho tolo de cabeça oca, e tentou convencer-me que é um brinquedo descartado e esquecido que não tem mais nenhuma importância para ele. — Mas os três criados continuaram o encarando com expressões vazias, na expectativa que o jovem mestre finalmente chegasse ao ponto crucial da afronta, irritando Anko ainda mais: — Ela estava tentando mentir na minha cara, seu trio de patetas, e mente horrivelmente também! O que é ainda mais ultrajante! Que mulher mais patética!

—Ah… ah! — fizeram os três, logo antes de inclinarem as cabeças simultaneamente, ainda com expressões vazias e confusas: — Mas que parte era mentira?

—Tudo, seus paspalhos!

Anko arrancou um punhado de grama, lama e neve do chão e lançou furiosamente contra o trio, que se esquivou habilmente.

—O jovem mestre sempre foi disperso! — a primeira delas afirmou.

Enquanto as outras ecoavam com risadinhas irritantes e estridentes:

—Inconstante!

—Volúvel!

—Ele sempre se cansou e descartou muito rápido todos os brinquedos!

—Coisas tediosas!

—Sem graça!

—Esqueceu-se até da sua linda mãe, por que não esqueceria uma mulher humana desajeitada?

—É por isso que estamos aqui!

Os criados começaram a contorcer-se, arranhando e mordendo uns aos outros agitadamente, enquanto ganiam estridentes:

—Nossa mestra sofre!

—Sofre!

—Pobre de nossa linda mestra!

Anko mergulhou a mão no lago e espirrou-lhes a água gelada com um gesto irritado e impaciente, assustando-os e espalhando-os.

—E quando foi que ele protegeu com as próprias chamas, algum brinquedo? — reclamou, embora agora mais parecesse que estivesse falando sozinho — Além do mais, ela disse que ele só queria impedir que os insetos se aproximassem dela para que ninguém mais pudesse incomodá-la além dele, que sentido isso tem? Por que quebrar um brinquedo se não puder vê-lo colapsando sobre o próprio peso?! — sem que notasse, a cauda de Anko havia escapado e agora se agitava de um lado para o outro por debaixo das camadas de roupa — E ela tentou me convencer que ele já foi embora há muito tempo com a irmã e não irá mais voltar, baboseira! Porque, destrambelhada e patética daquele jeito, se realmente fosse assim, então as chamas já teriam se extinguido! — ele mordeu a ponta do polegar — Estava tentando me fazer de idiota, mas estou vendo… ela também gosta mais dele do que admiti, porque se aquele otário fosse para ela somente o canalha inconveniente que tentou passar-me, então não teria sido nenhuma surpresa e nem ficado tão chocada quando me confundiu com…!

Ele parou subitamente e os pequenos criados, percebendo isso, se reaproximaram.

—O que aconteceu jovem mestre?

O corpo de Anko se encolheu sob si mesmo, enquanto ele tornava-se uma bolinha de pelos negros e saía correndo pelo gramado semicongelado.

—Eu tive uma grande ideia!

Nenhum deles pôde se dar conta da presença de um quinto individuo naquele jardim, pois o Zashiki Warashi havia se habituado ao longo das décadas, a sempre se ocultar e nunca se deixar ser percebido — quando os humanos se davam conta de que a boa sorte estava ao alcance de suas mãos eles se tornavam egoísta.

Escondido por trás da cerejeira, ele mordeu o lábio inferior com preocupação, por que agora parecia que a pousada nunca estava livre de raposas? E era cada vez uma mais problemática que a outra!

Seria por causa da filha de Daisuke? Ele tinha certeza que sim, mas por que ou como ela fazia aquilo? Isso… por acaso era por causa do avô de Jouchirou? No fim, toda ação cobra uma reação, e se aquela pobre criança houvesse simplesmente tido a mar sorte de ter herdado o carma de seu antepassado?

Mas se fosse assim, como ele podia ajudá-la? Quanto sal grosso seria necessário para limpá-la?

Não havia nada que o pequeno deus da boa sorte pudesse fazer diretamente por ela, mesmo se pairasse o tempo todo aos seus calcanhares, duvidava que isso influenciasse as raposas a se afastarem dela, e também havia aqueles olhos, eles nunca haviam sido um problema antes — o pequeno Zashiki Warashi sequer os tinha notado até então — porém agora eles vinham ficando cada vez mais problemáticos… mas… ele ainda podia influenciar as pessoas ao redor dela, não é?

—Daisuke, pode me dizer quantas filhas você tem?

Tsubaki perguntou de repente, invadindo o escritório do filho, que lhe lançou um olhar confuso.

—Mamãe, o que está tentando fazer agora…?

—Tantas assim que nem consegue contar?! — Tsubaki simulou surpresa e exasperação.

Daisuke estava tentando ter paciência com a mãe, pois afinal ela havia ficado muito abalada com o sumiço de suas amadas carpas — e com certeza extremamente furiosa e frustrada quando percebeu que os policiais com quem dera queixa não pretendiam fazer mais do que apenas registrar um boletim de ocorrência e, pouco depois, quando um jornalista veio bater à porta para escrever sobre o caso.

—Yukari é minha única filha, mãe. — Daisuke respondeu por fim, franzindo o cenho com confusão — Para que tudo isso afinal?

—Ah, então você sabe afinal. — Tsubaki endireitou as costas com as mãos nos quadris — Achei que eu tivesse alguma outra neta que não conheço, porque não posso acreditar que meu filho se esqueceria do aniversário de sua única filha.

As sobrancelhas de Daisuke quase se uniram.

—Eu não me esqueci.

—Ah sim? — Tsubaki o olhou criticamente — Perdoe essa velha senil então, achei que tinha esquecido porque não consigo me lembrar o que você planejou para a festa de aniversário de sua única filha.

—Planejado…? Festa…? — De repente Daisuke arregalou os olhos surpreso quando viu a mãe erguer o punho como se prestes a golpeá-lo. — Calma mãe! O que está havendo?!

—Não me diga que pretende deixar o aniversário de sua única filha passar em branco outra vez?! — vociferou Tsubaki. — Esse é seu primeiro ano crítico Daisuke, e também seu último ano escolar, ela vai precisar de toda sorte de benções disponíveis!

—Mamãe, a senhora pode se acalmar e se sentar?

Não era bom para a saúde de uma senhora se exaltar assim.

—Não!

—Como quiser. — ele evitou girar os olhos. — Mas também não é um estado de calamidade, certo? Em primeiro lugar, creio que os estudantes só começam a pedir por benções de boa-sorte e proteção na virada do ano anterior à prova do vestibular; em segundo, se não me falha a memória dentre os três anos críticos na vida de uma mulher, o mais perigoso deles é o segundo, não o primeiro; em terceiro, a senhora e Chiharu não lhe fizeram um bolo no ano passado? Então, segundo me consta, a tradição diz que esse ano ela é quem precisa preparar algo e convidar-nos, como agradecimento pela preocupação; e, finalmente por último, mas não menos importante: eu não pretendia deixar o aniversário de Yukari passar em branco, ia dar a ela algum tempo livre e dinheiro e dizer-lhe para visitar um templo e comprar um amuleto de boa sorte depois da escola.

—Tudo o que consegui ouvi foi: “blá blá blá sou um pai ausente e insensível que não se importa em fazer sequer o mínimo e se minha filha quiser uma fatia de bolo em seu próprio aniversário, ela mesma que o asse”! — sua mãe reclamou insatisfeita, com os braços cruzados.

—As coisas não são assim. — Daisuke franziu o cenho — Mãe, afinal o que a senhora quer de mim?

Finalmente aceitando a sugestão do filho para se sentar, Tsubaki puxou uma cadeira.

—Dê a ela o dia de folga ao invés de apenas algumas horas de tolerância após a escola! E não me venha com a mesma velha desculpa de “não podemos ficar sem uma funcionária durante a movimentada semana do dia dos namorados”! — o interrompeu antes que Daisuke pudesse dizer qualquer coisa — Contrate mais funcionários temporários se preciso! A menina não escolheu a data de nascimento, escolheu?! E se a filha do dono não pode contar com um pouco de nepotismo, quem pode?!

—Eu não ouvi nenhuma reclamação de Yukari…

—E se um peixe nascido e criado em cativeiro pudesse falar, também não ouviria nenhuma reclamação dele sobre nunca ter visto o oceano!

—Mãe, a senhora está sendo irracional. — Daisuke suspirou massageando uma têmpora — Por favor, eu não quero discutir…

—Então estamos resolvidos, direi a Yukari que você deu a ela o dia de seu aniversário de folga e dará a ela dinheiro o bastante para ela ir a um templo tomar um banho completo de sal grosso, que sinto que ela está precisando muito, e também para comprar um lindo bolo.

—Eu nunca disse…!

—Foi bom conversar com você, filho, fico feliz que consegui fazê-lo ver as coisas de outro ponto.

Tsubaki curvou-se com um sorriso satisfeito e saiu rapidamente, sem dar a Daisuke uma chance sequer de contra argumentar, após o que ele recostou-se na cadeira, inacreditavelmente parecia que, quanto mais idade ela ganhava, mais impossível ficava!

Ele sempre receou que algum dia precisasse lidar com a tão temida rebeldia da adolescência, mas nunca pôde sequer cogitar que essa fase rebelde fosse vir não de sua filha, mas sim de sua própria mãe!

Claro que ele não era o único lidando com rebeldia e imprevisibilidade vinda dos elementos mais inesperados possíveis em momentos completamente inadequados… na verdade, poucos momentos podem ser mais inadequados do que quando se está no banheiro atendendo a um chamado da natureza.

Talvez Yukari ainda estivesse com os sentidos dormentes depois da abaladora descoberta do dia anterior, ou então se tornara confiante demais achando que já estava bastante habituada ao comportamento amoral e complicado das raposas, ou então apenas relaxara por não ter sofrido nenhuma pegadinha nas últimas quinze horas… mas o fato é que ela definitivamente havia baixado a guarda quando achou que não haveria nada demais em uma simples e rápida ida ao banheiro para se aliviar… ledo engano.

E poucos momentos poderiam tê-la pegada mais desprevenida do que sentada no vaso sanitário com a saia amontoada em volta dos quadris e a calcinha nos joelhos, que foi o exato momento em que o pirralho escolheu para surgir com a cabeça por sobre a cabine, dizendo:

—Oi, mulher, o que é um aniversário…?

Em poucos momentos na sua vida Yukari foi tão ágil quanto naquele em que, com o susto, simultaneamente, quase caiu dentro da privada e conseguiu agarrar e arremessar um rolo de papel higiênico.

—Está ocupado! — exclamou agudamente, com as faces vermelhas.

—Cuidado! — ele reclamou esquivando-se, e agora somente as pontas de seus dedos podiam ser vistas — Não deveria desperdiçar suas chamas assim, elas já estão a um sopro do fim, sua otária!

Envergonhada, Yukari levantou-se se vestindo as pressas e correu para fora da cabine, só parando próxima a pia.

—O que você quer agora?!

Achava que, graças a Gintsune, havia se acostumado à completa falta de noção de espaço pessoal ou senso comum dessas criaturas, mas aquele garotinho era outro nível!

A criança saiu da cabine ao lado.

—O que é um aniversário? — indagou.

—Você não pode simplesmente entrar no banheiro quando alguém está usando! — Yukari reclamou.

O garoto coçou a cabeça fazendo careta.

—E por que não? Todos vocês, primatas pelados, cagam e mijam e também você acha que tem alguma coisa aí… — fez um gesto indicando-a da cabeça aos pés — Que eu nunca vi?

Pelos deuses! Yukari deu-lhe as costas, ele era tão ou ainda mais descarado que o pai!

Pai.

Yukari inclinou-se para frente, apoiando-se sobre a pia, ela não conseguia pensar nisso sem ter que se segurar a algo toda a vez, para não desfalecer.

—Os aniversários são os dias em que comemoramos o nosso nascimento, celebramos a longevidade alcançada e acrescentamos um ano de vida à nossa idade. — explicou para mudar de assunto, enquanto lavava as mãos e tentava manter-se composta.

—Isso aí não é o ano novo? — ele reclamou.

—Costumava ser assim antigamente, mas então adotamos um novo calendário solar vindo com os estrangeiros, humanos vindos do outro lado do mar, e agora todos podem comemorar no dia específico do nascimento. — explicou o mais didaticamente que pôde — Ainda mantemos a tradição e as idades mais importantes, é claro, e não é como se fosse algo que a maioria comemora anualmente, mas já há uns… cinquenta anos, os aniversários vêm se popularizando pouco a pouco, acho.

Algo se passou pela mente de Yukari naquele momento: quando Gintsune riu dos hábitos humanos de marcarem o tempo obsessivamente, especialmente agora que marcavam até o dia específico do nascimento, e declarou que ele próprio era uma criança da primavera, pois é óbvio que na época dele as coisas não eram assim, sendo ele uma criatura tão antiga, então… quantos anos realmente teriam seu filho que também não possuía tal conhecimento das atualidades?

Ela parou e observou o garotinho pelo reflexo do espelho… ele podia ser uma criança, mas era a criança de uma espécie que vivia por séculos a fio, afinal.

—Há, faz sentido! — o garotinho cruzou os braços com uma expressão convencida como quem dizia “eu já sabia disso tudo!” — Minha mãe disse que humanos morrem por qualquer coisinha e nunca duram muito, então é claro que vocês vão celebrar por cada mísero ano que conseguiram sobreviver a mais!

Yukari nunca havia tido curiosidade sobre as pessoas com quem Gintsune se envolvia, muito pelo contrário: preferia que ele mantivesse todas suas histórias sórdidas para si mesmo. Mas algo nela viu-se querendo saber mais a respeito da mãe daquela criança, quem ela era? Onde estava? Ela também estava por perto ou seu filho havia saído sozinho para caçar o pai cuja ausência tanto a fazia chorar e lamentar?

—Por que me perguntou sobre aniversários? — perguntou ao invés disso.

—A velha com o pé na cova e o estalajadeiro estava discutindo sobre o seu hoje mais cedo. — ele respondeu levando uma mão ao rosto.

—O que?

Mas quando Yukari virou-se, ele já havia desaparecido.

Por que ele sempre tocava o rosto antes de desaparecer? O rosto daquela criança… Yukari franziu o cenho, estava incrivelmente imundo!

Mas não é como se ela mesma pudesse mergulhá-lo numa banheira e esfregá-lo com uma escovinha, Gintsune quase havia arrancado seu pé a mordidas uma vez só por ela encostar na cauda dele, e ele era muito mais maleável que aquele molequinho… exclamou surpreendida quando, saindo do banheiro, deparou-se com quatro garotas enfileiradas perfeitamente imóveis e apáticas ao lado da porta, sem nem sequer piscar.

—Está tudo b…?

Começou a dizer, mas bem quando a porta do banheiro fechou-se atrás dela, as garotas piscaram e passaram por si, entrando no banheiro rindo e conversando como se nada tivesse acontecido.

É claro, ele podia se mostrar livremente diante dela, mas ainda tomava algum cuidado para não ser visto por outras pessoas.

Franziu o cenho se afastando do banheiro, que seja, ele podia ser grosseiro, incômodo e sem nenhum tipo de senso comum, mas pelo menos hoje ainda não havia aprontado nada além de ser incrivelmente inconveniente e invasivo, e também acabara lhe trazendo uma informação útil: seu aniversário.

É claro que ela sabia por que sua avó, que era mais supersticiosa que qualquer um, estaria absolutamente focada em comemorar seu aniversário esse ano e disposta a declarar guerra ao seu pai por isso, mas isso era um grande problema.

Supostamente ela deveria agradecer sua família pelo bolo e suas amigas pelo passeio, mas como convidaria suas amigas se sua família não sabia do passeio e suas amigas não sabiam que ela havia “ficado em casa” trabalhando no ano passado?!

Que dor de cabeça… se Gintsune estivesse ali, ele… não!

Ele era a razão de tudo sempre se complicar tanto, mesmo quando tinha boas intenções tudo o que ele fazia virava uma bola de neve!

Então primeiro ela iria até a enfermaria e pediria por alguns comprimidos para dor de cabeça, e depois…

—Boa tarde, Shibuya-chan. — o professor Haruna a cumprimentou sorrindo quando passou por ela no corredor.

Sem pensar, Yukari deteve-o com uma mão em seu braço.

—Preciso de ajuda.

Ela sabia o que tinha dito, mas não sabia o que em suas palavras havia deixado aquela expressão tão alarmada no professor.

—Aqui não, há muitos ouvidos! — Foi tudo o que disse antes de arrastá-la apressadamente dali e levá-la diretamente para a sala do clube de Investigação Paranormal. — Ótimo, as crianças não estão aqui hoje. — ele conferiu fechando a porta — Tudo bem pode contar-me Shibuya-chan, o que houve? Ele ameaçou-te? Amaldiçoou-te? Ou foi aquela irmã? As coisas estavam ficando mais calmas então achei que haviam partido novamente, mas… a copiadora que explodiu a uns dias na sala dos professores foi coisa dele, não é? Algo o aborreceu? Estão brigados? Ele a machucou?

Suas palavras saíam em uma torrente, sem que Yukari conseguisse encontrar uma brecha sequer para falar.

—Professor! — acabou por chamá-lo mais alto do que pretendia, cobrindo a boca com a mão quando percebeu — Desculpa, eu não pretendia, é só que…

—Está tudo bem. — Kakeru se afastou em direção à janela onde havia uma jarra de água sobre uma mesinha e serviu-se de um copo enquanto puxava uma cartela, já meio vazia, de medicamentos. — Então pode me explicar o que aconteceu?

—Não tem nada haver com Gintsune ou a irmã dele. — começou por esclarecer, apenas para tranquilizá-lo, enquanto puxava uma cadeira para se sentar e via o professor jogar dois comprimidos para dentro da boca e engoli-los com água — Pelo menos não diretamente, é só… meu aniversário.

—O que?

Quando o professor virou-se surpreso, ela desviou o olhar, sentindo-se muito constrangida, mas explicou tudo detalhadamente: seu aniversário anterior e aquele por ainda vir.

—Isso é… completamente espantoso. — ele deixou-se cair, abismado, em uma cadeira de frente à sua. — Uma raposa tomou sua forma e… espantoso! De verdade? Ah… é um mito ganhando vida! — a mão de Kakeru tremia de emoção — E a mesma raposa que me amaldiçoou caso eu contasse algo a alguém ainda por cima…! Shibuya-chan, que tipo de ligação você tem a essas raposas? É… fico sem palavras. — A ligação estava mais para sua própria maldição particular. Yukari resmungou consigo mesma, enquanto o professor seguia com seu monólogo maravilhado: — Por acaso algum de seus ancestrais tinha ligação com youkais?

—Os Shibuya têm uma pousada, professor, sempre tiveram, nós somos umas das famílias antigas da região. — o relembrou.

—Sim, mas e quanto à família da sua mãe? Qual era o nome de solteira dela? Ou sua avó? Ou… alguma outra noiva da família Shibuya? Talvez a ancestralidade de alguma delas…!

Ele já estava começando a se empolgar visivelmente.

—Professor, foco. — ela estalou os dedos na frente de seu rosto.

—Ah, certo. — ele sorriu constrangido — Então vamos pensar sobre como contornar a situação, certo? Aceita chá? É instantâneo.

A ideia de Yukari era simplesmente comprar um bolo de confeitaria, encomendar alguns petiscos e chamar suas amigas para comer junto com ela e a família, mas não demorou a descobrir que a ideia de “família” de sua avó era muito mais ampla que a sua: ela já estava planejando reservar o salão de banquetes da pousada e chamar, não só Kaoru, mas toda a família dela, bem como os parentes da mãe de Yukari também!

E se a Yukari não a detivesse a tempo, logo sua avó estaria também enviando convites para o irmão na América do Sul e a família dele também!

—Vovó! Por favor, não é para tanto! — exclamou abismada quando ouviu sobre o assunto enquanto as duas limpavam o balneário feminino.

—Mas é claro que é! — Tsubaki respondeu reabastecendo a máquina de vendas — Você precisa de todas as benções disponíveis!

Da forma como ela falava, Yukari sentia quase como se houvesse alguma pequena criaturinha soprando essas palavras no ouvido de sua avó.

—Eu vou ficar bem mesmo se forem apenas…

—Pensando bem, vamos deixar meu irmão de fora, aquele lá nunca projetou uma boa energia em um único dia de sua vida. — Tsubaki fechou e trancou a máquina de vendas.

—Também não precisamos chamar os parentes de mamãe, eles moram longe, eu mal os conheço e não quero…

—Ah sim, sua mãe também vai ligar amanhã para avisar à sua escola que você não poderá comparecer na segunda-feira por razões pessoais, afinal você precisa ir ao santuário receber sua benção, acha que ¥ 10.000 é o bastante? Não devemos economizar. E não ouse fazer como seu pai que, no ano mais crítico da vida dele, saiu escondido para fazer uma visita rápida a um templo porque não conseguiu convencer um monge de vir até aqui e aí na volta por acaso lembrou-se de comprar quatro fatias de bolo! Não estou bem lembrada, mas isso foi mais ou menos naquela época em que ele ficou obcecado achando que tinha alguém morando na pousada, não é? Aposto que foi porque não deu a devida importância aos ritos…!

Ela continuou seu grande sermão sem se importar em ouvir o que mais a neta poderia ter a dizer a respeito e que, na verdade, havia tido um pensamento muito semelhante ao do pai com respeito ao próprio ano crítico…

Todas as pessoas ao redor de Yukari eram um furacão ou ela é que era uma pessoa passiva demais? Esse assunto deu-lhe dor de cabeça.

Mal havia prendido os cabelos no alto e se submergido na banheira quando seu olhar foi atraído até a porta do box e, nem meio minuto depois, o garotinho abriu aquela porta sem cerimônias.

—Mulher, o que são essas coisas?

Ele aproximou-se deixando passadas de lama no chão molhado e estendeu-lhe a mão segurando… Yukari arregalou os olhos e puxou aquilo imediatamente da mão dele.

—Isso não é para você! — escandalizou-se, afundando a mão na água sem pensar. — São produtos de higiene intima feminina! Onde arranjou isso?

O moleque cruzou os braços.

—Nas suas coisas.

—Mas isso… você estava mexendo na minha gaveta de calcinhas?! — Yukari ficou roxa de vergonha.

O garoto olhou a volta sem lhe dar a menor atenção.

—Essa é a casa de banhos? Por que ela fica dentro de casa? E aquilo ali fora é a latrina? Do lado da casa de banhos? — ele a olhou com expressão contrariada — Você é esquisita mulher.

Yukari franziu o cenho.

— Do que está falando agora?

—Por que está reclamando por eu ter mexido nas suas coisas e não por entrar de novo no banheiro enquanto você usa?

De repente Yukari teve a nítida sensação de que ele fez aquilo de propósito, apenas para irritá-la.

Ela o olhou impassível.

—Você é uma criança. — argumentou o óbvio.

—E você uma mulher esquisita e sem graça! — ele retrucou injustificadamente grosseiro — Para que então fez toda aquela cena histérica da ultima vez?!

—Aquilo foi diferente. — Yukari levou a mão ao rosto — Você realmente não deve entrar quando…

—Você estava vestida naquela vez, e agora está aí como uma rã albina na água. — o pirralho retrucou mal educado e então, baixando os olhos para além do pescoço dela, torceu o nariz e soltou: — Minha mãe e meu pai são muito mais bonitos.

Ele levou uma mão ao rosto e desapareceu.

Yukari recostou-se e afundou na água até a altura das orelhas, fechando os olhos com força, será que ela devia estrangular aquele pirralho ou o pai, primeiro?

De repente não economizar na taxa para a benção, parecia algo bastante sensato, mas nada comparado ao exagero absurdo que sua avó estava mergulhando, afinal não era como se Yukari tivesse sido amaldiçoada… provavelmente.

—Olá? — ela acordou subitamente à noite.

Parecia que algo havia tocado sua mão por um momento… mas ela estava sozinha, franziu o cenho, estava ficando neurótica, só podia ser isso, franzindo o cenho virou-se e voltou a dormir.

De qualquer forma, ela ainda tinha cinco dias para tentar dissuadir sua avó… e, aquele pestinha também parecia ter se acalmado um pouco, depois de tudo, uma ou outra invasão de privacidade e completa falta de noção de espaço pessoal, não pareciam tão ruins quando se podia secar os cabelos sem medo de acabar coberta de farinha de trigo e calçar os sapatos sem esperar encontrar pedras lá dentro, então podia pensar com calma sobre o que faria…

—O que acha de visitar meu tio? Ele poderia te dar um bom desconto. — Sakura-chan sugeriu de repente quando as duas se encontraram por acaso enquanto colocavam para fora o lixo da sala de aula.

—O que? — Yukari piscou.

—Meu tio é um monge servindo no templo local de Inari. — Sakura-chan — E você precisa receber a benção pelo seu ano crítico, certo?

—Como sabe? — perguntou surpresa.

—Como eu…? — Sakura-chan pensou um pouco — Talvez uma das meninas tenha me contado? — sorriu — Um golpe de sorte, eu acho.

Yukari coçou as costas da mão.

—Obrigada Sakura-chan, mas minha avó acha que economizar nessa situação não seria o ideal…

—E ela tem toda razão! — Yukari não soube dizer quando, mas de repente Sakura-chan já estava ao seu lado segurando-lhe ambas as mãos — É uma data importante e precisa de um monge competente, não um vigarista qualquer, meu tio é muito bom realmente! Ele pode até ver o que geralmente é invisível aos olhos, acredite! E também, eu sei que sua família é de comerciantes, mas a cidade teve muitos problemas com raposas recentemente, então por que não visitar Inari, não é?

Yukari cerrou os olhos desconfiadamente.

—Ichinose-san. — chamou-a seriamente — Você ganha alguma coisa de seu tio por levar devotos a ele?

Sakura-chan afastou-se rindo discretamente.

—Por que pensa assim de mim, Yuki-chan, sou apenas uma amiga preocupada… mas se o Oda Takeru vier até você dizendo-lhe para ir ao templo de Ebisu, onde o pai dele serve, não lhe dê ouvidos!

—Deixando isso para lá, Sakura-cha, sobre meu aniversário…

No fim, Oda Takeru nunca veio até ela, e Yukari não viu motivos para não escolher o templo de Inari quando chegasse o dia… parece que ela realmente era uma pessoa passiva demais.

O que não significativa que ela podia ficar realmente cômoda com aquela criatura a seguindo quase o tempo todo.

—O que ele é? — perguntou ao menino, abrindo a porta da sala de descanso dos funcionários.

—Caramba mulher…! — ele se engasgou, olhando-a irritadamente — Como você sempre sabe onde eu estou?!

Talvez porque o cheiro dele estivesse começando a empestear tudo.

—Eu só sei.

Seu olhar vagou pelos cantos do cômodo, estavam realmente a sós ali?

O garotinho limpou a boca com a manga do uchikake, embora fosse uma peça tão refinada, parece que ele havia visitado às cozinhas hoje… e talvez às lancheiras de algumas crianças das escolas primarias da região também.

—Ele quem?

—O sujeito vestido de monge. — respondeu voltando sua atenção para ele — Não é humano, certo? Dá-me arrepios… o que ele quer?

—Ele é o servo da minha mãe, que foi incumbido de encontrar o precioso príncipe dela. — respondeu enfiando quase um sanduíche inteiro na boca. — E você parece bem ligada àquele otário, então o idiota deve estar achando que alguma hora ele vai voltar para vê-la, porque ainda não percebeu que você foi abandonada como a minha mãe, então se acostume otária. — Yukari estremeceu. Impossível. — E também ele não pode deixar-me sozinho.

—E onde está a sua m…?

—Ou então você só tem uma sina natural para atrair todo tipo de coisa. — ele a interrompeu apontando sua mão — Mas essa marca aí é medíocre.

—O que? — Yukari franziu o cenho.

Mas ele puxou para perto uma travessa com nikumans e voltou a ignorá-la, quanto ele ainda era capaz de comer?

—Você já experimentou mashmallows?

Aquilo atraiu a atenção dele novamente.

—O que?

Yukari foi até seu armário e pegou de lá um pacote, quase no fim, de mashmallows, que o pequeno pestinha puxou de suas mãos num piscar de olhos, abrindo a embalagem e farejando o conteúdo desconfiadamente.

—São doces. — explicou pegando um e comendo-o, para mostrar-lhe que não havia risco, e assistindo enquanto ele pegava três de uma vez e os enfiava na boca, arregalando os olhos logo depois, Yukari sorriu: — É bom, não é?

O garoto afastou-se para o outro canto da sala com um salto, agarrado ao pacote como um animal faminto.

—São meus agora! — sibilou.

—Fique com eles. — deu de ombros — Mas… se fizer o que eu digo, posso te arranjar dez vezes mais do que isso.

Ele agora estava encolhido no chão, colocando tantos mashmellows na boca quanto era capaz, e a olhou ainda mais desconfiado.

—Se está querendo que eu tire o idiota de madeira da sua cola…

—Seria bom, mas não, o acordo que quero propor é outro. — garantiu.

Comendo os últimos mashmallows, o garotou lambeu os dedos imundos e esperou.

—Depois de amanhã será meu aniversário… — começou por dizer.

Pois mesmo se Yukari fosse apenas a um templo ou a todos os templos da região, ou ainda, se ela fosse até Kyoto para se abençoar, ela não podia deixar sua sorte somente à mercê dos deuses: também precisava tomar suas próprias precações.

—São muito poucas. — vovó Tsubaki reclamou.

Ela ainda estava inconformada que a neta houvesse incluído menos de uma dezena de convidados em seu jantar, nem sequer uma festa, de aniversário — incluindo ela, Daisuke e Chiharu —, embora tivesse conseguido que a comemoração se desse no salão de banquetes da pousada, um completo exagero para Yukari, mas pelo menos assim as duas ficavam igualmente insatisfeitas.

—Eu entendo seu ponto, vovó, mas a senhora não acha que justamente por isso é melhor que sejam em menos quantidade? — Yukari tentou apaziguá-la — Eu só convidei aqueles que, sinceramente, teriam desejo pela minha boa saúde e de me felicitar. Priorizar qualidade ao invés de quantidade, entende?

A senhora bufou.

—Eu odeio quando você usa o mesmo tom profissional do seu pai e ainda assim consegue me vencer no argumento. — reclamou. — Mas pelo menos está usando a roupa nova que sua mãe lhe deu.

Comentou mais afável, se aproximando e tirando algum fiapo invisível do ombro da blusa preta lisa com decote canoa, mangas curtas e um laço na parte inferior da frente.

Yukari sorriu pegando as pontas da saia midi de três camadas cor-de-rosa com caimento assimétrico e inclinou a cabeça, e rodopiando por um momento, agradecendo:

—Eu as achei muito lindas!

—Ótimo. — a avó estendeu uma das mãos para colocar para trás uma de suas tranças — Mas você podia ter mudado o penteado, não é?

Yukari não queria pensar na última vez que havia tentado usar um penteado diferente.

—Eu me sinto mais cômoda assim, elas são práticas… — desconversou. — Ah! Kaoru!

—Yuki, felicidades. — Kaoru a parabenizou segurando suas mãos, com uma sacola de presente pendurada no pulso.

Somente o pai dela acompanhava-a e, sinceramente, Yukari estava aliviada que o avô de Kaoru houvesse ficado de fora.

—Bem vinda Kaoru, não precisava ter trazido nada, mas obrigada.

Cumprimentou-a, contendo todo seu nervosismo e vontade de implorar a Kaoru que, sob hipótese alguma, mencionasse o passeio do ano passado, e precisou reunir a mesma concentração e determinação com as chegadas de Aoi-chan e Aiha-chan, cada uma delas acompanhadas de seus respectivos irmãos, se ela não queria que o assunto fosse trazido à tona, ela não poderia ser a primeira a mencioná-lo também.

—Me desculpe Yukari-chan. — Aoi-chan se desculpou com ela, calmamente colocando a mão na cabeça do irmão menor para fazê-lo incliná-la junto com ela — Mas minha mãe saiu para trabalhar e eu não podia deixá-lo só em casa.

—Não se preocupe Aoi-chan, minha avó com certeza estará feliz de saber que temos mais convidados. — garantiu-lhe.

Aiha-chan, por outro lado, parecia estar torcendo para que o irmão dela fosse expulso:

—Ele insistiu em vir para “ter certeza que eu estava indo onde dizia que estava indo”. — explicou girando os olhos.

—Não tem problema. — Yukari garantiu. — Sejam bem vindos.

Mas de repente Aiha-chan a pegou pela mão e puxou-a de lado para um canto longe do irmão.

Ele vem?

Yukari balançou a cabeça abruptamente.

—De jeito nenhum.

—Bom. — Aiha-chan suspirou aliviada — Porque seria imprevisível o que poderia acontecer se o meu irmão se encontrasse com o seu canalha…

Yukari arregalou os olhos.

—Não o mencione perto do meu pai! — implorou.

E Aiha-chan colocou a mão em seu ombro e a tranquilizou, garantindo que não diria nada, assim que ela se afastou, Yukari olhou para um canto, algo estava lá.

—Estando ou não aqui, seu pai me causa muitos problemas. — resmungou.

Mas se ele estava ali, significava que estava disposto a cumprir com o acordo… certo?

Por fim, Sakura-chan acabou chegando junto com o Prof. Haruna.

—Felicidades minha mais querida amiga! — ela a cumprimentou, excessivamente animada e íntima — O professor me disse que sua família é dona de toda essa propriedade aqui!

O professor quase se engasgou ao seu lado.

—Ichinose-san, tenha modos!

—Realmente não é nada demais… — Yukari argumentou, tentando disfarçar o constrangimento.

Sakura-chan piscou-lhe.

—Se é o que você diz, minha querida amiga herdeira…

Então Haruna, ainda mais vexado, praticamente a chutou dali, a mandando ir cumprimentar as outras amigas.

—Felicidades Shibuya-chan. — parabenizou-a inclinando a cabeça.

—Obrigada, professor. — Yukari imitou o gesto.

Meio minuto de silêncio desconfortável depois, o professor pigarreou e começou a dizer:

—Então, a propriedade Shibuya… acho que nunca vim tão a fundo nela, seria… incômodo se eu pudesse ver a cerejeira?

—Nenhum incômodo. — Yukari sorriu-lhe.

E conteve-se de acrescentar que a “dama da Cerejeira” — obviamente a razão pela qual ele estava interessado na árvore — era a irmã de Gintsune.

Pelo menos se o professor começasse a citar lendas e histórias de Higanbana, isso poderia distrair o resto dos convidados e evitar que o ano passado, e todas as suas inconsistências, fossem mencionados, e era justamente esse o intuito do professor estar ali.

E felizmente sua família focou-se facilmente no professor.

—Então professor, está adaptando-se bem a Higanbana? — vovó Tsubaki perguntou-lhe.

—Ah, claro. — Kakeru confirmou — Já estou aqui há praticamente quatro anos afinal, mas confesso que a cidade nunca deixa de me surpreender, Higanbana é uma caixinha de surpresas.

Tão surpreendente que ele estava inclusive sendo medicado…

—E como Yukari tem se saído em aula? — Daisuke quis saber — O rendimento escolar dela tem caído.

Esse era um assunto para o qual você, obviamente, já deveria estar preparado que fosse abordado se convidasse um professor para sua casa, mas ela não esperava que fosse tão cedo assim, e com certeza sua avó também não, já que agora ela estava olhando para o filho como se estivesse escolhendo qual de suas orelhas iria arrancar primeiro.

—Shibuya-chan é uma aluna bem comportada e nunca causa problemas em sala de aula, é normal que tenhamos dificuldade em uma matéria ou outra durante nossa vida. — o professor respondeu gentilmente.

—Isso é verdade, eu costumava ter muita dificuldade com inglês. — Chiharu concordou querendo apaziguar.

—As notas da minha irmã também têm caído. — O irmãozinho de Aoi-chan comentou ao que sua irmã concordou sem parecer prestar muita atenção.

—Ah sim, a matéria têm estado um pouco difícil de assimilar nesse semestre. — Aiha-chan acrescentou rapidamente.

—Mas você não ficou em primeir…?

O irmão dela começou a perguntar antes de enrijecer emitindo um gemido abafado, resultado de um provável beliscão da irmã.

—Acho que é uma questão de organizar bem o tempo e focar naquilo que tem mais dificuldade. — tio Takumi opinou — Eu disse a Kaoru que ela só poderia estar em um clube se isso não atrapalhasse suas notas, nesse momento os estudos são o importante.

—Essa é uma boa estratégia, eu sempre faço meu dever de casa na sala do conselho estudantil, o ex-presidente era um ótimo tutor! — Sakura-chan alegou. — Sinto falta dele…

—Você já conseguiu as apostilas antigas dele? — Aiha-chan perguntou interessada.

—Talvez sim, talvez não… — Sakura-chan sorriu matreira, fazendo um gesto com as mãos que simbolizava dinheiro.

Mas o pai de Yukari balançou a cabeça com ar grave e pouco convencido.

—Yukari não é membro de nenhum clube, então não há razão…

—Exceto o fato de que a garota não tem um tempo livre sequer. — vovó Tsubaki interveio — É o aniversário de sua filha, Daisuke, fale de assuntos alegres ao invés de pressioná-la a cada chance que tem! Já não basta que você sequer a deixe ter vida social? No ano passado nem a deixou…!

—Morcegos! — professor Haruna gritou de repente.

Inicialmente Yukari achou que essa foi a primeira coisa que lhe ocorreu dizer para mudar de assunto e evitar que as discrepâncias das histórias do último aniversário viessem a tona, até que prestou atenção no som de asas batendo, o irmão de Aiha quase derrubou sopa em si mesmo, o irmãozinho de Aoi gritou e fugiu do salão com uma velocidade que daria inveja inclusive a uma raposa e Sakura-chan abaixou-se levando as mãos à cabeça.

Dois morcegos se debatiam no ar parecendo perdidos e desorientados após entrarem no salão pelas portas entreabertas do jardim, e que estavam perfeitamente fechadas até alguns instantes, até irem se acomodar cada um em um canto do salão.

Então esse era o valor de seus mashmallows, Yukari terminou calmamente sua sopa, ainda bem que não havia oferecido bombas de chocolate.

—Eu vou atrás do…

Aoi-chan começou a dizer se levantando, mas Sakura-chan rapidamente a puxou de volta.

—Fique aí onde está! — disse baixinho, ainda com a cabeça abaixada.

Então o pai de Yukari começou a levantar-se.

—Eu vou chamar alguém…

—Tia! — Tio Takumi chamou espantado — O que a senhora está fazendo?!

E lá estava vovó Tsubaki sacudindo seu haori, tentando capturar (ou espantar) o morcego mais próximo.

—Hoje não! — reclamou furiosa — Nada de mau agouro no aniversário da minha neta! Xô! Chiharu me dê essa cadeira!

De alguma forma, a mãe de Yukari já havia arrumado uma cadeira em algum lugar e estava tentando cuidar do outro morcego, afinal onde ele havia arrumado morcegos em pleno inverno? Suspirou levantando-se, pois mesmo com uma cadeira não pareceria que sua avó teria altura para resolver a situação…

—Ah… aquele meu pedido sobre ver a cerejeira… talvez possamos deixar para outra hora?

O professor Haruna perguntou nervosamente, depois dos animais terem sido colocados para fora novamente.

—O senhor será bem vindo à hora que quiser professor. — Chiharu garantiu.

Yukari, no entanto, estava um pouco distraída, pois de alguma forma, assim que as portas do jardim foram fechadas novamente, ela sentiu como se o salão estivesse mais vazio agora, o que não fazia sentido porque o irmão de Aoi-chan já havia sido trazido de volta… ah, percebeu, aquele menino devia ter ido embora agora, então seus mashmallows só valiam uma única ajuda.

Então, basicamente, a partir de agora ela estava por conta própria.

—Shibuya. — Aiha-chan a puxou de lado, assim que o pai e a avó saíram para buscar o bolo — Por que você convidou o Haruna?

—Como “por quê?” eu só…

—Você achou que ele viria com o professor?

—Claro que não.

Franziu o cenho, embora não pudesse negar que aquele cretino era sim, em parte, razão do por que havia convidado o professor… alguém havia chegado?

Virou-se, mas seu pai e sua avó ainda não haviam voltado, seria o garotinho, não, ela levou a mão ao peito, aquela sensação era diferente…

—Shibuya? — Aiha-chan voltou a chamá-la.

—Yuki? — Kaoru chamou diante dela.

—Ah, sim? — ela virou-se.

—É outro morcego? — perguntou baixinho, com os olhos arregalados.

—Nada disso. — respondeu a tranquilizando, e então se virando para Aiha-chan, completou, para que “apenas” ela ouvisse: — Eu não o chamei aqui, não esperava que ele viesse e nem quero que ele venha!

Aquela sensação não desapareceu… mas seu pai e avó retornaram com o bolo.

—Eu vou apagar as luzes para cantarmos os parabéns! — Chiharu anunciou.

—Espere, temos que acender as velas, primeiro! — Daisuke protestou.

—Onde estão os fósforos? — Tsubaki perguntou.

Foi um jantar divertido, apesar de tudo e, felizmente, sem mais nenhum “infortúnio” ou menções ao ano passado também… mas desde que começou aquela sensação, ela não se foi mais.

Yukari sentou-se com um suspiro cansado em sua cama.

—Por quanto mais tempo pretende ficar oculto?

E assim, com um simples piscar de olhos, Gintsune estava diante dela.

Ele parecia ter tido bons tempos se infiltrando entre os humanos, pois tudo o que vestia, desde as calças escuras, ao casaco térmico azul escuro com um pequeno bordado de uma raposa prateada no peito, assim como as luvas de couro preto e o cachecol combinando com o gorro azul aço, pareciam novos e caros — não que ela entendesse muito a esse respeito.

E vendo-o ali, parado no canto do quarto, olhando para os próprios sapatos — ele entrou de sapatos no quarto dela?! — com as mãos escondidas nas costas, pareceu-lhe acuado como um garotinho, mesmo que não estivesse usando uma forma infantil, e isso só a fez se sentir ainda mais impaciente.

O que ele queria? Que ela se sentisse culpada ou tivesse pena dele?! Yukari franziu o cenho e cruzou os braços.

—Como sabia que eu estava aqui? — perguntou ainda sem coragem de encará-la.

—Eu apenas sabia.

Respondeu fazendo-o se encolher com seu tom seco, talvez Gintsune tivesse se enganado afinal, e ela não o tivesse perdoado ainda nem se acalmado um pouco mais.

Por isso que inicialmente ele planejava apenas deixar o presente e ir-se, antes que ela sequer percebesse que ele estivera ali, mas porque ela tivera que percebê-lo?!

—Há quanto tempo sabe?

—Muito. — Gintsune evitou engolir em seco, talvez ele ainda pudesse simplesmente deixar o presente sobre a mesa e… — Sente-se. Temos que conversar.

Sua expressão, no entanto, não dava nenhuma indicação de que ela realmente o queria por perto, mas ainda assim Gintsune quis arriscar-se e sentou-se ao lado dela na cama, ao invés de na cadeira da escrivaninha.

Se Yukari notou o presente, não deu nenhuma indicação disso também.

—Feliz aniversário. — começou por dizer — Eu lhe trouxe um presente. — mas não recebeu resposta alguma, embora tivesse sido ela própria quem primeiro dissera que eles precisavam conversar… ah… certo. — Eu sei que te devo um pedido de desculpas.

Acabou por render-se, indo direto ao ponto, sem amenidades ou preâmbulos e, finalmente, obteve uma resposta quando Yukari o olhou pelo canto dos olhos.

—E é por isso que me trouxe um presente? — perguntou rispidamente.

—Eu sinto que se eu dissesse “sim”, você só me escorraçaria daqui sem ouvir nem uma palavra do que tenho a dizer, mas também se dissesse que isso “nem se passou pela minha cabeça”, eu não estaria sendo completamente sincero com você. — reconheceu.

—Então qual a verdade? — ela inquiriu calmamente.

—Eu queria muito que você aceitasse meu presente e aí ficasse tão feliz que se esquecesse de todo o resto e pudéssemos voltar a ser exatamente como antes, na verdade, até fantasiei com isso algumas vezes. — admitiu — Mas também sei que, se algo assim acontecesse então você, provavelmente, estaria possuída por alguma coisa ou alguma coisa teria tomado seu lugar.

Yukari girou os olhos.

—E então?

—Na verdade o presente foi a melhor desculpa que consegui arranjar para vir vê-la. — confessou.

Houve um momento de silêncio, após o qual Yukari suspirou aborrecida.

—Não vou perguntar por onde você esteve, porque assisti alguns noticiários e definitivamente prefiro não saber detalhes. — declarou.

Gintsune tinha um vidrinho com grãos de areia em forma de estrela guardado no bolso do casaco, mas achou melhor deixá-lo para outra ocasião.

Ele pigarreou.

—Isso é para você. — fez a oferta de paz sem saber mais como agir, acrescentando rapidamente diante do olhar julgador dela: — Não é nada roubado dessa vez! E também o paguei por meios legítimos usando o meu próprio dinheiro conquistado de forma legal!

—Mas do que você está falando…?

Finalmente, mesmo ainda estando desconfiada, Yukari pegou a sacola de papel de suas mãos, franzindo o cenho para a logomarca de grife impressa ali — Gintsune não entendia o que dizia, porque estava escrito naquelas letras estrangeiras estranhas, mas Arisu havia garantido que era bom — e então, com as pontas dos dedos, abrindo-a tão cuidadosamente que até parecia estar esperando encontrar um exame de abelhas.

A primeira coisa que puxou de lá foram seus contracheques.

—O que é isso…?

—Eu conheci uma mulher muito interessante em Tóquio, chamada Arisu, que gostou do meu rosto e fez-me uma proposta. — contou-lhe.

—Fascinante. — Yukari comentou friamente — Você sempre encontra pessoas interessantes aonde quer que vá afinal.

Gintsune encolheu-se brevemente, é claro que ela estava ferida, e tinha razão em está-lo.

—Sempre que incomodo verdadeiramente alguém que é importante para mim, eu tento dar um tempo para que se acalme e depois me desculpar com algum tipo de presente… mas nesse caso tudo se tornou mais complicado: em primeiro lugar, eu nunca havia magoado um amigo dessa forma e, em segundo lugar… havia uma grande probabilidade de que qualquer presente meu só pioraria as coisas, por causa desse seu “senso moralista humano”. — Yukari girou os olhos com a escolha de palavras dele — Então conheci a Arisu, e ela fez-me uma proposta interessante, oferecendo-me algo que nunca achei que precisaria. — Gintsune deu duas batidinhas com o indicador nos contracheques que Yukari ainda segurava antes de continuar: — Uma forma honesta de ganhar dinheiro.

—O que? — ela piscou surpresa.

—Ela gostou do meu rosto e ficou impressionada com minha alta tolerância a álcool, por isso ofereceu-me uma quantia generosa de dinheiro apenas para conversar e beber com mulheres dispostas a pagar por isso. — revelou.

—I-isso é trabalho de anfitrião! — exclamou surpreendida.

—De fato, embora na maioria das vezes ela se refira a nós simplesmente como “os seus rapazes”. — ele concordou, fazendo Yukari corar — Foi divertido no começo, admito, mas as únicas razões para eu ter ficado lá por tanto tempo foi porque o “País das Maravilhas” me forneceu uma forma de dispersar minha mente sem precisar explodir destilarias e beber até perder a consciência todos os dias para não ceder ao constante impulso de voltar até aqui. — Yukari fechou os olhos, ela disse que não queria saber — E ao mesmo tempo me dava um objetivo a ser cumprido antes de poder retornar e me deu tempo de pensar bastante no que faria então.

Ele calou-se enquanto esperava, impacientemente, Yukari guardar novamente os contracheques e pegar o estojo de joia gravado com a mesma logomarca refinada da sacola e abri-lo.

Ali dentro estava um delicado relógio feminino de pulso com uma pulseira metálica e de cor rosa pálido, contendo apenas alguns pequenos detalhes dourados, tais como os ponteiros e o anel de ouro em torno do visor onde os números se alternavam entre algarismos e minúsculas pedrinhas brilhantes, pouco acima da posição do número 6 havia um diminuto mostrador com a data.

Ele era muito bonito e, a julgar pela logomarca na caixa e na sacola, também devia ser consideravelmente caro.

Mas quando Yukari permaneceu calada e inexpressiva, Gintsune pigarreou.

—Achei que algo mais discreto e prático seria o ideal. — comentou.

—Então me dar um presente foi a sua conclusão.

Afirmou rispidamente, demonstrando uma reação completamente oposta aquela com a qual Gintsune fantasiara.

—Não que eu ache que isso vá resolver tudo! — apressou-se a dizer, erguendo as mãos. Fez-se uma pausa. — Ou resolve?

—Não. — Yukari fechou o estojo com um baque seco.

Gintsune engoliu em seco.

—Ouça… eu sei que sou um bêbado, libertino, inútil e tudo o mais que você me disse naquela noite, também sei que fui um canalha insensível com você e peço, sinceramente, perdão.

Era isso? Um simples pedido de perdão e estava tudo bem? Yukari franziu o cenho.

—Você me magoou mais do que eu imaginava naquela noite. — pontuou — Consegue entender isso?

Gintsune assentiu pesaroso.

—Sei que meus atos foram injustificáveis. — admitiu — Mas vou tentar mesmo assim: naquela noite, sei que se sentiu humilhada, mas eu não estava rindo de você, eu… — fez uma pausa, umedecendo os lábios em busca da melhor forma de se expressar: — Ri de incredulidade.

Mas o olhar fulminante de Yukari deixou claro, no mesmo instante, que, de qualquer forma, fizera uma escolha infeliz de palavras.

—Ficou tão incrédulo com a sugestão que teve um ataque de riso histérico, mas nada pessoal certo? — vociferou — Essa é a sua ideia de um pedido de desculpas?!

Gintsune nem piscou com a bofetada. Mereceu-a. Mas ainda não havia terminado de falar.

—Não foi a ideia de ter um envolvimento contigo que me abismou. — explicou calmamente enquanto Yukari encolhia-se de dor sob si mesma, segurando a mão com a qual o estapeara — E sim o quanto me senti atraído e tentado por ela.

De repente, Yukari deu um pulo onde estava.

—O que?! — assustou-se.

Gintsune puxou-lhe a mão com a qual ela o estapeara, fazendo-a esticar os dedos e virar a palma para cima e, deixando-a completamente mortificada, beijou-lhe a palma avermelhada.

Não era sua intenção que ela se machucasse de forma alguma… talvez ele devesse ter lhe dado um soco inglês ao invés de um inofensivo relógio de pulso.

—Eu sei que sou um canalha e não me envergonho disso, mas até eu tenho meus limites… você é minha amiga e eu jamais ousaria pensar em seduzi-la, ou beijá-la… — o coração de Yukari deu um salto e precipitou-se numa corrida desenfreada, mas ela permaneceu quieta, se estava paralisada ou tentando manter a calma enquanto esperava que ele continuasse, Gintsune não sabia dizer — Ou lambê-la e mordê-la em locais “indevidos” — no mesmo instante Yukari puxou a mão de volta, com os olhos arregalados, e Gintsune riu roucamente — Ou, pelo menos, não deveria ousar, mas a verdade é que sim, penso, fantasio e até sonho com tudo isso e muitas outras coisas, que deixariam essas suas trancinhas em pé. — ainda em silêncio e com os olhos arregalados, Yukari afastou-se uns 30 centímetros dele — E foi a constatação de tudo isso que me deixou em perplexidade, mas a magoei, e lamento por isso.

Quando ele terminou, Yukari deixou-se ficar em silêncio por alguns longos minutos, até que seu ritmo cardíaco fosse, aos poucos, se normalizando, e ela conseguisse absorver tudo o que fora dito.

—Pensar naquela noite ainda me magoa, mas eu entendo o seu ponto agora, e te perdoo.

Gintsune sentiu um alivio tão palpável se espalhar por todo seu corpo que se deixou cair para trás com um grande suspiro, deitando-se de barriga para cima com os braços abertos, mas Yukari ainda não havia terminado de falar:

—E embora possa ser loucura falar disso depois de tudo o que ouvi. — ela estava começando a corar — A verdade é que também tirei esse tempo para refletir sobre aquela noite.

Claro que sim, foi por isso que pedira um tempo um a ele!

Gintsune só não sabia se realmente devia estar aliviado por ela ter levado todo aquele tempo refletindo sobre o assunto ao invés de ocupar-se tentando encontrar uma maneira de esquecer-se dele, e estava hesitante quando perguntou:

—E… você chegou a alguma conclusão?

Yukari anuiu, fazendo-o engolir em seco.

Mas que m…!

—As meninas me ajudaram um pouco também. — ela admitiu.

E, a depender das palavras seguintes dela, Gintsune decidiria se amava ou detestava aquelas amigas.

—Qual foi a conclusão? — perguntou de uma vez, enquanto encarava o teto.

E igualmente sem preâmbulos, Yukari respondeu com um único golpe:

—Gosto de você.

A mente de Gintsune ficou em branco por um instante e ele pôde ouvir um persistente e irritante zumbido crescendo em seus ouvidos.

—Fico aliviado que ainda não me odeie depois de tudo. — conseguiu dizer, parabenizando-se internamente por ter soado tão natural.

—Eu também estou surpresa. — Yukari falou francamente — Mas o que quero dizer é que gosto de você, romanticamente, falando. — Gintsune fechou os olhos com força, como se houvesse recebido um golpe forte naquele instante, mas Yukari não o viu, pois não tinha coragem de virar-se para ver sua expressão naquele momento, se o fizesse, ela simplesmente perderia toda a coragem que havia reunido até agora para conseguir falar: — Pois é, pensando nisso agora, eu também ri de incredulidade quando me dei conta, então acho que posso entender um pouco mais o seu ponto. — Gintsune sabia que não tinha direito de sentir-se ofendido com isso, mas não pôde evitar olhá-la com uma careta — Eu sei que você me vê como uma amiga, e que sou profundamente desinteressante sob qualquer outro aspecto para você… — ela parou franzindo o cenho — Ou ao menos achei que era, mas reconheço que suas declarações de agora a pouco me deixaram confusa… você já teve esse tipo de pensamentos com alguma outra amiga sua? Porque eu diria que você é um lixo repugnante pior do que imaginava! — reclamou o censurando e, por um momento ela virou-se sem pensar, mas quando os olhos de ambos se encontraram Yukari rapidamente voltou a lhe dar as costas, sentindo o rosto em chamas, e suas palavras tornaram-se mais apressadas e atrapalhadas a partir daí: — Mas acho que eu ficando confusa com o que você diz e faz é apenas parte da rotina; então continuando: Devo ser incrivelmente estúpida para me apaixonar mesmo sabendo o que você é e do que realmente é capaz, mas não ao ponto de achar que serei correspondida então, ao menos por isso, não precisa se sentir culpado ou temeroso de que vá machucar meus sentimentos, e a única razão para eu estar lhe contado tudo, além de eu ser incrivelmente ruim com segredos, é porque considerei que a melhor forma de se livrar de um amor unilateral é ser logo rejeitada, ao invés de guardá-lo para si e deixá-lo fincar raízes. Por isso você pode agora, por favor, rejeitar-me para que sigamos em frente? Ainda há outra coisa que precisamos conversar, e não se preocupe, porque não começarei a chorar…

Ela só reparou que Gintsune havia voltado a se colocar sentado ao seu lado quando ele a interrompeu, chamando-a calmamente:

—Yukari.

A mão dele tocou a lateral de seu rosto e virou-o para si, inclinando-se e cobrindo os lábios dela com os seus.

A caixa com o relógio caiu de suas mãos e rolou no chão.

Não, Yukari esteve se enganando o tempo todo, ela nunca soube realmente do que Gintsune era capaz.


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Notas finais do capítulo

Acho que depois desse final não somos apenas eu e Haruna que precisamos de um remedinho... =^.^=

Curiosidades do Japão:

Anfitriões e “Host Clubs”: Os Hosts Clubs são bares cuja finalidade é arrancar o máximo possível de dinheiro de suas clientes, usando para isso, os atendentes (anfitriões), que são escolhidos a dedo, não só pela beleza, mas também pelo carisma e bom papo. E, claro, além de ter que ser bom de copo, porque vai ter que beber a noite toda junto com as clientes da casa. Oficialmente os anfitriões não são gigolôs e, dentro do estabelecimento, há regras sobre o grau de intimidade e liberdades que podem ter com suas clientes, mas nada os impede de, fora das dependências do local de trabalho, se envolver com as clientes, cobrando ou não por isso.



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