A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 37
36: O que pressentem os agouros.


Notas iniciais do capítulo

Primeiro capítulo do ano!!!
E minha amada criança chegou aos 100 comentários!!! ♥


GLOSSÁRIO:

Pocky: É um tradicional biscoito japonês, o qual consiste em um palito doce coberto com chocolate ou cobertura de morango.

Tayaki: É um bolo japonês em formato de peixe. O recheio mais comum é o de pasta de feijão vermelho, que é feito com feijões azuki adocicados. Outros recheios comuns são os de creme, chocolate e queijo.



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Raposas eram criaturas astutas e travessas, mas muito, muito problemáticas, às vezes!

Mayu suspirou longamente.

Após impedir o seu rapto na noite passada, a intenção de Ryosuke fora devolver Mayu ao quarto antes que Satoshi — que permanecia adormecido, bem como todo o resto da cidade, graças ao encantamento de Furin —, acordasse e desse por sua falta, mas justo quando eles estavam chegando, seu marido repentinamente abriu a porta do quarto, olhando a volta parecendo bastante sobre saltado e viu-os ali, Mayu estando usando o casaco de Ryosuke-sama, e por baixo somente seus trajes de dormir e ainda semitransparentes pela chuva.

Parece que quando não conseguira levá-la, Furin decidira que seria bem merecido aplicar-lhe uma última peça, então restou a Mayu explicar a história toda por repetidas vezes ao marido, até que a aurora já estivesse quase rompendo… e justo quando Satoshi havia apenas começado a se acalmar com a presença de Ryosuke-sama…

Então quando seus filhos chegaram, ela pediu aos mais velhos que transmitissem seu mais sincero pedido de desculpas ao professor, pois não poderia comparecer ao treino hoje, arrumou-se com a ajuda de Oma e Haru, atou Akio ás costas e saiu.

—Já está na hora de partirmos! — Satoshi decidiu de repente.

É claro que ele não a deixaria sair sozinha.

—E para onde iremos? — perguntou calmamente.

Estavam os dois caminhando de mãos dadas com os dedos entrelaçados, enquanto uma faixa de tecido mantinha seus pulsos interligados — não que isso houvesse sido de grande ajuda na última vez.

—Conquistarei um território próprio para nós, algum lugar pequeno e tranquilo. — ele declarou. — Já sabemos o que aconteceu com aquele cretino, e os pais dele não descansarão enquanto não o trouxerem de volta, então não há mais nada que possamos fazer, mas ele certamente nos encontrará aonde quer que estejamos quando voltar, por isso não há mais razão para ficarmos…

Um galho se quebrou à esquerda deles, mas quando se viraram só puderam ver vários metros de tecido negro perfumado que saltaram de entre as árvores e envolveram Mayu.

—Oh não! Não podem partir assim meus queridos! — Furin lamentou-se abraçando Mayu. — Esse mundo é muito perigoso, especialmente levando consigo uma humana tão rara e preciosa…

—Furin-sama! — Mayu exclamou recuperando o fôlego, quando Furin afastou-se um pouco mais — Nós estávamos procurando pela senhora!

—Oh estavam? — Furin soltou-a, girando para longe com uma risadinha. — Que coincidência, pois eu também queria ver-te, minha querida!

A cabeça negra e felpuda de seu filhote emergiu das sobras de seu decote.

—Sim, é disso que queremos falar. — Satoshi suspirou — Furin-sama, a senhora não pode simplesmente sequestrar minha esposa no meio da madrugada!

Houve mais um movimento à direita deles, e Tamaki surgiu meio oculto por entre as árvores, havia mais sangue seco manchando suas roupas do que o normal e em sua mão direita ele trazia um pedaço verde e escamoso de uma — oh céus! — perna decepada.

—Seqüestrar? Não, não, só pode estar havendo algum engano aqui. — Furin negou alegremente, cobrindo os lábios esverdeados ao soltar mais uma de suas risadinhas — Eu não queria sequestrar ninguém, apenas pegá-la emprestada um pouquinho.

—Emprestada? — Satoshi repetiu, já sentindo uma dor de cabeça começar a latejar por trás de seus olhos.

—Claro, eu a devolveria… em um ou dois dias, talvez. — Furin prometeu, Anko mostrou-lhes a língua e voltou a se esconder por entre as roupas da mãe, enquanto ela continuava a falar-lhes alegremente: — Quando aquele dragão intrometeu-se repentinamente, fiquei tão chateada que Tamaki ofereceu-se para ir ele pessoalmente buscá-la, mas o dragão certamente estaria mais atento agora, e isso seria problemático, mesmo se incendiássemos uma parte do castelo para distraí-o. — Mayu empalideceu, não era à toa que Gintsune crescera tendo todos aqueles péssimos hábitos! — Então eu quis esperar até o amanhecer para lhe mandar uma mensagem por meus criados…

—Furin-sama. — Mayu a chamou. — Havia algo de urgente que queria tratar comigo?

Rindo e batendo palmas, Furin saltou para o ar e dobrou as pernas.

—Oh sim querida, como deve se lembrar eu pedi um pouco de seu sangue emprestado, para usá-lo como ligação com aquele mundo distante, mas depois eu estive muito tempo estudando e experimentando encantamentos, enquanto reunia ingredientes e energia o suficiente, e também estive refletindo, afinal você já está longe daquele mundo há tanto tempo além de que é sustentada pela energia de um tengu… — ela flutuou para mais perto de Mayu, pegando seu rosto entre as mãos — Então tive minhas dúvidas se realmente poderia utilizá-la… — suspirou afastando-se — Mas afinal acabei concluindo que independente do tempo continua sendo essencialmente uma humana frágil, que mesmo que não possa ser morta por venenos ou resfriados ainda morrerá facilmente se tiver seu pescoço quebrado ou braços arrancados, como é nítido em seu cheiro tão saboroso e sua ausência de energia obscura, o que é até surpreendente na verdade, então servirá perfeitamente! — Ela pegou as mãos de Mayu entre as suas olhando-a com expectativa, até que Satoshi separou-as puxando a esposa para si e a abraçando protetoramente, o que pareceu diverti-la: — Não se preocupe, eu nunca machucaria uma humana, especialmente não uma tão valiosa ao meu querido filhote… pelo menos não gravemente.

Aquilo não os tranquilizou nenhum pouco, Satoshi abraçou Mayu um pouco mais firmemente.

—Humanos podem ser frágeis como folhas secas!

—Eu sei disso, é claro, só quero um pouquinho de sangue…

Mayu agarrou-se as roupas de Satoshi.

—Um pouquinho quanto?!

Por entre as árvores, Tamaki agarrou com ambas as mãos a perna decepada que segurava, partiu-a ao meio como se não fosse mais resistente do que um graveto, e começou a comê-la.

—Furin sabe o que faz. — declarou.

A cabeça de Anko reapareceu no decote da mãe, e mesmo em sua forma animal, parecei-lhes que o pequeno filhote estava sorrindo-lhes zombeteiramente.

—Sim, e não podia ser em melhor hora, pois eu estava avaliando os sinais e parece-me que os agouros são de boa sorte! — afirmou a raposa feiticeira.

Foi quando de uma só vez todos foram capazes de pressentir uma avassaladora aura de violência e sede de sangue, que os atingiu e passou por eles como uma onda, fazendo os joelhos de Mayu fraquejarem e seus olhos se arregalarem enquanto ela instintivamente encolhia-se ainda mais nos braços do marido e levava uma das mãos ao punhal escondido entre suas roupas.

Somente Akio jogou seus bracinhos para o alto gritando extasiado, e Tamaki observou aquela reação mostrando os dentes pontiagudos e ensanguentados em um sorriso assustador.

—O que é isso? — Satoshi assustou-se ao mesmo tempo em que um espasmo passava por seu braço, como se ele estivesse prestes a sacar a espada.

Unindo as mãos nas costas, Furin inclinou a cabeça de lado enquanto sorria de olhos fechados e limitava-se a responder simplesmente:

—Agouros de boa sorte!

*.*.*.*

Foi uma agradável surpresa para Gintsune quando sua querida irmã expressou-lhe a vontade de permanecer por mais algum tempo em Higanbana… embora provavelmente nem tanto para Yukari, pois passada a emoção de reencontrá-lo, ela parecia ter se lembrado de que na verdade estava furiosa com ele e sua destruição.

—Yukari você não acha que já está na hora de superar isso? — um fofo e infantil Gintsune perguntou caminhando ao seu lado enquanto comia taiyakis — Você não é um youkai para guardar tanto rancor assim!

Yukari mexeu incomodada no segundo botão do cardigã de lã listrado com cores pastéis que usava por cima da blusa de inverno do uniforme escolar, parecia que o frio resolvera começar um pouco mais cedo naquele ano.

Vendo-o daquela forma, tão pequeno e aparentemente inofensivo com seu quimono, seu chapéu de palha trançada e suas getas enquanto comia bolos recheados, era quase fácil demais se esquecer de sua verdadeira natureza, e ele provavelmente fazia isso de propósito, mas Yukari já conhecia bem demais a verdadeira índole que se ocultava por detrás daquele semblante inocente.

—Ah! Eu deveria superar?! — ela olhou-o irritada com tamanha cara de pau, ainda mexendo no botão do cardigã. — E o que me diz de Kaoru e sua família?!

—O que é que tem? — havia um pouco de chocolate escorrendo do canto da boca de Gintsune.

Yukari parou e colocou-se ereta, a tensão acumulando-se nela era quase tão palpável que Gintsune precisou olhar duas vezes para garantir que ela não estava atraindo ou criando mais alguns daquela escória novamente.

—O dinheiro do seguro não foi o suficiente para cobrir os danos e eles ainda não conseguiram reabrir a loja! — ela limpou o chocolate com a ponta do polegar, talvez um pouco bruscamente. — O tio já tentou conseguir empréstimos por duas vezes em bancos, mas foi rejeitado! Como acha que eles poderão superar isso?!

Assim como já esperava Gintsune sorriu, sem o menor sentimento de culpa por sua participação em tudo aquilo.

—Tenho certeza que eles darão um jeito! — afirmou despreocupado, oferecendo-lhe um taiyaki — Servida? Você precisa adoçar sua vida!

—Não quero nada! — ela girou os olhos e afastou-se a passos largos, desse jeito acabaria se atrasando para a escola. — Kaoru reconheceu o tecido das roupas que Momiji-san estava usando no dia do festival. — contou-lhe quando Gintsune alcançou-a novamente — Ela não se lembra de ter visto nenhum dos dois da loja, e obviamente Kaoru se lembraria de você ou uma mulher jovem e de cabelos prateados na loja, mas acha que estiveram lá enquanto ela estava na escola… e eu tive que olhar nos olhos dela e confirmar!

—Não havia o que fazer… — ele começou a dizer, evitando o olhar dela enquanto comia seus taiyakis — A minha querida irmã…

—Eu já sei! — Yukari interrompeu-o soltando o ar pela boca com força — Você “fez o que tinha que fazer pela sua amada irmã” e, embora eu esteja agradecida que tenha parado agora, você também precisa entender o meu incômodo totalmente justificável, por eu estar me sentindo absolutamente desleal vendo minha amiga destroçada e agindo como se não soubesse de nada a respeito, ignorando e quebrando meus princípios por razões que sequer consigo explicar, assim como também não consigo dizer por que continuo querendo-o por perto, mas o quero.

Ela seguiu sozinha enquanto Gintsune ficava para trás pensativo comendo seus bolos recheados.

Na verdade, o que ela dizia tinha até certo sentido.

Seus pais sempre lhe ensinaram que poderia e deveria tomar para si tudo aquilo que desejasse, mas o velho também sempre fora muito enfático ao ressaltar que, o que quer que ele tomasse, deveria estar preparado para lidar com o que quer que viesse a resultar disso.

Assim como os incautos que entravam nas florestas descuidadamente ou exterminadores à caça deveriam estar preparados para serem devorados — ou para lutarem e tentarem escapar — seu velho também deveria estar preparado para encarar aqueles que por ventura viessem buscar vingança por seus companheiros devorados…

Yukari não o havia afastado, mesmo que tivesse que lidar com seus próprios dilemas morais por isso.

Gintsune havia dito que sempre faria o que era melhor para ele independente das consequências, mesmo que as consequências incluíssem o humor perpetuamente taciturno de Yukari… Tá bom, até parece!

Girando os olhos, Gintsune amassou o saco de papel vazio e deu meia volta, sem nem se dar conta de que era observado de longe.

Momiji nunca entenderia porque seu precioso príncipe e a mãe deles pareciam gostar tanto daqueles reles humanos, mesmo que fossem os favoritos dos deuses eles ainda eram sujos, selvagens e fracos, em suma: uma raça inferior e patética.

Torcendo levemente o nariz com desgosto, a raposa colocou-se de pé sobre o poste onde estivera sentada até então, erguendo a mão para cobrir a boca e o nariz com a ponta da manga.

Embora fossem realmente impressionantes como eles eram capazes de transformar e destruir o ambiente ao seu redor em tão pouco tempo.

E por isso To-chan dissera que estar em Higanbana era mais confortável, pois ali a população humana era drasticamente menor e havia ainda uma significativa parte de sua natureza original preservada, em comparação a outros centros urbanos humanos… ele falava constantemente sobre Higanbana, parecia ter gostado bastante da cidade, sim, é claro, da cidade.

Mas obviamente Higanbana não era o único dos assuntos recorrentes de seu querido irmãozinho, afinal ele sempre achara os humanos muito divertidos… então, certo dia, ele simplesmente lhe sugerira que voltassem a Higanbana, pois queria falar com o homem contador de histórias para tentar saber que outras lendas poderiam estar relacionadas à Momiji, e só isso… mas é claro que seu precioso To-chan era o mais adorável de todos os mentirosos.

É claro que um ou outro humano poderia até se sobressair… mas aquela garota certamente não era um deles.

Na verdade nunca havia visto humana mais sem graça!

Enquanto Momiji passava seus dias no jardim da pousada, lendo e bebendo chá, To-chan saía para divertir-se na cidade, mas sempre retornava pouco antes do anoitecer e contava à irmã cada uma de suas peripécias e aventuras do dia: os lugares que visitara e as fascinantes máquinas de lavar e cadeiras de massagem, as pessoas que enganara ou seduzira — às vezes ambos — e aquela garota.

Seu irmãozinho era volúvel, seus passatempos estavam sempre mudando, porque ele perdia rapidamente o interesse, mas aquela garota entediante era uma constante.

Segundo To-chan, ela passava a maior parte do dia naquele prédio chamado escola, período durante o qual To-chan aproveitava para brincar na cidade, mas quando ela saía ele imediatamente se colocava ao seu lado para, segundo suas próprias palavras, “incomodá-la e irritá-la”.

Só que aquela humana obviamente perdia a paciência com qualquer coisa, então Momiji ainda não conseguia compreender o que a tornava tão interessante aos olhos de seu auspicioso príncipe — e o fato de ele descrevê-la como “entediante” por inúmeras vezes, só a deixava mais confusa — além disso, ele evitava falar-lhe dessa parte, mas Momiji sabia que mesmo quando o irmãozinho retornava para ela durante a noite, às vezes ele ainda deixava uma parte de si mesmo na pousada junto daquela garota, mas não para incomodá-la e sim para ajudá-la com a limpeza!

Como se ambos não houvessem sido criados pelos pais de forma a quase nunca precisarem fazer nada por si mesmos, mas sim a sempre tomar ou fazer com que outros fizessem por eles.

O que estava acontecendo com seu querido To-chan?

Será que ele achava tão fascinante assim uma humana que sabia sobre sua identidade de raposa e ainda assim não o temia?

Momiji encarou o prédio escolar por mais algum tempo.

Hoje havia os seguido desde a pousada, mas por mais que ainda não houvesse conseguido encontrar uma resposta satisfatória para aquele mistério, ela também não estava disposta a se infiltrar naquele antro decadente para descobrir… ainda.

Assim ela deu meia volta e afastou-se, pois havia ainda outro lugar que queria visitar.

De forma que Yukari já não tinha mais raposa alguma a seguindo quando a representante de turma encontrou-a trocando os sapatos.

—Bom dia, Shibuya. — a representante inclinou-se curiosa — Isso aí é uma cartinha de declaração?

—Sim. — Yukari levantou-se com o cenho franzido virando o envelope de um lado para o outro — É para aquela pessoa de novo, felizmente elas estão começando a ficar menos frequentes agora, mas ainda não consigo entender o porquê de continuarem achando que podem me usar como ponte de ligação.

—Cartas são tão antiquadas para uma era de mensagens instantâneas. — a representante comentou criticamente pegando a carta para avaliá-la por si mesma — Mas Ayaka não tinha nem sequer um endereço de e-mail e muito menos um celular, então situações desesperadas pedem medidas desesperas… e esses caras estão realmente desesperados. — suspirou girando os olhos — É como se Ayaka houvesse enfeitiçado a escola inteira! — Yukari franziu ainda mais o cenho, pensando que essa não era uma possibilidade totalmente fora de questão — E, respondendo à sua pergunta, Shibuya: é porque Ayaka estava sempre grudada em você.

Yukari recebeu a carta de volta e guardou-a no bolso da saia, refletindo se aquilo era realmente verdade.

—Você realmente não tem mais nenhum contato com Ayaka? — a representa perguntou-lhe enquanto trocava os próprios sapatos.

—Não. — Yukari engoliu em seco e desviou o olhar.

—Uma pena. — a representante ergueu-se estalando a língua — Eu bem que gostaria de lhe dar uma ou duas palavrinhas: graças ao sumiço do meu trunfo na manga, eu perdi mais de ¥ 700,00 no Dia Esportivo e outros ¥ 2.000,00 no festival escolar, porque aquele miserável do Yonekura conseguiu ficar em primeiro lugar nas atrações do festival, mesmo tendo sido obrigado a fechar as portas mais cedo!

Yukari franziu o cenho sem compreender.

—Representante do que você está…? — começou a perguntar.

Mas foi rapidamente interrompida:

—Se não tem mais contato com Ayaka, o que faz com as cartas?

—Eu as jogo fora. — suspirou dando de ombros.

As duas começaram a andar juntas pelos corredores.

Inicialmente havia tentado devolver as cartas aos seus respectivos remetentes, mas depois de dois mal entendidos — no qual acharam que ela estava ali para se confessar, e mesmo tentando explicar a situação foi ignorada e “rejeitada” — acabou simplesmente desistindo, jogando as cartas fora e colocando um aviso na porta de seu armário de sapatos com os dizeres “Indisponível para envio de mensagens”.

Pelo menos a maioria parecia ter entendido a mensagem, mas é claro que alguns mais teimosos e incômodos ainda persistiam.

—Você sabia que Nishiwake se ausentou da escola durante a semana passada inteira? — a representante contou-lhe de repente.

—Eu não sabia! — Yukari negou surpresa, mas agora parando para pensar, Aoi-chan realmente não havia aparecido em dia algum para almoçar junto com elas, nem Yukari a vira pelos corredores, mesmo que suas salas fossem vizinhas. — Aoi-chan está doente?

Ao seu lado a representante deu de ombros.

—Ela chegou a vir na terça-feira, mas passou o período inteiro na enfermaria, desde então não retornou. — contou — Uma colega de classe levou as atividades para ela no final de semana, mas se ela não tiver vindo hoje também eu vou pessoalmente até a casa dela.

Dizendo isso parou próxima à porta da sala vizinha para espiar ali dentro.

Uma mão tocou o ombro de Yukari por trás.

—Meninas, o que estão fazendo? — Kaoru perguntou-lhes.

—Queremos saber se Aoi-chan veio para a escola, ela não vem à aula já faz uma semana. — Yukari explicou-lhe.

Kaoru piscou.

—Eu… não sabia.

—Não se preocupe com isso Hongo, você tem estado com a cabeça cheia e tem boas razões para isso. — A representante tranquilizou-a, guiando ambas para dentro da sala — E ainda está cedo, então Nishiwake ainda pode chegar.

Mas, assim como durante a semana anterior, Aoi-chan também não apareceu naquele dia, Kaoru, que agora também estava preocupada, se ofereceu para visitar a casa de Aoi-chan junto com a representante, Yukari não podia faltar ao seu turno na pousada, mas como também estava preocupada agora — além de um pouco culpada — e a casa de Aoi-chan ficava no caminho da pousada, ela decidiu que poderia parar para uma visitinha… bem rapidinho.

—Eu nem consegui vê-la quando fui levar as lições. — a colega de classe de Aoi-chan contou-lhes. — Foi o irmãozinho dela que me atendeu, mas…

Finalizou dando de ombros enquanto empurrava a bicicleta, o olhar de Yukari, por algum motivo foi atraído à pulseira de contas pretas e vermelhas intercaladas em seu pulso, talvez porque acessórios fossem proibidos na escola, ou porque conhecia certo alguém que nunca tirava seu bracelete prateado do pulso independente da situação…

—Pois a mim ela vai atender. — a representante determinou convicta, empurrando a própria bicicleta.

—Tudo bem. — a colega de classe de Aoi-chan subiu na própria bicicleta — Se conseguirem falar com ela, perguntem-lhe se ela seguiu meu conselho.

E Yukari não queria estar na pele de Aoi-chan caso ela não quisesse ver a representante.

Mas a possibilidade de uma adolescente rechonchuda, que não ia à escola há mais de uma semana, receber ou não suas amigas em casa não era sequer a mais remota das preocupações de Momiji, embora ela também tivesse, naquele mesmo dia, feito uma espécie de visita.

A casa estava nitidamente abandonada, porém não demonstrava nem de longe um estado tão decadente quanto o que ela esperava, e era obvio que humanos haviam estado lá recentemente — provavelmente outros com interesses similares aos daquele contador de histórias — mas mesmo que a raposa tenha vasculhado a construção de cima a baixo, não encontrou em canto algum o pequeno deusinho que supostamente fora aprisionado lá.

…mas isso não significava que a lenda era necessariamente uma farsa completa.

Pois Momiji ainda era capaz de sentir os resquícios do ódio e do sofrimento como poreja nas paredes, não à toa aquele lugar tornara-se um antro daquela escória — porque apenas as visita ocasionais de alguns humanos não seria o suficiente para atraí-los… pelo menos não tantos deles — e ainda assim havia uma espécie de sensação quase… familiar por debaixo de tudo aquilo, embora ela não conseguisse identificar o porquê.

Momiji deteve-se diante de uma porta aberta e, comprimindo os lábios, agachou-se e estendeu cuidadosamente a mão através do batente, para rapar levemente com uma das garras uma inscrição minúscula e desgastada gravada no chão.

“A solidão da aldeia nas montanhas;

No inverno eu temo;

Parece que quando os amigos se vão;

E as folhas de suas árvores caem;

Todos os homens e plantas estão mortos.”

Mas não sentiu nenhum resquício de poder ali, e se o deusinho realmente estivera naquele cômodo, isso agora era passado.

E se fosse sensato teria ido para bem longe dali e nunca olhado para trás.

Porém, ainda cautelosa, ela não ousou cruzar aquele batente, mas seu olhar atento havia acabado de capturar uma suave diferença em um pedaço do teto que parecia sutilmente mais novo que o restante, quando escutou vozes pela casa:

—… completa ao invés de apenas concertar as partes que desabam ou correm risco. — dizia a primeira voz.

—A prefeitura prefere manter uma atmosfera de casa mal-assombrada aqui, parece ser melhor para o turismo. — respondeu uma segunda voz — Eu me lembro de que alguns anos atrás a prefeitura propôs transformar a casa em um museu, mas isso deixou a população, que gosta de vir aqui para brincar de coisas como caçar fantasmas, insatisfeita.

Era um par de homens, Momiji levantou-se, escutando-os atentamente.

—As pessoas deveriam aprender que é melhor manter-se longe desses lugares: energia ruim só atrai mais energia ruim! — a segunda voz suspirou — Mal chegamos e já me sinto adoecendo… você também consegue sentir?

Monges!

—Sim, por isso é melhor começarmos logo. — afirmou o primeiro — As instruções de Kobayashi-cama…

Silenciosamente Momiji saltou para trás e desmaterializou-se no ar.

Os centros comerciais sempre eram as zonas urbanas favoritas de To-chan, mas embora não o tenha localizado, ela encontrou muitas coisas das quais ele certamente gostaria quando voltasse!

E enquanto cruzava os céus, sorrindo com o embrulho nos braços e pensando na expressão de satisfação que seu adorável irmãozinho faria, Momiji não se deu conta que o dito irmão estava, naquele exato instante, sentado na margem do rio e acabara de avistá-la.

—Que coisa mais inusitada!

Comentou consigo mesmo enquanto desembrulhava seus sanduíches para comer, pois não era do feitio de sua irmã aventurar-se por conta própria na cidade, mas era bom que ela estivesse se sentindo confortável àquele ponto.

Gintsune teria ido atrás dela, mas àquela hora Yukari já havia saído da escola e deveria estar para passar por ali a qualquer momento, e ele queria ver em primeira mão a cara que ela faria quando chegasse a casa e percebesse o quão fantástico era tê-lo por perto!

Sim, pois àquela hora suas pequenas artimanhas certamente já estariam dando frutos… talvez aquele camaradinha até viesse se prostrar diante de seus pés e agradecer-lhe novamente.

Certo, até parece. Gintsune riu consigo mesmo. O mundo inteiro daquele pequeno Zashiki Warashi se resumia exclusivamente à pousada Shibuya e os membros da família, e não era como se Gintsune houvesse salvado a pousada ou coisa assim.

—Yukari nem adianta tentar me evitar. — comentou em tom alto com os olhos fixos no rio que corria diante de si, e fungou — Eu já lhe disse: gosto do seu xampu novo.

Ele ouviu os passos de Yukari se deterem, mas a garota ainda levou quase dois minutos até finalmente falar alguma coisa:

—Eu não estava tentando evitá-lo.

Gintsune olhou-a por cima do ombro, sua expressão estava séria e o cenho franzido como sempre, ele terminou seu último sanduíche.

—O que foi? Não estou dormindo nem fumando em área pública, não me vá dizer que comer é proibido também!

—Não é proibido. — ela negou.

E não disse absolutamente mais nada, nem sequer para adverti-lo para não deixar lixo espalhado quando terminasse.

Suspirando, Gintsune levantou-se passando uma das mãos pelo quimono cor de lavanda, e subiu a curta distância até ela, fingindo não perceber quando ela recuou dois passos para trás.

—Está vendo esse campo de higanbanas? — comentou despreocupadamente, indicando o campo do outro lado da estrada, repleto de flores que já começavam a murchar com a mudança de estação — Foi provavelmente aqui que a lenda da Senhora dos Raios nasceu: a irmã disse-me que aqui era seu local favorito para dançar com os raios… se bem que naquela época o campo tinha, pelo menos, o dobro do tamanho. — e indicou o lado oeste do campo, agora delimitado pela estrada, após a qual uma série de casinhas se agrupava — Ah, e aquele bordo japonês ali? — ele mudou a direção, agora indicando uma árvore já mais próxima da ponte a leste da posição deles, plantada entre o campo de flores e a estrada — Ela estava sentada bem ali quando o irmão daquela garota a encontrou.

Piscando, Yukari moveu a cabeça lentamente de um lado para o outro, como se aquela fosse à primeira vez que contemplava a paisagem.

—Essas lendas nasceram tão perto da minha casa. — comentou.

—Bem é claro que foi perto da sua casa!

De repente Gintsune a surpreendeu, pegando ambas as mãos de Yukari entre as suas.

—Espere não me toq…!

Ela arfou assustada, tentando puxar as mãos de volta, mas ele manteve-as firmemente presas, enquanto continuava a falar sem lhe dar qualquer atenção:

—Afinal, como você mesma sempre diz Yukari: Higanbana é pequena como um ovo. Então difícil seria alguma dessas lendas não ter acontecido perto da sua casa!

E com essas últimas palavras ele desapareceu bem diante de seus olhos… mas deixou nas mãos de Yukari o saco de papel amassado e as embalagens plásticas dos sanduíches que estivera comendo.

Aquele cretino sem vergonha!

Ela não podia jogar lixo na rua, então guardou tudo em sua mochila, para poder descartar e reciclar quando chegasse a casa.

—Eu realmente não entendo o seu condicionamento físico, Yukari! — Gintsune comentou sentado sobre a cerca da colina vendo-a terminar de subir as escadas enquanto terminava uma caixinha de suco — Quer dizer, essa escada tem dezenas de degraus e você a sobe e desce diariamente, além de constantemente ficar correndo de um lado para outro carregando bandejas, limpando quartos e atendendo aos desejos de hóspedes egocêntricos, mas algumas séries de saltos em uma corda te deixam esbaforida?!

—Embora cansativa, já estou habituada a minha rotina de trabalho, mas uma atividade repetida inúmeras vezes e falhando consecutivamente é muito mais exaustiva. — respondeu terminando de subir as escadas — E desça daí, é perigoso sentar na cerca.

—Está preocupada? — Gintsune sorriu de lado. — Você sabe que a queda não me mataria, não é?

Yukari franziu o cenho.

—Estou preocupada com a imagem da pousada.

—Ah… tão sem graça. — ele suspirou levantando-se com a caixa de suco pendurada entre os lábios pelo canudinho.

Yukari já estava começando a supor que ele havia furtado o lanche de algum aluno do ginásio quando um carro subiu a ladeira, e não haveria nada de anormal nisso — afinal, embora o período entre as estações fosse um momento de mais calma, e as coisas só fossem voltar a ficar agitado perto do natal, o inverno ainda era uma época de movimento para os negócios — se ela não houvesse reconhecido aquele carro.

O veículo estacionou a poucos metros dos dois, e um homem corpulento de bochechas rosadas, cabelos castanhos cortados rentes e olhos que pareciam minúsculos por trás das lentes de formato quadrado, desceu dele.

—Tio Takumi! — as sobrancelhas de Yukari se arquearam. — O que faz aqui?

—Tsubaki e sua mãe não te deram nenhuma educação garota? Primeiro deve-se cumprimentar!

Quem a repreendeu foi um velho de cabelos brancos, olhos pequenos e expressão azeda com os cantos da boca bem repuxados para baixo, que ou era o irmão mais velho de Tsubaki ou um clone congelado no tempo do pai dela, e acabava de também descer do carro, pelo lado do carona.

Havia praticamente um enxame daquelas criaturas nojentas pairando sobre sua cabeça e ombros, o homem era um banquete ambulante.

Yukari piscou desconcertada.

—Eu… sinto muito tio-avô Tatsuemon. — ela inclinou-se — Boa tarde, e sejam bem vindos, a que devemos a visi…?

—Pelo visto ninguém também lhe ensinou a não se intrometer em assuntos que não lhe dizem respeito e que deve manter-se calada quando não for solicitada a falar!

Ele a repreendeu com a voz estalando cruel como um chicote, e dando-lhe as costas começou a afastar-se reclamando que “sabia que Daisuke era muito mole com a filha, da mesma forma que Yukito sempre foi mole demais com Tsubaki”, somente o tio de Yukari ficou para trás, passando a mão na nuca desconfortavelmente enquanto sorria sem jeito e inclinava a cabeça no que devia ser um desajeitado pedido de desculpas, antes de afastar-se para seguir o idoso também.

Os olhos de Gintsune se semicerraram, mas ao lado dele Yukari limitou-se a suspirar.

—Uma vez Kaoru me contou que em toda a sua vida não se lembra de já ter ouvido o avô proferir uma única palavra positiva a respeito de qualquer coisa. — contou-lhe — Mas ele tem estado dez vezes pior desde que os problemas na loja começaram.

Gintsune não podia se importar menos com os problemas de um velho amargo, ele brincou com o canudinho de sua caixa de suco agora vazia.

—Há muito tempo houve uma garota que, certa vez, cansou-se da prisão regrada que era a vida dela, então fugiu para viver livre e selvagem, tal como o animal que a irmãs sempre disseram que ela era. — comentou.

—Sim, mas isso não vai acontecer aqui. — Yukari olhou-o de cenho franzido e apontou sua caixa de suco — E não se atreva a deixar isso jogado em qualquer canto quando acabar: recicle!

Gintsune acreditava que alguns humanos eram tão corrosivos e nocivos ao ambiente e às pessoas que as cercavam que mereciam ter tudo tomado deles, mas aquele velho tinha a sorte de ser aparentado a uma garota cuja consciência podia ser muito irritante.

Então enquanto ela se afastava, Gintsune girou os olhos e queimou a caixa e o canudo até que restassem menos do que cinzas, logo depois de abandonar o plano físico e se dirigir ao jardim para visitar a irmã.

Mas chegando lá se deparou com uma cena bastante inesperada: sua querida irmã e o Zashiki Warashi sentados juntos sob a cerejeira dividindo um lanche!

—To-chan. — ela chamou-lhe por detrás da manga — Por que não me avisou que havia alguém vivendo nesse lugar?

Parado sobre a ponte Gintsune sorriu nervosamente, passando a mão pela nuca.

—Hã… eu esqueci? Esse é o Zashiki Warashi da pousada. — afirmou — De tempos em tempos ele se põe a seguir algum membro da família, geralmente o pai de Yukari, que é o favorito dele, mas nunca o vi seguindo a Yukari.

E certamente nunca esperou vê-lo lanchando com sua querida irmã!

Em resposta às suas palavras o pequenino virou a cara com expressão afrontada, e Momiji suspirou.

—Você sabe que é de extrema grosseria simplesmente entrar no território de alguém, sem sequer lhe oferecer uma prenda por isso antes.

E isso explicava os bolinhos de arroz e os doces.

—Eu tentei socializar, até lhe ofereci saquê algumas vezes, mas ele sempre fugia de mim! — tentou justificar-se erguendo as mãos.

E mesmo agora o garotinho olhava-o desconfiado enquanto comia os bolinhos de arroz, parecendo pronto para sair correndo no segundo em que ele ousasse se aproximar mais um centímetro.

—Sim, ele me contou: saquês roubados de suas próprias cozinhas.

—Ele te contou? — as sobrancelhas de Gintsune arquearam-se.

Claro, só podia ser sua encantadora irmã, para cativar inclusive ao arisco e tímido Zashiki Warashi da Pousada e Casa de Banhos Shibuya.

—Mas ainda que eu saiba que suas intenções foram boas meu precioso príncipe… saquê?

Gintsune ergueu as mãos.

—Eu sei que ele tem essa aparência inocente e infantil, mas não se engane: esse camaradinha deve ser tão antigo quando essa pousada ou mais!

Momiji suspirou, servindo mais chá ao pequenino.

—To-chan, você passa tanto tempo entre os humanos que pode ter esquecido, mas o tempo é relativo para nós: alguns são velhos com poucos dias de vida, outros são crianças com séculos de idade. — disse-lhe suavemente, isso era verdade, mas ainda assim… sua irmã voltou-se para o Zashiki Warashi, com um sorriso encantador — Não precisa se aborrecer com meu querido To-chan, ele sempre foi um espírito livre e despreocupado.

O camaradinha acenou concordando e bebeu o chá, mas em nenhum momento seu olhar desconfiado deixou de encarar Gintsune por cima da yunomi e, quando terminou, deixou a peça no chão e inclinou levemente a cabeça, agradecendo, logo antes de levantar-se e voltar correndo para a pousada.

Só então Gintsune ousou aproximar-se e sentar-se junto com a irmã que ainda olhava na direção para a qual o Zashiki Warashi havia saído correndo.

Momiji não havia entendido porque a sensação na “casa assombrada do pequeno deus da boa sorte” havia lhe transmitido aquela leve familiaridade até finalmente retornar para aquela pousada.

Uma sensação familiar, mas completamente diferente.

Era como a água insalubre que fora decantada e depurada novamente.

—Sabe, To-chan, eu acho que nunca vou compreender esse amor que deuses têm por humanos. — comentou pegando um doce decorado e girando-o diante dos olhos, um trabalho cheio de delicadeza — Os humanos são vis, mas mesmo que sejam traídos e corrompidos por eles… parece que eles continuam dedicando suas existências a amá-los.

Gintsune não tinha a menor ideia do que ela estava falando, mas ainda assim limitou-se a sorrir e acenar pegando para si um bolinho de arroz recheado.

—E então, como foi seu passeio na cidade? — perguntou-lhe.

O mau humor do tio-avô Tatsuemon era contagioso: no jantar, vovó Tsubaki exigiu uma dose de saquê após a outra.

—Mamãe, não acha que já passou da conta? — a mãe de Yukari tentou tirar a garrafa de sua mão.

—Ah! E agora você também vai querer dizer-me o que fazer Chiharu como Tatsuemon?! — vovó Shibuya reagiu na mesma hora. — A ousadia daquele velho de fraudas! Mandar-me ir pegar chá e ficar fora do assunto dos homens em minha própria casa! Eu deveria ter quebrado aquela bandeja na cabeça dele, e não simplesmente cuspido no chá!

—A senhora cuspiu no chá?! — Yukari perguntou horrorizada.

—Devia ter cuspido mais vezes! — vovó virou a taça e exigiu mais uma dose de saquê… que ela mesma serviu.

E ela no final havia ficado no escritório durante as quase duas horas inteiras que durara, seja lá qual fosse, o assunto que o tio-avô Tatsuemon tinha a tratar com o pai de Yukari… mas vendo seu estado agora, depois de tanto tempo na companhia do irmão, talvez realmente fosse melhor se ela tivesse saído.

—Mamãe, por favor! — Chiharu suplicou após mais uma tentativa fracassada de tirar a garrafa das mãos da idosa — Daisuke, sobre o que você e seu tio falaram?

—Chiharu tire essas porcarias de cenouras do meu prato! — vovó reclamou aos gritos.

E ela só havia acabado com a primeira garrafa.

—Eu propus investir na loja de quimonos dele, assim pagando pelos concertos e me tornando sócio, estávamos discutindo os termos. — ele respondeu calmamente… até ser atingido no olhou por um pedaço de cenoura fatiada.

Mas foi só após três garrafas e meia que os três finalmente convenceram vovó Tsubaki que já era hora dela ir se deitar e Daisuke conseguiu carregá-la para o andar de cima, enquanto a idosa o chamava de Yukito e proclama ser uma senhora respeitável, viúva e dona de seu próprio nariz.

Um assovio admirado soou às costas de Yukari.

—Parece que perdi uma bela festa por aqui. — Gintsune comentou entrando na cozinha.

Yukari virou-se espantada e com os olhos arregalados.

—Gintsune! — chiou por entre os dentes — Você não pode aparecer assim do nada aqui, papai e vovó então lá em cima e ele pode descer a qualquer instante!

Sua mãe havia ido para a pousada, adiantar os serviços noturnos, enquanto Yukari ficara para limpar a cozinha.

—Consigo sentir o bafo de bebida de Tsubaki daqui, e seu pai vai demorar algum tempo até consegui trocar as roupas delas. — a raposa deu de ombros com as mãos enfiadas nas mangas. — E a porta da varanda está aberta.

—Você é a última criatura no mundo que quero ouvir julgar a embriaguez da vovó! — reclamou recolhendo as garrafas vazias.

Mas Gintsune acabou pegando a última garrafa, que ainda continha saquê, antes dela.

—Não estou julgando, eu sempre disse que Tsubaki é uma mulher interessante. — ele sentou-se na mesa avaliando o conteúdo da garrafa antes de beber um gole — Eu mesmo fico bem mais divertido quando estou bêbado, devia experimentar também Yukari.

Estendeu-lhe a garrafa, sorrindo com agradável surpresa quando ela aceitou, mas logo se decepcionando ao vê-la tampando a garrafa e guardando-a.

—Você nem está aqui de verdade. — Yukari girou os olhos e fechou a geladeira. — Mas tem algo que eu quero te per… ah! — Exclamou surpreendida quando foi puxada para trás, corando ao perceber as pernas de Gintsune em volta de seus quadris — O que está fazendo? Largue-me! Ficou maluco?!

Ela socou suas panturrilhas e ele a soltou.

—Eu só queria o saquê de volta. — ele respondeu despreocupado — E se não quer que seu pai encontre-me aqui sugiro que não volte a erguer a voz.

—Seu…! — virou-se com a mão no peito, ainda tentando recuperar-se — Atrevido! Nunca mais faça isso!

Suspirando entediado, Gintsune jogou a cabeça para trás.

—Por que não? Minha irmã diz que sou muito fofo.

—Sua irmã te ensina péssimos hábitos!

—Ia me perguntar alguma coisa?

—Ah… ah sim. — ela franziu o cenho. — Você teve alguma coisa haver com isso? — embora não fosse isso que ela quisesse perguntar inicialmente — Papai veio de repente com essa história de investir na loja de quimonos…

—Investir?! — Gintsune gargalhou tão abruptamente que, por um instante, Yukari teve certeza que ele não tivera nada haver e sentiu-se tola por acreditar que ele faria algo em prol do próximo, até ele completar: — Eu coloquei na cabeça dele a ideia de emprestar o dinheiro simplesmente! Como ele transformou isso em um investimento?

Yukari deu de ombros, cruzando os braços e contendo um sorriso.

—Para papai tudo são negócios.

—Sim, imagino que por isso aquele camaradinha goste tanto dele. — Gintsune balançou a cabeça — Agora estou imaginando se agora que os negócios de seu pai se estendem à loja de quimonos, isso se estende também à proteção dele… mas de qualquer forma, Kaoru e a família ficarão bem agora, então você já pode parar de se remoer.

—Sim… — Yukari franziu — Por um lado acho que me sinto tentada a te agradecer.

—Mas por outro…? — Gintsune incentivou-a abrindo os braços, como um convite.

—Por outro lado foi tudo culpa sua. — ela cruzou os braços.

Gintsune limitou-se a achar graça daquilo.

—Mas por outro lado eu te trouxe pocky.

Ele provocou-a puxando a caixa da manga e oferecendo-lhe, que Yukari acabou aceitando com um suspiro.

—Gintsune… você ouviu algo sobre a reinauguração da estátua da raposa? — perguntou cuidadosamente, enquanto abria a caixa.

—As pessoas falam muito sobre raposas na cidade. — ele respondeu vagamente, pegando um palitinho para si.

Também pegando um palitinho, Yukari pensou cuidadosamente sobre como falaria daquilo enquanto o comia.

—A estátua de raposa que você destruiu…

—Onde minha irmã estava selada.

—Essa. — assentiu. — Eles vão reinaugurá-la na praça da raposa no próximo final de semana, haverá uma grande cerimônia e o monge chefe do templo de Inari irá abençoá-la também e ouvi dizer que chamarão um monge de Kyoto também… tudo para purificar a cidade e afastar a maldição da raposa que caiu sobre nós.

Ela parou e olhou-o atentamente, mas apoiando um tornozelo sobre a perna e um cotovelo sobre o joelho dobrado, o olhar de Gintsune tornou-se distante e pensativo enquanto ele comia mais um pocky e refletia sobre o que ouvira.

—Isso é tolice. — disse por fim. — Se não pretendem exterminar ou mesmo lacrar a raposa novamente… qualquer ato que tentem será inevitavelmente falho e efêmero, mesmo que tentem purificar a cidade, os próprios humanos, com sua maldade, ganância e tormentos irá conspurcá-la rapidamente novamente. — balançou a cabeça — Esses monges teriam que purificá-la diariamente, no mínimo, e talvez nem assim fosse efetivo.

—Mas não é perigoso para você?

—Que fofa a sua preocupação Yukari. — ele sorriu-lhe — Mas falando francamente isso se parece mais com uma tentativa de acalmar a população e atrair turistas, mesmo porque o natal está chegando, e essa é uma importante data comercial.

Ou então aquelas falas despreocupadas é que era uma tentativa de acalmá-la.

Yukari ainda não estava completamente segura, mas também não queria dizer-lhe que era melhor ir embora e correr o risco de fazê-lo ficar todo ofendido novamente, de qualquer forma ela sabia que Gintsune nunca correria o risco de colocar a si mesmo, ou principalmente à preciosa irmã, em perigo real.

—Data comercial, claro, mas depois de todos os estragos causados, esse provavelmente será o natal com maior déficit econômico da década! — ela puxou mais um pocky da caixa e começou a comê-lo quase de forma a descontar sua frustração no pobre palitinho.

—O que é mais uma ótima razão para eles recorrerem a todos os meios possíveis que possam para tranquilizar a população e atrair os turistas novamente! — Gintsune argumentou — E não precisa exagerar! Está bem que menos de um décimo do que destruí já foi recuperado, mas você precisa admitir que o que causei não foi equivalente nem a metade dos danos sofridos em um Ano do Binbougami.

Concluiu dando de ombros.

Era desconcertante como ele tinha real noção de todos os danos que causava e não se importava nem um pouco.

—Entendo. — ela suspirou, sem querer mais discutir sobre aquilo — Mas tem mais uma coisa.

—O sim? — ele sorriu-lhe de lado. — Diga-me, o que mais a preocupa cara Yukari?

Preferindo ignorar a zombaria, Yukari respirou fundo e começou a falar:

—Eu fui visitar Aoi-chan hoje.

—Ah é?

—Ela tem tido insônia e quando dorme tem pesadelos, por isso não tem estado muito bem.

—Ah sim… sonhos podem ser bem traiçoeiros. — ele comentou vagamente, com o palitinho pendurado entre os lábios como um cigarro.

Yukari franziu o cenho.

—Você também está tendo pesadelos?

Ele a olhou de canto por um instante, mas desviou o olhar.

—Eu não chamaria de pesadelo, foi só… um sonho sem sentido nem significado algum. — o doce se quebrou entre seus dentes, e caiu no chão — Que talvez me volte à mente em momentos inadequados. — Yukari franziu o cenho, ela definitivamente não queria saber o que aquela raposa considerava um momento inadequado, então ele pigarreou e retornou ao seu costumeiro tom alegre e despreocupado: — Você estava falando sobre Aoi-chan, não e? Não pode estar querendo agora que eu resolva todos os problemas das suas amigas, não é Yukai? — riu — Afinal eu não sou nenhum guardião, sabia? E posso te garantir que não tenho nada haver com o caso de Aoi-chan!

Afirmou levantando-se com um pulo e erguendo as mãos, como se para demonstrar inocência.

—Não, tudo bem. — ela abaixou-se para pegar o palitinho caído, colocou-o dentro da caixa já vazia e amassou-a.

—Isso é tudo que queria perguntar-me? — ainda agachada no chão Yukari paralisou com uma súbita lembrança lhe vindo à mente, e Gintsune obviamente estranhou aquela reação — Yukari?

Yukari franziu o cenho.

—Você ainda não me disse como sabia que estava trancada no porão naquele d…

—É melhor eu ir indo agora. — ele falou por sobre a voz dela de repente, Yukari olhou-o surpresa por cima do ombro, mas ele já estava se afastando. — A propósito Yukari, seu pai foi para a pousada ajudar sua mãe uns quinze minutos atrás e eu me esqueci de te dizer, mas no segundo em que pisei aqui fiz uma armadilha de raposa, então ele não poderia nos ouvir de qualquer forma. — comentou rindo — Mas não se preocupe estou desfazendo-a agora.

—Espere, eu estava dizendo…!

—Oh. — ele parou na porta da cozinha e fungou — E amanhã quando for para escola é melhor usar algo mais quente que o agasalho de hoje.

Então deu mais um passo adiante e desapareceu.

Ele havia deliberadamente fugido dela, não é mesmo?!

Yukari levantou-se bufando, e jogou a caixa de pock no lixo, aquele cara…! Ele sempre ia e vinha quando queria, só fazia o que tinha vontade e nunca escutava ninguém, tão irritante e cansativo!

Suspirou alto…

“E posso te garantir que não tenho nada haver com o caso de Aoi-chan!”

 

Certo, mas Yukari não tinha tanta certeza assim, ela virou-se e saiu da cozinha a passos largos.

Talvez não houvesse feito de propósito, ou mesmo nem se dera conta, mas ele fizera alguma coisa.

Ela subiu as escadas com o pensamento fixo na mochila deixada em seu quarto, aquilo que Aoi-chan lhe dissera antes de ir embora não lhe saia da cabeça.

“Yukari-chan, você tem que ter cuidado” suas mãos estavam geladas e tremulas quando ela acompanhou Yukari até a porta e as segurou, sussurrando rapidamente, como se tivesse medo que alguém as surpreendesse. “Eu vi um monstro!”

Yukari tinha pensado que era a falta de sono afetando-a, mas ainda assim franziu o cenho e perguntou-lhe que tipo de monstro, é claro que a resposta de Aoi-chan não teve sentido algum:

“Ele veio para vingar-se da cidade e devorar as garotas… mas ele quer você primeiro Yukari, eu o ouvi… ele chamava o seu nome, ele quer você primeiro!”

Aoi-chan definitivamente havia visto alguma coisa! Yukari abriu a porta do quarto com um solavanco. Mas ela não havia sido capaz de perguntar o que exatamente, nem Gintsune parecia consciente de ter exposto qualquer coisa diante de Aoi-chan, talvez devesse ter dito a ele diretamente o que suspeitava. Ela atravessou o quarto e abriu a mochila.

“Fique com isso Yukari-chan, Sakura-chan fez para mim, ela disse que repele o mal!”

Mas Gintsune não era alguém realmente mau, provavelmente… embora fizesse coisas ruins às vezes… muitas vezes na verdade.

Ah… era tão complicado.

Yukari puxou de dentro da mochila o bracelete de contas vermelhas e brancas intercaladas, aquilo estava no bolso do agasalho dela quando Gintsune pegou suas mãos na margem do rio, e Yukari teve medo que o ferisse, mas nada aconteceu.

Talvez não fizesse efeito se não houvesse contato direto, ou então era só uma bugiganga qualquer.

Ela fechou a mão em punho em volta do amuleto e voltou correndo para a cozinha.

Não ousou pensar no que fazia, enquanto jogava o amuleto dentro da pia e abria várias gavetas dos armários até encontrar algo que servisse.

—Me desculpe Aoi-chan! — suplicou para o nada, na cozinha vazia.

Assim, fechando os olhos, desceu com todas as forças o punho segurando um martelo para carne e ouviu o estilhaçar das contas purificadoras e dos seus próprios princípios.

—To-chan? — Momiji estranhou, quando o irmãozinho que até então estivera dormindo encolhido em seu colo, repentinamente levantou a cabeça — Aconteceu alguma coisa?

—Eu, pensei ter ouvido… — as orelhas dele moviam-se em diferentes direções, tentando captar algo.

—O que foi? Ouviu alguém chamar seu nome novamente? — a mão da irmã parou em suas costas.

—Não, algo quebrando.

—Quebrando? — sua irmã repetiu — É possível, os humanos são desajeitados e grosseiros.

—Sim, mas também… — pensara ter ouvido um soluço. — Não, não deve ter sido nada.

Talvez estivesse apenas sonhando, ah… tomara que não estive tendo nenhum sonho estranho de novo!

Gintsune escondeu o rosto debaixo das patinhas.

—To-chan? — sua irmã chamou, estranhando aquelas reações.

Sonho…?

O rosto de sua irmã era sempre muito tranquilo, mas suas mãos estavam tremendo naquela primeira noite quando ela segurou-o e pediu que não a deixasse, por isso ele não era capaz de deixá-la sozinha por nenhum segundo sequer depois que o sol se punha.

Mas todas as noites, Gintsune adormecia sobre o colo da irmã, sentindo-a acariciar a pelagem em suas costas enquanto admirava o céu estrelado, e acordava ainda sentindo sua mão carinhosa, enquanto ela admirava a aurora, então quando…?

—Irmã. — ele chamou-a, erguendo a cabeça para olhar diretamente nos olhos dourados da irmã — Quando foi à última vez que você dormiu?

Sua irmã desviou o olhar, fixando-o no lago de carpas ali perto, e demorou tanto tempo para responder, que Gintsune já estava começando a achar que não o faria, até que ela começou a falar, com o seu mesmo tom baixo e suave de sempre:

“Enquanto olhando para o céu;

Meus pensamentos vagaram para longe;

Acho que vejo a lua nascente;

Acima do monte Mikasa;

Na distante Kasuga.”

Gintsune olhou-a por um longo.

—E o que acontecerá se teus pensamentos ficarem aqui contigo?

Ainda evitando olhá-lo, a irmã respondeu:

—Se eu dormir, esse lindo sonho onde estou aqui fora com você pode acabar, e vou voltar para aquela escuridão.

Ah… sua querida e delicada irmã.

Gintsune saiu de seu colo, espreguiçando-se conforme aumentava de tamanho e então se levantou retornando à sua forma humana.

—Você não precisa se preocupar com mais nada disso, irmã. — confortou-a sentando-se ao seu lado e passando o braço por sobre os ombros dela, puxando-a para si — Consegue sentir meu calor? Ouve meu coração batendo? Sente minha respiração? Eu estou aqui agora e não sou sonho algum, então mesmo que feche os olhos, prometo-te que não ficará sozinha no escuro. Vamos… descanse. — delicadamente ele a fez deitar a cabeça em seu ombro — Hum… como era mesmo aquela canção que mamãe nos cantava?

Aquela provavelmente não era uma boa hora para dizer a ela, sobre o que Yukari falara de monges e cerimônias… quem sabe ao amanhecer?

Momiji sorriu fechando os olhos e relaxando.

—To-chan, é melhor não tentar entoar nenhum dos cânticos de mamãe. — avisou-lhe com um murmúrio — A maioria deles eram encantamentos.

—Eram?

Mas se ali aquela raposa conseguia finalmente fechar os olhos e descansar, em outro canto da cidade, não muito distante dali, uma humana era perseguida e atormentada por seus pesadelos.

Novamente ela acordou sobressaltada, sentando-se na cama com as mãos e as axilas empapadas de suor, apesar da baixa temperatura da madrugada, e o coração saltando descompassado em seu peito, se fechasse os olhos ainda era capaz de ver os olhos da fera sobre si, sentir seu hálito…

Ele viria devorá-la.

Abraçando a si própria, Aoi encolheu-se estremecendo na cama, já sentindo o estômago se revirar, na cama acima da sua, o irmão ressoava em um sono que vinha sendo negado a ela todas as noites.

“A propósito” — a voz da representante de classe voltou-lhe à memória — “Sua colega, aquela Ichinose, pediu-me para perguntar se você seguiu o conselho dela.”

Talvez ele viesse devorá-la hoje, ou amanhã, ou quem sabe daqui a muitos anos, mas mesmo que o tivesse realmente visto, nesse momento a criatura só existia em seus sonhos.

O lábio inferior de Aoi tremeu.

—Dou o meu sonho para o bom Baku comer. — murmurou — Dou meu sonho para o bom Baku comer. — sua garganta estava se apertando, ela fechou os olhos, chorando silenciosamente enquanto completava agora um pouco mais alto: — Dou o meu sonho para o bom Baku comer!


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Notas finais do capítulo

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