A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 3
02: Um encontro na casa de banhos.


Notas iniciais do capítulo

Glossário:

Jinbei: são roupas mais confortáveis e casuais, tipicamente usadas no verão a vestimenta lembra um pijama ou roupão. São comuns em festivais de verão, mas de fato podem também ser usados como pijamas, roupas para se ficar em casa ou ir até lugares próximos (como lojas de conveniência etc).

P.S: caso haja alguma palavra que não compreendam avisem-me.



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Entre as árvores na beira da estrada, com o rosto protegido pelo imenso chapéu do tengu, Gintsune olhava agora na forma de um homem, e não mais na forma de uma raposa, o sol despontando por detrás da colina.

Quando fora a última vez que o vira? Há três décadas, no mínimo.

Claro, em seu mundo ele podia ver o sol sempre que quisesse, bastava que para isso voasse acima da névoa de energia youkai condensada que a tudo nublava, mas nos últimos tempos ele mergulhara em um estado tamanho de apatia que mesmo para algo tão simples faltava-lhe vontade.

E agora ali estava ele, vendo o sol, e nem mesmo havia de precisar voar para isso, não, via-o diretamente do solo, sem qualquer interferência que se interpusesse para nublar suas vistas.

E só naquele momento Gintsune deu-se conta do quanto havia sentido falta daquilo.

Um sorriso surgiu na face da raposa enquanto ele saia novamente de entre as árvores e se postava no centro da estrada.

Era isso não era? De alguma forma ele estava de novo entre os humanos.

Levando uma mão à nuca Gintsune sacudiu os cabelos uma vez e, da raiz até as pontas, eles escureceram-se e se tornaram negros, afinal entre humanos o melhor era parecer-se como um, não é mesmo?

Com um pequeno sorriso de canto a raposa escondeu as mãos dentro das mangas do quimono e começou a caminhar em direção ao túnel, desejoso de ver o mundo humano mais uma vez.

E mesmo sem saber o que se passava ali, Gintsune pensou que aquilo até poderia ser divertido.

A raposa acreditava que, depois daquele túnel, havia um mundo novo para se redescobrir e explorar, mas este mesmo novo mundo, que a ele parecia tão interessante e cheio de coisas a se descobrir, era o mesmo mundo que para Shibuya Yukari tornara-se, há tempos, estagnado e sem vida.

Shibuya Yukari era uma garota comum de dezesseis anos de idade, nascida em fevereiro, o mês mais frio do ano — daí seu nome, “Yukari”, derivado da palavra Yuki (neve) — em uma pequena cidade do interior, e que tinha por hábito todos os dias parti o cabelo exatamente ao meio e o prender em duas tranças.

A cidade, a propósito, se chamava Higanbana — eu sei, não é qualquer um que daria o nome de “Flor da morte” a uma cidade, mas era um nome que a cidade tomara emprestado da flor que nascia naturalmente e em grande abundancia naquela região, na verdade dizia-se por ali que se não se tomasse cuidado até mesmo entre as bordas do tatame poderia brotar Higanbana, um exagero claro, mas um bom exemplo de como aquela flor era comum por ali, emprestando a cidade, em determinadas épocas do ano, um cenário um tanto quanto, do ponto de vista daquela adolescente, surreal e até mesmo sobrenatural que a fazia realmente parecer uma cidade situada “a margem de dois mundos”.

Ainda assim Yukari acreditava que aquele era um nome curioso para uma cidade que vivia principalmente do turismo que suas várias fontes termais proporcionavam.

Ela, por exemplo, sabia que se tivesse escolha — o que ela não tinha, pois afinal nascera ali — jamais gostaria de visitar fontes termais em uma cidade com aquele tipo de nome tão sombrio, mas Higanbana, talvez influenciada por seu nome, também tinha outro tipo de atrativo em seu turismo: as lendas.

A cidade era cheia de lendas, a grande maioria, se não todas, inventadas pelos habitantes locais em busca de atrair mais turismo àquela região.

E assim Higabana se mantinha: a base do turismo proporcionado pelas milhares de pessoas que todos os anos a visitavam em busca tanto de suas fontes termais, com propriedades medicinais, diziam, quanto por suas dúzias de lendas locais.

Nada daquilo, porém, era capaz de atraí-los durante o verão.

Durante o verão não havia sequer sinal dos milhares de lírio aranha que emprestavam àquela cidadezinha turística do interior o ar sobrenatural que parecia tornar todas as suas lendas tão verídicas e plausíveis de se acreditar, além de que quem quer visitar fontes termais durante o verão?

Não, os turistas só começariam a vir durante o outono, quando enfim desabrochavam as higanbanas e o tempo tornava-se um pouco mais frio — o cenário ideal para uma cidadezinha que vivia do turismo de suas lendas e fontes termais — e mesmo depois, quando o inverno chegasse, os turistas continuariam vindo, ainda que já não houvesse mais “flores da morte” para se apreciar e trazer a vida todas as suas dezenas de lendas locais o tempo era frio o suficiente para qualquer um desejar o privilégio de relaxar em uma boa fonte termal, e a primavera também não era ruim, pois cidades de interior, como aquela, tendiam a atrair turistas que estavam ansiosos para apreciar o florescer das flores, especialmente das sakuras, sem toda aquela poluição, agitação e barulheira típicas das cidades grandes.

E assim, como um urso que se recolhe para hibernar durante o inverno, todos os anos, no verão, a cidade de Higabana parecia mergulhar em um apático e infindável estado de estagnação.

Suspirando, Yukari olhou pela janela enquanto distraidamente enrolava a ponta da trança entre os dedos, mas nada estava acontecendo lá fora, afinal nunca acontecia nada em Higabana durante o verão.

—Muito bem, alguém tem alguma pergunta?  — professor Haruna perguntou chamando a atenção de Yukari novamente para o que se passava em sala de aula e fazendo-a deixar de lado o cabelo.

—Professor! Professor! — uma das colegas de classe de Yukari, ela não se interessou em saber quem, balançou a mão no ar — Aqui professor!

Yukari já sabia no que aquilo iria acabar, era como sempre acabava, mas o professor, que apesar de ser um adulto parecia conservar um pouco mais de inocência do que seria bom para si mesmo, pareceu feliz em poder ajudar:

—Sim? Diga.

Com uma risadinha a garota perguntou:

—Você tem namorada professor?

E, como já era de se esperar, isso despertou uma série de outras perguntas indiscretas, tais como:

—Qual a sua comida favorita professor?

—Professor, o que o senhor acha de mulheres mais jovens?

—Quais as suas medidas professor?

Yukari girou os olhos. Por ser o professor mais jovem do colégio e ser sempre muito gentil, além de ter vindo de fora, embora já fizesse cerca de três anos que morava ali, o professor Haruna era sempre muito popular entre suas alunas.

—Ora, vamos meninas, vamos, eu estava me referindo à aula. — professor Haruna sorriu.

—Oh professor, não seja estraga prazeres. — reclamou alguém.

E outra garota disse:

—Ao menos nos diga suas medidas!

Na verdade eu estaria mentido se dissesse que o jovem professor Haruna também não despertava o interesse de Yukari, mas no caso dela esse interesse devia-se por outra razão, afinal por que ele escolhera morar ali? Ela podia entender porque moradores que nasceram e passaram a vida toda ali se conformavam a nunca sair, mas por que alguém no mundo escolheria, por vontade própria, vir morar ali naquele fim de mundo?

Ela mesma, embora nascida ali, não via a hora de ir embora.

Sim, Yukari sonhava em um dia ir-se embora dali e morar em alguma grande e movimentada cidade, não importava qual, desde que fosse uma cidade de verdade.

Oh, e ela pintaria os cabelos de rosa também.

Um tom de rosa claro e suave como o das flores de sakura.

Seus pais não queriam aquilo, é claro, eles queriam que ela se conformasse com a vida que tinha, que se acomodasse e passasse o resto da vida dela ali, que casasse, tivesse filhos e herdasse a pousada da família, assim como seu pai tinha feito e como o pai dele havia feito antes dele.

Mas não era isso o que ela desejava para si.

—Meninas isso pode ser considerado assédio, sabiam? — riu o professor — Ao invés disso por que não falamos de outra coisa? Por acaso algum de você já ouviu falar da lenda da grande raposa prateada que foi selada aqui mesmo em Higanbana?

—Professor, essa história de novo não! — alguém reclamou.

E junto a essa reclamação muitas outras se juntaram também, inclusive da parte dos garotos também, que haviam ficado calados até então — ao contrário das meninas, os meninos sempre ficavam calados e mal humorados nas aulas do professor Haruna —, aquela era uma pergunta idiota de se fazer afinal, porque não havia quem ali não conhecesse a lenda da “grande raposa prateada selada em Higanbana”, mesmo os turistas que chegavam ali pela primeira vez logo tomavam conhecimento sobre ela, porque Higanbana podia ter muitas lendas, mas nenhuma tão importante ou popular quanto aquela.

Mas, por alguma razão, o professor Haruna adorava aquele tipo de estórias, e a lenda da raposa selada era, de longe, a sua favorita de forma que a contava repetidas vezes durante suas aulas sempre que tinha chance, às vezes, secretamente, Yukari imaginava se isso não era a forma que ele arranjara para punir os alunos por todo o “assédio”.

Assim, sem ter quem pudesse pará-lo, professor Haruna começou a contar, pela enésima vez, a lenda da grande raposa selada:

—Diz a lenda, que há muito, muito tempo... — era engraçado, mas professor Haruna sempre assumia aquele tom quando contava a história, como a de um velho e sábio avô, não importava quantas vezes contasse a estória.

“... Viveu uma princesa muito gentil que era amada e querida por todos à sua volta, e essa princesa também era possuidora de uma grande beleza, ela era mais bela até mesmo que o florescer das sakuras.”

“E tão bela era essa princesa que certa vez despertou até mesmo a inveja de um antigo espírito de raposa, a raposa ficou furiosa por ver uma humana tão bela, que ultrapassava até mesmo à sua beleza inumana e, tomada de inveja, ela roubou a princesa para si, privando para sempre o mundo de sua agradável beleza.”

“A princesa era muito amada, por isso quando ela desapareceu todos foram tomados de uma inconsolável consternação, sem poder aceitar que sua tão querida princesa havia realmente se ido para sempre, ninguém, porém, sofreu mais que o irmão da princesa.”

“Jurando vingança à raposa que lhe roubara a irmã, ele abandonou o nome da família e fugiu de casa para dedicar sua vida a um templo, lá ele passou muitos e muitos anos treinando para se tornar um exterminador de youkais que fosse capaz de eliminar de uma vez por todas à maligna raposa.”

“Os monges de tudo tentaram, mas não foram capazes de eliminar o ódio do coração do jovem exterminador, e assim ele acabou por abandonar o templo também e partir em uma viagem solitária em busca da raposa, diz-se que ele viajou por todo o Japão, caminhando de ponta a ponta procurando pela raposa e exterminando qualquer youkai que surgisse em seu caminho.”

“Até que um dia ele finalmente encontrou a tal raposa, que muito cruelmente admitiu seus crimes dizendo ter levado a irmã do exterminador e se alimentado de sua carne para absorver a beleza dela para si.”

“Dizem que foi uma batalha lendária aquela, que duraram três dias e três noites e que até mesmo os deuses pararam para assisti-la, por vezes o exterminador quase pereceu, mas havia algo maior ao lado dele e, por fim, a raposa foi derrotada.”

“No entanto, o exterminador julgou que exterminá-la seria algo piedoso demais para alguém que causara tanto dor a sua irmã, a ele e a sua família e, ao invés disso, selou-a por toda a eternidade, para que ela ficasse por todo o sempre refletindo sobre seus atos hediondos”.

—E a raposa permanece lá até agora, vocês sabiam? — agora o professor assumia o tom alegre de um guia turístico — Selada em escuridão, na rocha no centro do lago que, dizem, tem o poder de lavar os seus pecados! Mas dizem alguns... — agora seu tom tornava-se mais sombrio, não havia duvidas de que certamente o professor Haruna era um bom contador de histórias — Que um dia a raposa escapará do lacre... E se vingará por todos os seus anos de aprisionamento... Devorando todas as belas jovens que encontrar!

Apesar disso ninguém se assustou.

—Professor todos nós já ouvimos essa história antes!

Os alunos reclamaram, e bolinhas de papel começaram a voar em direção ao professor que riu e cruzou os braços em frente ao rosto para se proteger.

—Além do mais, nós estávamos no meio da aula de matemática! Lembra?!

—Desculpe, desculpe! — riu o professor — Mas vocês pareciam tão entediados com a minha aula que pensei em contar algo novo!

—O que tem de novo nessa história professor?!

E mais bolinhas de papel voaram.

Nascida e criada numa cidade que sobrevivia a base de suas lendas, para Yukari era mais do que óbvio que nada daquilo jamais aconteceu e aquela foi apenas uma lenda inventada para atrair mais turistas para a cidade.

Sua avó sempre dizia que toda lenda tem um fundo de verdade, mas ainda que fosse assim, provavelmente a irmã do exterminador havia sido levada por algum humano mesmo, se ela era realmente tão bonita quanto se dizia isso não teria sido impossível, e o exterminado sem conseguir aceitar aquilo, por nunca terem encontrado pistas do que poderia ter acontecido a ela, enfiara na cabeça que aquilo era culpa de algum ser fantástico, como uma raposa.

Porque quando o ser humano não encontra uma resposta lógica ele, obviamente, apela para o fantástico.

E então ele passara o resto de sua vida perseguindo uma raposa imaginária e morreu sem jamais descobrir o que acontecera a sua irmã, mas como esse não era um bom final, e muito menos seria bom para o turismo, a história acabou assumindo outras diretrizes na boca do povo.

Yukari girou os olhos e voltou a olhar pela janela... E viu alguém pousar, com a leveza de uma pluma, no meio da quadra de atletismo da escola.

Ela não sabia dizer se era homem ou mulher, mas como uma miragem alguém usando um quimono azul e um imenso chapéu de palha pousou ali, literalmente em câmera lenta, na ponta de um dos pés, com os braços esticados para trás, e as mangas e os longos cabelos negros esvoaçando ao vento, e então, com mais um salto, desapareceu em pleno ar.

Ela piscou e esfregou os olhos sem saber dizer o que tinha acabado de ver, ou se, pelo menos, realmente havia visto alguma coisa.

— ...buya-san? Shibuya-san?

Ela podia ouvir alguém chamá-la ao longe, mas estava tão impressionada com o que acabara de ver, ou não ver, que mal se dera conta.

Até que Kaoru, sentada atrás de si, cutucou-a com um lápis entre as omoplatas.

— Yuki! Yuki! — cochichou — O professor!

De repente Yukari voltou à realidade, virando-se assustada para frente.

—Sim! — respondeu.

—Shibuya-san, o que há de tão interessante lá fora que estava assim tão distraída? — professor Haruna perguntou cruzando os braços, sempre sorridente.

Yukari corou, envergonhada por ter sido pega em fragrante.

—N-nada! — gaguejou.

Ele inclinou a cabeça de lado.

—Nada? Minha aula é assim tão entediante para até mesmo um “nada” lá fora parecer mais interessante? — ele ajeitou os óculos que haviam escorregado até a ponta do nariz.

Yukari abriu a boca sem saber o que dizer.

—Sinto muito! — desculpou-se — Realmente sinto muito professor!

Ela bateu com as palmas de ambas as mãos sobre a mesa e curvou-se tão rápido que acabou dando com a testa no tampo da mesa, despertando risadas por toda a classe.

—Certo, certo, parem de rir. — o professor tentou acalmá-los — Shibuya-san, não precisa ser tão rígida está tudo bem, você se machucou?

—Não... — respondeu massageando a testa — Não foi nada.

—Ótimo então... — ele deixou de falar ao ouvir o sinal do final da aula soar — Bem, parece que terminamos por aqui, até amanhã.

O professor acenou duas vezes com a cabeça antes de pegar suas coisas e começar a se retirar dali, mas, antes de fechar a porta acrescentou:

—Oh, e aqueles que fizeram bagunça se certifiquem de juntar todas as bolinhas de papel que me jogaram.

Houve reclamações, claro, sempre havia reclamações, mas o professor Haruna ignorou tudo aquilo com um sorriso e se foi.

Mas Yukari não estava interessada naquilo, distraidamente seu olhar vagou em direção à janela novamente.

Mas não havia nada lá fora, apenas o campo de atletismo da escola.

—Yuki? — Kaoru a chamou parando ao lado de sua mesa — Você realmente está se sentindo bem? Foi uma bela batida, talvez fique com um galo...

—O que? — Yukari virou-se — Ah sim, claro Kaoru, não foi nada, eu estou bem. Você não tem atividade do clube hoje, certo? Então vamos?

Ela pegou a pasta escolar e sorriu.

Kaoru sorriu de volta.

—Vamos. — concordou.

Ela havia dito que estava bem, mas provavelmente acabaria com um galo no meio da testa, e também... O que fora aquilo que ela vira lá fora?

Balançou a cabeça, era verão, estava quente e ela estava entediada, então certamente fora apenas uma miragem, pessoas viam miragens o tempo todo quando fazia muito calor, e não valia a pena ficar pensando demais nisso.

Suspirou.

—Yuki! — Kaoru a chamou chocando de leve os seus ombros — Você não devia suspirar tanto!

—Já sei, já sei. — Yukari respondeu desanimada — Porque desse jeito toda a minha felicidade vai escapar, não é?

—Exatamente! — Kaoru sorriu, mas ao ver a expressão desanimada de Yukari persistir, ela mesma acabou suspirando — Se bem que é verdade que você sempre suspira mais durante o verão.

—Mas...! O verão é sempre tão chato! A cidade fica como que praticamente vazia e nada acontece por aqui! — Yukari explicou-se angustiada.

A maioria dos adolescentes tende a gostar do verão, por causa das férias de verão e tudo o mais, mas tenho certeza que se você estivesse no lugar de Yukari também acharia essa uma época extremamente enfadonha, talvez se sua família concordasse em fechar a pousada, ao menos por um final de semana, para fazerem uma viagem de férias ou simplesmente ir até a praia — qualquer lugar serviria na verdade — ela se sentisse diferente quanto àquela época do ano e ao seu desejo incessante de sair daquela cidade.

Mas era daquele jeito que as coisas eram e a pousada e casa de banhos da família Shibuya nunca fechava.

Nem mesmo no verão quando sequer havia hóspedes.

—Anime-se Yuki! — Kaoru enlaçou seu braço ao dela — Um dia sairemos daqui juntas, você sabe que sim! Então não precisa ficar assim tão desanimada!

Sim, Kaoru, assim como Yukari e a grande maioria dos jovens, também sonhava em um dia deixar aquela cidade, infelizmente apenas uma parcela insignificante deles realizava esse sonho, e uma parte menor ainda não acabava voltando depois de algum tempo ao se deparar com o choque do “mundo real” lá fora.

Ainda sim Yukari sorriu.

—Tem razão Kaoru. — concordou — Nós sairemos daqui juntas, e você ira estudar artes e ser uma grande pintora!

—Sim! — Kaoru animou-se — E você... — ela inclinou a cabeça de lado — O que mesmo que você irá fazer lá fora Yuki?

—Não importa desde que eu saia daqui. — respondeu.

A verdade é que até então a única ambição de Yukari era sair dali, talvez ela acabasse sendo um dos jovens que acabava voltando para casa depois do choque com o mundo real, mas por hora isso não importava a ela, não desde que ela pudesse sair dali, ao menos um pouco.

—Kaoru. — Yukari chamou um pouco mais animada, sonhar com o dia em que sairia dali sempre a animava — Você já imaginou o tipo de vida que teremos quando...!

Yukari perdeu a voz e parou onde estava e como Kaoru estava com o braço enlaçado ao seu ela também deixou de caminhar, igualmente surpresa.

Alguns metros adiante uma pessoa vinha caminhando em direção as duas, essa pessoa usava um simples quimono azul, com as mãos enfiadas dentro das mangas, e um par de sandálias de palha, e isso não era tão incomum assim, em cidades pequenas como era a cidade de Higanbana muitas pessoas, especialmente seus habitantes mais velhos, optavam por vestimentas mais tradicionais, os quimonos só não eram mais comuns que os próprios lírios aranhas — a própria Yukari tinha a impressão de que podia contar nos dedos das mãos às vezes em que vira sua mãe ou seu pai se vestir com algo que não fossem quimonos, e não sabia se algum dia já havia visto a avó sem quimono —, o que realmente chamava a atenção de Kaoru era o chapéu.

Um imenso chapéu de palha, do tipo que só era visto sendo usado por monges ou em pinturas e livros de histórias — e ainda assim parecia muito maior que os chapeis retratados ali.

Mas a surpresa — ou devemos dizer o choque? — de Yukari ia além, não era o chapéu, bem, era o chapéu, mas não era o chapéu, era o que ele representava, pois um chapéu como aquele certamente tornava aquele ser inconfundível.

Era ele, a sua miragem de mais cedo, que aparecera e desaparecera flutuando no campo de atletismo da escola.

Ou será que o mais correto agora seria dizer que aquilo era uma alucinação e não uma miragem? Sim porque já era a segunda vez que ela o via num mesmo dia.

O problema era...

—Yuki. — Kaoru chamou-a apertando um pouco o seu braço — Você sabe quem é essa pessoa? Eu acho que nunca o vi...

É que Kaoru também o estava vendo.

—Eu também não sei quem ele é. — Yukari respondeu.

Não que elas conhecessem todo mundo em Higanbana, aquela era uma cidade pequena, mas não tanto assim, mas com um chapéu daqueles elas certamente lembrariam se já o tivessem visto antes.

Como de fato Yukari lembrava.

De repente Kaoru ofegou, pois, ao passar por elas, o estranho sorriu — os lábios eram tudo que aquele enorme chapéu as deixava ver de seu rosto — e, segurando a aba do chapéu cumprimentou-as com um breve aceno de cabeça.

E mesmo Yukari sentiu os cabelos de sua nuca — tão bem repartidos e presos em suas típicas trancinhas da vida toda — se arrepiar. E como não se arrepiaria afinal? Até poucos segundos antes ela tinha certeza que estava alucinando, mas agora Kaoru também o via!

E não só ela, mas todos também pareciam vê-lo enquanto o estranho passava pelo mar de alunos a sair da escola e chamava a atenção com seu enorme chapéu.

—Será um visitante? — Kaoru perguntou ainda agarrada ao braço de Yukari.

—Durante o verão? Duvido muito.

Até porque visitantes não surgiam e desapareciam em pleno ar.

—Talvez devêssemos falar com ele? — Kaoru sugeriu — Pode ser que ele ainda não tenha onde ficar, e vocês têm quartos vagos...

—Melhor não.

Yukari puxou Kaoru dali.

 —Yuki! — Kaoru ofegou — O que foi?

—Nada. — respondeu — Ele só me pareceu suspeito.

—Francamente, Yuki, não da para te entender! Fica aí toda desanimada quando a cidade está sem turistas, mas se chega um fica cheia de desconfiança! Como filha dos donos de uma pousada você devia ser mais hospitaleira, sabia?

Yukari nada respondeu, e nem olhou para trás enquanto se afastavam.

Ela não sabia bem se estava assustava ou o que estava sentindo ou pensando, estava confusa, se não fora uma miragem como pudera então aquele estranho sumir e aparecer em pleno ar? Ela engoliu em seco e apressou seus passos, arrastando Kaoru consigo.

E o estranho por sua vez também seguiu com seu caminho, os humanos ao seu redor não podiam ver seu rosto, mas por debaixo do grande chapéu ele observava a tudo e a todos com imensa curiosidade enquanto caminhava pela cidade, com enorme agitação apesar da aparente calma.

Como os humanos haviam mudado!

Como estavam diferentes os humanos!

Agora as mulheres andavam pela rua com braços a mostra e saias na altura dos joelhos, incrível!

E tudo em tão pouco tempo!

De inicio Gintsune havia escolhido permanecer com o chapéu para não chamar atenção, porque sua beleza certamente chamaria, e ainda bem que optara por isso, pois sentia as orelhas de raposa se mexerem e remexerem-se inquietas por dentro do chapéu e a cauda já quase lhe escapava também.

Pois para uma raposa o mais difícil de esconder são sempre as orelhas e a cauda, e tão agitado do jeito que ele estava, escondê-las estava sendo, provavelmente, a coisa mais difícil que já fizera na vida!

E o mais impressionante era o quão mundanos continuavam os humanos mesmo depois de tanta evolução!

Mesmo com toda aquela evolução até agora ele não vira humano algum capaz de competir com a beleza de um youkai — e muito menos de uma raposa —, chegava até a ser risível, mas eles não conseguiam sequer competir com a esposa do tengu!

Pensar no tengu e sua esposa — e consequentemente nos filhos deles — fez Gintsune parar por um momento, de alguma forma ele estava de volta ao mundo humano depois de mais de um século afastado, e havia saído do tédio no qual ele, cada vez mais, submergia, mas e depois? Como faria para voltar? Não que ele estivesse com pressa agora, o mundo humano tinha se transformado tanto que ele levaria ainda algum tempo até se entediar novamente e ter vontade de voltar, e o tengu e sua família podiam muito bem aguentar por um ano ou três sem ele — como já havia feito antes, a propósito —, mas e depois? Gintsune não sabia como voltar e as chances de um tengu fora de sua vila, duas crianças meio youkais e uma humana sobreviverem sozinhos no brutal e sanguinolento mundo youkai eram baixíssimas sem uma raposa guardiã para intimidar e afastar todos que ousassem olhar torto para eles. E Gintsune ainda não tinha ideia como voltar... O que era aquilo?!

Com uma breve corrida de sete passos Gintsune alcançou o que parecia uma incrível máquina na calçada, sua porta era uma grande janela de vidro e vários tipos de comida diferentes podiam ser vistas através dela, e o melhor: havia, pelo menos, uma meia dúzia delas enfileiradas na calçada!

Encantado e levado pela curiosidade Gintsune ergueu a mão encostando a palma ao vidro e ficou o que pareceram ser horas — mas na verdade foram apenas alguns poucos minutos — admirando mais aquela fantástica invenção, tentando descobrir o que era preciso fazer para conseguir a comida que estava dentro daquela caixa.

Afinal, depois de um dia inteiro explorando, ele já estava começando a sentir fome, claro que se quisesse Gintsune poderia sobreviver por anos a fio sem qualquer tipo de alimento ou bebida, mas isso não significava que ele queria ficar anos a fio sem comer.

—Está sem trocado para a máquina, amigo? — alguém perguntou ao seu lado.

Não era comum alguém chegar tão perto de Gintsune sem que ele notasse, mas estava tão fascinado com aquela estranha caixa que acabara sendo pego desprevenido.

—Trocado? — perguntou olhando para o lado.

Havia um humano de óculos, jovem e sorridente parado ao seu lado, e Gintsune podia facilmente avaliar que ele sequer chegara aos trinta anos de idade ainda.

—Sim. — o humano bateu com os nós dos dedos no vidro da máquina — Para a máquina.

Então era preciso colocar dinheiro para conseguir a comida.

—Hum... Sim, estou sem trocados. — respondeu.

Pelo menos por hora, distraidamente Gintsune começou a olhar em volta procurando por alguma pedrinha que pudesse transformar para enganar a máquina, quanto dinheiro será que seria necessário? E como seria o dinheiro agora? Francamente ele duvidava muito que continuasse o mesmo, sendo os humanos tão mutáveis do jeito que eram.

—Aqui está amigo.

Quando Gintsune ergueu os olhos ele percebeu que o humano estava lhe estendo comida, franzindo o cenho ele a pegou, parecia ser um pão de feijão, mas... O que era aquela estranha cobertura elástica que o cobria?

—Oh desculpe, eu devia ter perguntado antes, não é? — o humano desculpou-se parecendo interpretar errado a hesitação de Gintsune — Mas você parecia estar com fome, desculpe, desculpe, eu sempre acabo me intrometendo.

—Não... Obrigado. — agradeceu.

A verdade é que ele estava acostumado a receber coisas de humanos, mas nunca dessa forma, de maneira tão espontânea, sequer tivera que o manipular ou coisa assim...

—Então você é novo por aqui amigo? — o humano perguntou.

—Sou, cheguei hoje. — respondeu concentrando em desfazer-se daquela embalagem estranha.

—Entendo, entendo. Está de visita?

—Visita? — Gintsune parou por um momento — Sim, acho que ficarei por um tempo.

Ele afinal não tinha ideia de como chegara ali e muito menos como voltaria.

—Certo, certo. — porque aquele humano era tão sorridente e simpático? — E já tem onde ficar?

—Acho que não. — respondeu dando uma mordida em seu pão.

—Oh certo, sabe, a família de uma das minhas alunas tem uma pousada muito boa por aqui, você deveria ir até lá. — e apontando a si mesmo concluiu — E quem sabe não possa mencionar que eu a indiquei? Talvez assim me deem um desconto na próxima vez.

Gintsune o olhou. Que ser humano mais curioso, falando assim tão abertamente com ele, um estranho, e ainda o chamando de amigo e tudo.

—Uma pousada? Você quer dizer uma hospedaria?

Por alguns segundos o humano pareceu surpreso, mas logo depois riu e acenou.

—Hospedaria? Que jeito curioso de se falar, mas sim, acho que você pode chamar assim também.  Fica por ali, não é difícil de encontrar. — ele apontou a direção — Você pode pegar um ônibus se quiser, mas também dá para ir andando, posso desenhar um mapa se quiser.

—Sim. — concordou — Obrigado.

Um humano cada vez mais curioso...

—Mas então amigo, que chapéu mais curioso, não é? — ele puxou conversa mais uma vez quando lhe entregou o mapa. — Onde o arranjou?

—Na verdade é de um amigo. — respondeu analisando o mapa — Ele ama esse chapéu quase tanto quanto a esposa, na verdade agora mesmo deve estar pensando em alguma forma de me degolar ou arrancar meu coro por ter sumido com o chapéu.

Ele não desenhava bem, talvez fosse mais fácil se Gintsune simplesmente voasse e procurasse a hospedaria de cima.

—Ah, certo, esse tipo de amigos realmente são os melhores. — concordou o estranho humano — Eu preciso ir agora, mas quando chegar lá não se esqueça de mencionar que foi uma recomendação minha, ok? Eu sou o professor Haruna, Haruna Kakeru, leciono matemática na escola aqui perto para alunos do colegial.

—É um prazer conhecê-lo, professor Haruna. — Gintsune agradeceu curvando-se levemente, mas sem fazer qualquer menção de dizer a ele seu próprio nome — E obrigado.

Afinal, como já foi dito antes, Gintsune podia ser muitas coisas, mas certamente não era mal educado.

E quanto à regra dele de nunca saber os nomes verdadeiros dos outros para assim não ser obrigado, por questão de educação, a revelar ele mesmo o seu próprio nome?

Bem, então aqui vale ressaltar que professor Haruna não passava de um simples humano e, do ponto de vista de Gintsune, com humanos não havia porque ele se dar ao trabalho de ser tão... Cordial. Não valia a pena,  afinal eram apenas humanos.

Na verdade a esposa do tengu deveria se sentir lisonjeada por Gintsune não querer saber seu nome, isso significava que ele a via como igual, ao invés de encher tanto a sua paciência.

—Não foi nada amigo, disponha. — professor Haruna respondeu gentil como sempre — Eu preciso ir agora, mas espero que nos vejamos novamente.

—Igualmente. — Gintsune acenou.

Bem depois que o professor já havia sumido de vista Gintsune resolveu olhar mais uma vez o mapa que ele lhe desenhara e as várias indicações que anotara nele para chegar a tal hospedaria — ou, como parecia que falavam agora “pousada” — ele não desenhava bem, pensou novamente, realmente seria mais fácil se Gintsune simplesmente voasse e procurasse a hospedaria de cima.

No entanto ainda havia muita coisa naquele novo mundo humano que Gintsune não tinha visto, então decidiu guardá-lo para mais tarde... O que era aquilo do outro lado da rua? Cheio de máquinas barulhentas onde as pessoas estavam entrando e saindo com cestos cheios de roupas?!

...

Lentamente o rosto de Yukari escorregou por entre as mãos até que sua testa desse de contra com o balcão, machucando ainda mais a área já contundida.

—Bem vindo à casa de banhos Shibuya! — disse repentinamente acordada e erguendo a cabeça no susto no exato momento em que a porta da frente se abria... Mas se tratava apenas de sua avó. Yukari fez uma careta e reclamou: — Vovó a senhora sabe que a porta da frente é apenas para os convidados.

Convidados eram como eram chamados todos os clientes ali, fossem eles hóspedes ou apenas moradores locais interessados em usar os banhos.

—Oh criança, deixa de ser tão rígida, sim? Nós sequer temos hóspedes no momento. — sua avó dispensou seu comentário com um aceno de mão.

A avó de Yukari era um bom exemplo de alguém que, provavelmente, nunca havia vestido nada que não fossem vestimentas tradicionais, enquanto que a própria Yukari só as vestia quando obrigada — isto é, todos os dias quando tinha que ajudar nos negócios da família.

Aos sessenta e dois anos, a avó de Yukari, a senhora Shibuya Tsubaki, ou simplesmente vovó Shibuya, nunca havia deixado a cidade, nascida e criada ali ela se casara aos vinte e um anos com o então herdeiro da pousada e casa de banhos Shibuya — o falecido avô de Yukari — e passara toda a sua vida naquela pequena cidade, onde provavelmente ficaria até morrer.

Do ponto de vista de Yukari aquela era uma boa cidade para se passar a velhice, mas não a vida toda.

—Então, onde estão seus pais?

—Papai está no escritório. — ela apontou com o polegar sobre o ombro para a porta atrás de si — E mamãe está em casa.

A casa da família ficava nos fundos da pousada em uma construção separada, mas ainda no mesmo terreno.

—Entendo, entendo, Yuki, quem temos na casa de banho hoje? — sua avó perguntou inclinando-se sobre o balcão.

Yukari bocejou entediada.

—Cerca de uma dúzia e meia de pessoas, menos de um quarto são pessoas jovens, todos habitantes de Higanbana, apenas nossa clientela padrão de sempre. — respondeu.

—Entendo. — sua avó estalou a língua — Ninguém novo?

—Não. — Yukari respondeu ainda entediada — Ninguém novo.

—Mas... — sua avó continuou — Não há mesmo ninguém? Nenhum hóspede?

—Não, a senhora sabe que não costumamos ter hóspedes nessa época do ano. — Yukari olhou para a avó já estranhando o comportamento — Vovó a senhora está bem?

—Sim, sim estou, mas é que eu estava andando pela cidade e ouvi algumas coisas...

Claro que sim, afinal o passatempo favorito de sua avó era andar pela cidade e “ouvir algumas coisas”, todos os dias ela sempre voltava com algo novo a dizer, ainda assim Yukari perguntou:

—E o que ouviu dessa vez vovó?

Afinal não havia muito que se fazer em uma cidade como aquela, ainda mais quando se estava presa atrás de um balcão de recepção.

Inclinando-se ainda mais sobre o balcão, vovó Shibuya contou-lhe como se lhe entregasse um precioso segredo:

—Ouvi dizer que há um forasteiro usando um grande chapéu de palha cobrindo o rosto na cidade.

Novamente Yukari sentiu os arrepios na nuca.

—Um forasteiro com um grande chapéu de palha. — repetiu.

—Ah sim. — continuou sua avó — Toda gente diz que o viu, embora eu mesma não tenha tido a sorte de encontrá-lo, parece que está andando pela cidade toda, parando em lugares estranhos...

—Lugares estranhos?

Sua avó confirmou.

—Parece que parou na lavanderia, aquela perto da sua escola, e ficou mais de duas horas lá dentro, olhando as máquinas, até sentou-se numa das cadeiras de massagem, mas não ligou nenhuma, e esteve num monte de outros lugares estranhos também, mas parece que não levava qualquer bagagem, por isso pensei... Que talvez já houvesse se hospedado aqui?

Lentamente Yukari balançou a cabeça.

—Não. — respondeu — Por aqui ele não passou.

Mas afinal com o que é que ela estava tão chocada? Se todo mundo na cidade o havia visto isso significava que ele não era miragem e tão pouco alucinação nenhuma, apenas um forasteiro qualquer com um chapéu enorme.

E quanto ao que ela tinha visto mais cedo... Certamente fora apenas uma ilusão de ótica.

Sim, provavelmente ele estava passando na rua, e ela por algum efeito de luz ou coisa assim, pensou tê-lo visto aparecer e desaparecer em plena quadra de esportes.

E não havia nada de estranho nisso, nem de anormal.

—Compreendo. — sua avó deu um suspiro desapontado.

—Mamãe? — a mãe de Yukari, a senhora Shibuya Chiharu, chamou surgindo pelos fundos, onde ficavam a cozinha o depósito e a área de serviços — Yuki é a mamãe que está aí?

Na verdade Sibuya Tsubaki, a quem a Sra. Shibuya chamava de “mamãe”, não era realmente sua mãe e sim sua sogra, mas é um traço muito forte na cultura nipônica que por respeito tratem os sogros como “pai” e “mãe” e aos cunhados como “irmãos”.

—Sim sou eu. — sua avó respondeu — Acabei de chegar.

—Oh mamãe, a senhora está aí. — a Sra. Shibuya disse ao chegar ao ponto em que estavam as duas. — O que está fazendo?

Tal como a sogra e a filha ela também vestia quimono.

—Ah, eu estava apenas contando para nossa Yuki sobre o estranho e belo forasteiro que estava andando pela cidade hoje. — contou a senhora.

Yukari fez uma careta.

—Se ele estava com o rosto coberto como sabe que ele era belo? — perguntou.

—Bem, eu estou apenas supondo que ele era belo, seria grosseria se eu fosse supondo já de cara que ele é feio.

—De qualquer forma mamãe. — Yukari voltou-se para a mãe — Agora que vovó está de volta eu posso ir? Tenho lição de casa para fazer.

Na verdade as coisas por ali estavam tão paradas que se quisesse Yukari podia muito bem fazer seu dever de casa ali mesmo enquanto atendia na recepção. Mas ela não queria. Ela queria sair logo dali.

Sua mãe, no entanto, fez uma careta diante aquele pedido.

—Yuki, você quer mesmo deixar sua avó aqui cuidando de tudo? Você é que deveria...

—Ora, deixe a menina ir Chiharu! — sua avó interveio por ela — Ela é jovem ainda e tem mais é que aproveitar a juventude!

Claro, se com “aproveitar a juventude” sua avó queria dizer ficar trancada no quarto fazendo a lição de casa, Yukari com certeza estava aproveitando muito bem a sua juventude.

No entanto, a avó estava intercedendo por ela, então ela é que não ia reclamar.

—Além do mais o que você está dizendo? Que estou tão velha e acabada que sequer dou mais conta de cuidar da casa de banhos?

—Não foi o que eu quis dizer mamãe...

—Eu ainda dou conta da casa de banho sabia? Cuidei dela sozinha quando papai caiu de cama e meu marido quebrou a perna, e tudo com o teu marido, meu filho, amarrado às costas!

—Desculpe mamãe, não foi minha intenção... — sua mãe começou a desculpar-se.

—Eu ainda tenho capacidade de cuidar da recepção. — sua avó insistiu empertigando-se toda — Principalmente num horário que sequer há clientela!

E abriu os braços para dar mais ênfase ao seu comentário, no exato momento em que uma mulher de talvez quarenta anos ou mais saia do banho feminino trazendo pela mão uma criança pequena que podia tanto ser sua filha quanto sua neta.

No momento em que a viram as três mulheres Shibuya curvaram-se respeitosamente, agradecendo pela preferência e a mulher curvou-se de volta, pressionando com a mão a cabeça da criança para obrigá-la a fazer o mesmo.

—Além do mais estamos quase fechando. — a avó continuou do ponto em que havia parado depois que a mulher e a criança se foram.

—Muito bem, ela pode ir. — sua mãe cedeu por fim, no entanto, antes que Yukari pudesse se retirar de uma vez dali ela acrescentou — Mas vai ter que cuidar do banho masculino depois que fechar.

Yukari fez uma careta, mas sabia que não conseguiria um acordo melhor do que aquele, então saiu sem dizer mais nada.

Eram 17h15min quando Yukari saiu e deixou a avó em seu lugar, a casa de banhos fechava às 21h30min, às 22h Yukari retornou para cuidar do banho masculino, já então vestida em estilo jinbei e calçando um par de sandálias antiderrapantes.

Durante as épocas mais movimentadas os Shibuya costumavam ter outros funcionários para ajudar ali, mas nas épocas de pouca clientela era apenas a família a cuidar do local.

Cuidar dos banhos consistia em limpar os vestiários, se certificar de que nada havia sido esquecido e caso houvesse sido deixar nos achados e perdidos, tirar o dinheiro conseguido durante o dia das máquinas de venda de produtos de banho e reabastecê-las com o que fosse necessário, e depois esvaziar e limpar todas as banheiras, além de secar toda a área de banho.

Era um trabalho do cão que certamente estando sozinha ela só terminaria de madrugada.

Naquela noite, no entanto, quando Yukari entrou no vestiário masculino, sem qualquer pudor — afinal supostamente já não havia mais ninguém ali, e ela praticamente fora criada nos banho então já estava mais do que acostumada — ela logo avistou algo sobre um dos bancos de frente aos armários destinados a guardar os pertences pessoais dos convidados.

Ao se aproximar viu que era um quimono azul.

Estranhou, afinal como alguém pudera ter ido para casa sem as roupas? E não era apenas isso: tombadas no chão, próximas aos seus pés, estavam duas desgastadas e já inutilizadas sandálias de palha.

Estranhando ainda mais tudo aquilo, Yukari deixou o quimono de lado e aproximou-se do banho em si, estava prestes a perguntar se ainda havia alguém ali quando seu pé chutou algo que saiu rolando banho adentro.

Lá dentro o banho estava surpreendentemente enevoado, duas ou talvez até três vezes mais cheio de vapor do que o normal, ao ponto que Yukari quase não conseguia enxergar o que estava bem diante de si, mas conseguiu ver no chão o objeto que chutara há pouco.

Ao principio achou que fosse um cesto de palha — mas o que um cesto estaria fazendo ali? —, mas quando o pegou percebeu ser um chapéu.

Um enorme chapéu de palha.

De alguma forma assustada e por alguma razão com o coração acelerado Yukari segurou o enorme chapéu contra si e passou a olhar para todos os lados procurando pelo forasteiro dono daquele chapéu.

Ele estava ali?

Mas por que ficara até àquela hora?

Onde ele estava?

Caminhando as cegas em meio a todo aquele vapor Yukari chegou a uma das banheiras e surpreendeu-se ao ver ali, inclinado sobre a borda com a cabeça deitada sobre os braços cruzados, como que adormecido, alguém que nunca vira antes, certamente o tal forasteiro.

Mas, diferente do que vira na rua, seus cabelos não eram escuros, eram claros, prateados, e o rosto... Pelos deuses o rosto dele, ainda que adormecido, era tão belo que Yukari esqueceu até mesmo de respirar.

Atrás dele, flutuando na água havia algo branco e felpudo que por um segundo ela confundiu com uma toalha, mas então deu-se conta de que aquilo não era uma toalha, era uma calda, e pior que isso, no topo da cabeça do homem estava duas brancas e felpudas orelhas animais.

Ao ver aquilo Yukari fez um som indefinido, que pode ter sido uma exclamação ou um arfar surpreso, ou mesmo um engasgar, ou tudo ao mesmo tempo, e esse som fez as orelhas no topo da cabeça do homem mover-se.

Yukari afastou-se um passo para trás enquanto lentamente o homem erguia a cabeça e abria os olhos.

Seus olhos eram cinzentos como nuvens de tempestade.

Em silêncio, e muito calmamente, o homem a observou, as orelhas moveram-se mais uma vez, a cauda balançou-se lentamente na água.

E Yukari sentiu a cabeça girar.

Muitas pessoas podiam sentir-se tontas, e até desmaiarem, quando visitavam as termas ou mesmo as casas de banho, por causa das altas temperaturas e de todo o vapor, mas tendo Yukari nascido e crescido entre termas e casas de banho ela já estava mais do que acostumada com aquilo.

E ainda assim sentiu que os olhos lhe giravam nas órbitas e os joelhos fraquejavam.

A sua frente havia um homem raposa, e de repente tudo era escuridão.

“... Um dia a raposa escapará do lacre... E se vingará por todos os seus anos de aprisionamento... Devorando todas as belas jovens que encontrar!”

 

 

 


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Notas finais do capítulo

Curiosidades japonesas:

Na verdade os japoneses gostam de visitar as fontes termais mesmo durante o verão, mas eu queria colocar um período de estagnação da cidade.



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