A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 28
27: Elo prateado.


Notas iniciais do capítulo

Olá!
Eu estava muito ansiosa para postar logo esse capítulo!
Para mim é um dos capítulos mais emocionantes da história e aquele que eu mais estava querendo escrever desde... desde que idealizei a história na verdade kkkkk
Então espero que gostem! ♥

GLOSSÁRIO:

Butsudan: um pequeno santuário budista que os japoneses possuem em sua casa.

Era Heisei: período correspondentes de 8 de janeiro de 1989 até 30 de abril de 2019.

Era Showa: período correspondente de 25 de dezembro de 1926 até 7 de janeiro de 1989. 

Uchikake: Quimono altamente formal usado atualmente somente por noivas ou em performances de palco. Frequentemente muito brocado ele é usado sobre o quimono em si, como uma espécie de casaco longo.



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Dormindo placidamente em meio à infinita escuridão, aquela dama de madeixas prateadas deixava escapar a ponta de uma cauda por debaixo de seu uchikake, enquanto uma de suas mãos segurava carinhosamente uma fita prateada e murmurava algo para si mesma.

Um nome.

Naquele lugar tudo era quietude e escuridão infinita, e aquela imagem parecia capaz de durar por toda a eternidade… se aquele mundo não estivesse prestes a colapsar.

*.*.*.*

Lidar com deuses eram, em geral, assuntos complicados que Gintsune preferiria evitar, e agora com o Binbougami simplesmente passeando por aquelas terras… sentado com os braços cruzados na janela do quarto de Yukari, Gintsune olhava a lua enquanto pensava na possibilidade de afastar-se dali por um tempo, talvez alguns meses.

—Yo Yukari. — cumprimentou começando a se virar quando ouviu a porta se abrindo — Eu estava aqui pensando e talvez…

Interrompeu-se surpreso quando Yukari repentinamente investiu contra ele, praticamente dando uma cabeçada em seu peito, o primeiro pensamento que lhe ocorreu foi que ela queria empurrá-lo pela janela, mas logo depois se deu conta dos braços que o cercavam e, abismado, percebeu que se tratava de um abraço.

O que era isso? Ela havia sido possuída? Ou um tanuki tomara o seu lugar?! Não, Gintsune passava tanto tempo junto a ela, ou simplesmente no quarto dela, que sua energia sobrenatural já a cercava de tal forma que qualquer um com o mínimo de racionalidade concluiria, no mínimo, que ela já era sua “presa” e manteria distância… se bem que a maior parte da escória que ainda conseguia habitar o mundo humano não possuía racionalidade nenhuma e toda aquela energia podia até acabar atraindo-os, mas ainda assim ele saberia se qualquer coisa do tipo tivesse acontecido.

—Oi, o que foi? — perguntou sorrindo, pousando a mão vagarosamente no topo de sua cabeça enquanto ajeitava-se melhor na janela.

—Eu não sei o que fez, mas obrigada. — ela respondeu com a voz abafada, apertando-o um pouco mais antes de relaxar os braços novamente e afastar-se. — Minha avó pediu para te devolver isso, ela não tem certeza, mas tem a nítida impressão de que esteve sonhando contigo ou que, no mínimo, o viu antes de cair.

Ela lhe estendeu a presilha de cabelo que ele, tão solicitamente, havia deixado em posse de Tsubaki naquela manhã.

Na verdade ele não havia presenciado a queda, mas o Zashiki Warashi sim, pois ainda enquanto Gintsune assistia aos humanos colocando Tsubaki na ambulância, preparando-a para ser levada ao hospital, ele também avistou o pequenino sentado nas escadas encarando suas próprias mãos, provavelmente havia tentado ampará-la, mas com aquele corpinho incorpóreo é óbvio que isso seria impossível.

—Tudo bem, eu só… mas o que é isso na sua cara?! — assustou-se.

—É a máscara facial que você me deu no festival de verão. Já que estava aqui, é melhor usá-la. — respondeu calmamente, dando de ombros — Eu a encontrei enquanto desfazia as malas, tinha levado-a para a viagem porque achei que talvez eu e as meninas pudéssemos ter uma “noite de meninas” ou algo assim, bobagem é claro.

Explicou indo sentar-se na cama.

Gintsune levantou-se e foi sentar-se ao seu lado.

—Se quiser eu posso ter uma “noite das meninas” com você. — ofereceu-se.

—Hã?!

—Vamos, vai ser divertido. — incentivou-a, apoiando os cotovelos sobre os joelhos e repousando o rosto entre as mãos — Posso ser Shiori se isso te deixar mais confortável, eu também quero usar um pouco dessa máscara, e aí fazemos manicure, e quem sabe eu não te conto sobre a minha noite com…

—Pode parar por aí, você não precisa virar mulher e eu não preciso, de jeito nenhum, saber de nada disso. — Yukari interrompeu-o erguendo as mãos, Gintsune suspirou e já começava a se levantar quando ela continuou: — mas… eu posso pentear seu cabelo?

—Ok. — ele sorriu de lado — Mas nem pense em fazer-me tranças.

As aulas só retornariam na segunda-feira, mas Kaoru-chan chegou à pousada perto do anoitecer no domingo, e estava tão afobada que Gintsune quase teve a impressão que ela pedira para que o ônibus da excursão parasse para que ela descesse ali mesmo, mas ela não estava trazendo suas malas então provavelmente havia parado em casa antes.

—Yuki, como pôde vir embora sem falar nada?! — ela pegou as mãos de Yukari entre as suas — Eu também fiquei muito preocupada com a tia Tsubaki quando professor Haruna nos disse o que aconteceu!

É verdade, como será que Haruna explicou o fato de uma aluna ter sumido no meio da madrugada? Gintsune passou a mão pelo queixo com ar pensativo, mas logo depois deu de ombros, ele com certeza tinha dado o jeito dele, e isso não tinha nada haver consigo, assim como as tentativas de Yukari para acalmar e desculpar-se com a prima.

De qualquer forma não gostava de se envolver nos problemas dos outros; certo, gostava de causá-los vez ou outra, mas isso era um assunto totalmente diferente.

Mas foi uma pena quando aquela lavanderia pública, que ele tanto gostava de visitar para dormir sobre as máquinas, repentinamente precisou fechar as portas por tempo indeterminado porque quatro das cinco máquinas de lavar roupa, duas secadoras, três cadeiras de massagem e uma máquina de lavar tênis simplesmente quebraram, e ficou chocado ao sabe sobre o incêndio que destruíra parte da cozinha do restaurante da família de Eisuke-kun.

E também um estúdio de fotografia foi inundado quando um cano estourou e vários equipamentos se perderam, e uma pessoa perdera a vida naquele acidente ocorrido quando uma cratera se abrira na estrada, e houve aquele blackout que deixou boa parte da cidade — incluindo a área onde estava localizada a pousada Shibuya — sem energia durante toda uma madrugada, tudo em apenas uns poucos dias numa cidade onde, mesmo durante as épocas de maior movimento de turistas, quase nada nunca acontecia, o Binbougami realmente não estava para brincadeiras!

E ainda assim como os humanos poderiam permanecer tão ignorantes?!

—Por que iríamos adiar o festival do Dia Esportivo? — Yukari perguntou com o cenho franzido, para o quase completo desespero de Gintsune, quando voltava da escola.

Ainda assim ele esforçou-se ao máximo para manter a compostura:

—Por nada demais… Foi apenas algo que me ocorreu.

Deu de ombros e fingiu não notar seus olhos semicerrados de desconfiança.

—Deu no jornal que ontem a noite uma loja de bebidas local foi assaltada. — Yukari comentou.

—Oh, é mesmo? — comentou despreocupado, enquanto olhava a volta.

Ter a calamidade em pessoa perambulando pela região era muito mais perigoso do que meras tempestades, então é claro que não dava simplesmente para deixá-la sozinha, mas dessa vez, apenas por questão de conveniência, ele foi buscá-la em forma de criança — e Yukari, por alguma razão, tivera o instinto de imediatamente segurar-lhe a mão quando começaram a caminhar, Gintsune nem sequer sabia dizer se ela havia se dado conta.

—Parece que mais de ¥ 30.000,00 em saquê simplesmente desapareceu, mas não há pista alguma: nenhuma porta foi forçada e tampouco as câmeras de segurança registraram alguma coisa. — ela prosseguiu.

—Realmente têm acontecido umas coisas bastante estranhas na cidade ultimamente. — desconversou tomando seu picolé inocentemente, ele havia se oferecido para comprar um a ela também, mas aquela garota não confiava nem um pouquinho na procedência de seu dinheiro… com razão. — E como está Tsubaki?

Gintsune não havia voltado ao hospital desde aquele dia, pois o lugar era um verdadeiro antro.

—Terrivelmente enfadada, vai receber alta depois de amanhã, mas mamãe disse que ela não vê a hora de voltar para casa e está deixando todos no hospital tão loucos que eles com certeza também mal podem esperar o dia em que ela terá alta.

Agora que Tsubaki estava fora de perigo, o pai de Yukari simplesmente havia voltado a sua rotina usual de trabalho sem fim, e Yukari tinha escola para ir, de forma que restou à mãe dela visitar a senhora diariamente no hospital, Gintsune gargalhou.

—Tsubaki certamente é uma mulher vivaz!

—Será que pode ser um pouco mais discreto? — Yukari o censurou quando uma mulher passou andando ao lado deles os olhando de cara feia — É falta de educação falar e rir alto desse jeito! — Ele respondeu aquilo lhe mostrando a língua, ato ao qual ela recebeu com um revirar de olhos. — Acho que tenho pena de sua mãe, sabia?

—Que ultraje! Eu fui um filhote muito amável, sabia? — ergueu o queixo orgulhosamente, enquanto terminava seu picolé — E se algum dia eu tivesse me comportando assim com minha linda mãe, meu velho se certificaria de que eu não tivesse mais uma língua depois.

—Gintsune. — chamou-o parando de caminhar.

—Sim?

Yukari franziu o cenho.

—Que garrafas de saquê são aquelas na escada para a pousada?

Porém quando olhou para o lado percebeu estar sozinha, exceto por um palito de picolé deixado no chão, e que sua mão segurava apenas o ar.

Mas é claro que isso obviamente não o livrou do sermão mais tarde…

—Já é ruim o bastante que você cause pequenos prejuízos e roubos aonde quer que pise, mas ¥30.000,00 em saquê?! Gintsune você está passando dos limites!

Yukari não parava de reclamar enquanto eles limpavam as casas de banhos — Gintsune tinha quase certeza que ela havia dispensando o pai afirmando que “ser capaz de terminar o resto sozinha” apenas para ter mais liberdade de ralhar com ele o quanto quisesse — e, suspirando longamente, comentou já cansado daquela reclamação toda:

—Sabe Yukari, alguns males são necessários por um bem maior…

Yukari franziu o cenho.

—Que “bem maior”?

Gintsune calou-se, quanto mais ou humanos envolviam-se com o sobrenatural mais eles tendiam a atraí-lo, e um envolvimento com o Binbougami, por mais mínimo que fosse, jamais seria uma boa idéia.

—Gintsune? — Yukari chamou-o, já desconfiada daquele silêncio tão suspeito prolongando-se — O que você…?

—Ouça Yukari, acha que seus pais já estão dormindo a essa hora? — interrompeu-a.

—Não sei. — ela franziu o cenho — Por quê?

Exibindo um sorriso maroto, Gintsune apoiou o queixo sobre as mãos sobrepostas no topo do cabo do esfregão.

—Eu acabo de ter uma idéia bastante divertida!

Eles entraram pela porta da frente, as luzes permaneciam acesas, mas tudo estava completamente silencioso — exceto pelo ressoar dos humanos adormecidos no andar de cima, mas que somente Gintsune era capaz de ouvir — então, como se estivesse em sua própria casa, ele a pegou pela mão e a guiou para onde queria.

—Tenho certeza de que não deveríamos estar aqui. — Yukari ofegou baixinho, soltando-se e segurando-o pela camisa, puxando-o para trás.

Ele a olhou por cima do ombro e piscou.

—Então é melhor agirmos rápidos para não sermos pegos, não concorda? — dizendo isso empurrou a porta para o lado e entrou.

—Não! — ela chiou desesperada batendo o pé do lado de fora — Não deveríamos nem sequer entrar aí…!

Interrompeu-se com um gritinho agudo de surpresa quando Gintsune simplesmente esticou o braço e a puxou para dentro com um solavanco, fazendo-a chocar-se contra seu peitoral.

—Pronto, agora já somos cúmplices. — ele riu mantendo-a grudada a si com um braço firmemente em volta de sua cintura enquanto com a outra mão fechava a porta.

 

 

Yukari sentiu imediatamente o coração bater na garganta e, franzindo o cenho com aquela reação, socou Gintsune com ambos os punhos e afastou-se irritada dele.

—Você é um descarado! — acusou-o.

—Ora, é o seu coração que estou ouvindo acelerar aí Yukari? — ele provocou-a sorrindo irritante.

—Claro que sim. — respondeu levando a mão ao peito tentando acalmar-se — Estou muito nervosa aqui! Afinal o que viemos fazer no quarto de vovó?

Seu coração acelerava só de estar nervosa com uma coisa pequena dessas? Gintsune suspirou afastando-se, que garota tão certinha e entediante…

Achou melhor não acender as luzes, então abriu as mãos e fez surgir ali duas bolas de fogo azul, que deixou flutuarem iluminando o ambiente de forma tênue.

—Você não disse mais cedo que Tsubaki está bastante enfadada no hospital, não é? Então pensei em algo que poderia animá-la um pouco…

Respondeu abrindo o guarda roupa com uma das bolas de fogo flutuando próxima ao seu ombro.

—Espere! — Yukari correu para o seu lado acompanhada pela outra bola de fogo — Vamos mexer nas coisas da minha avó?!

—Não é nada demais… — flutuou uns poucos centímetros acima do chão, para ver melhor a prateleira de cima, onde Tsubaki guardava o futon, como ela conseguia alcançar aquilo todas as noites sendo tão miúda? — Só quero vasculhar algumas coisas.

—Isso só faz soar ainda pior! — ela arregalou os olhos — Você colocou um daqueles seus truques aqui, pelo menos? Como o do meu quarto, para que ninguém venha ou ouça nada…

—Não, claro que não. — negou… não parecia estar por ali… — Por que eu faria uma coisa dessas no quarto de Tsubaki?

—E se meus pais ouvirem algo e virem verificar?!

—Não se preocupe. — ele piscou-lhe — Eu posso sumir num piscar de olhos.

Yukari bateu o pé no chão.

—Mas eu não! — protestou.

Gintsune lançou-lhe um sorriso sabido.

—Então é melhor parar de bater o pé e ajudar-me para que possamos sair daqui mais rápido, não é?

Yukari franziu o cenho, e seu rosto começou a avermelhar-se levemente, Gintsune achou que ela voltaria a reclamar, mas a garota soltou o ar com força e afastou-se arrastando os pés.

—E o que é que estamos procurando?

—Uma caixa de madeira laqueada, é um pouco maior que uma caixa de sapatos, mas mais achatada, eu acho. — descreveu começando a abrir as gavetas para vasculhá-las — Suas dimensões aproximadas são…

—É essa aqui?

—O que? — ele virou-se e surpreendeu-se ao deparar-se com a dita caixa nas mãos de Yukari — Essa mesma. Onde estava?

—Em cima da mesa. — ela olhou-o entediada.

—Ah…! — deu um sorriso amarelo, passando a mão pela nuca.

Girando os olhos, Yukari suspirou e sentou-se no chão sobre os calcanhares, apoiando a caixa sobre as coxas.

—E então, o que é que tem aqui, que você acha tanto assim que pode animar a vovó?

—Essa é uma boa pergunta, mas acho que é melhor mostrar-lhe do que falar…

De repente Gintsune já estava ao seu lado, ele levou uma mão à tampa da caixa…

—Esp…! — Yukari tentou protestar.

E abriu-a.

Ali dentro havia duas pilhas quase idêntica: a primeira eram papéis de cartas, cuidadosamente dobradas e, em grande parte, amareladas pelo tempo, ao seu lado estava uma pilha de fotos igualmente desgastadas. Ambas cuidadosamente amarradas por desbotadas fitas lilases.

—Parece que Tsun-tsun manteve contato com seu irmão durante todo esse tempo. — Gintsune comentou pegando a pilha de cartas.

As bolas de fogo azul os rodeavam, flutuando laconicamente ao redor dos dois, a esposa do tengu teria praticamente tido um ataque cardíaco se visse as chamas de Gintsune tão próximas a papéis tão importantes, ainda que ele já tivesse lhe explicado mil vezes que elas não queimavam nada que ele não quisesse, mas Yukari não dava a mínima atenção a elas.

—Do que foi que você a chamou?

Ela perguntou semicerrando os olhos, mas Gintsune fingiu que nem a ouviu enquanto desfazia cuidadosamente o laço que mantinha as cartas unidas…

 

Setembro, 20. 1965.

40° ano da Era Shouwa.

Minha querida irmãzinha Tsun-tsun;

Você não respondeu a nenhuma das minhas três cartas anteriores.

Então só posso supor que nosso pai e nosso irmão andam a confiscá-las, por isso restou-me apenas endereçar essa carta à casa de Kimiko-chan, rezo para que dessa vez dê certo, e peça desculpas a Kimiko-chan pelo incômodo…

 

A carta tinha algumas pequenas manchas borradas aqui e ali, Tsubaki provavelmente chorara enquanto a lia, e pela aparência bastante desgastada das dezenas de papéis, era óbvio que Tsubaki as lera e relera um sem número de vezes… Gintsune seguiu folheando-as.

Todas as cartas pareciam começar com “Minha querida irmãzinha Tsun-tsun” e terminavam com “de seu irmão, Tatsuki, que te ama demais”…

 

Janeiro, 13.

41° ano da Era Showa.

Minha querida irmãzinha Tsun-tsun;

Peço que não me envie mais cartas ao endereço anterior, pois no momento em que estiver com essa carta em suas mãos, já terei embarcado no navio rumo a um novo mundo na América, enviar-lhe-ei uma carta com meu novo endereço assim que estiver estabelecido no novo mundo…

 

 Agosto, 01.

41° ano da Era Showa.

Minha querida irmãzinha Tsun-tsun;

Ainda não possuo um endereço fixo, mas se quiser pode enviar as cartas para esse endereço, que é de um querido amigo que conheci…

 

E as cartas seguiam-se umas após a outra, conforme se passavam os meses e anos, citando coisas como “… sinto falta da barulheira das cigarras no verão…”, “… aqui é verão durante o natal e o inverno é em junho…”, “… aluguei o quarto acima da carpintaria onde trabalho, Maria, a filha do senhorio, está tentando ensinar-me a ler e escrever…”, aquela Maria, começava a ser mencionada cada vez mais nas cartas, Gintsune mal precisava passar os olhos por alguma para localizar seu nome ali, pelo menos três vezes:

“… estou começando a entender melhor o português, Maria disse-me…”.

“… sua preocupação por Maria comoveu-me, mas foi apenas uma febre e agora ela já está de volta…”.

“… o pai de Maria despejou-me, e agora também estou sem emprego, ele não quer sua filha “enrabichada com um chino”, estou agora a morar com meu amigo…”.

“… uma moça de coragem, nós estamos apaixonados, mas não sei que futuro eu poderia…”.

“… impressionado com o quanto crescestes Tsun-tsun! Está a se tornar uma bela moça, Maria achou-a muito bela também…”.

“… os vestidos de casamento ocidentais são realmente muito bonitos, mas nossa cerimônia foi das mais simples, infelizmente o pai de Maria não quis vir e proibiu sua esposa…”.

Gintsune riu levemente ainda, ao acompanhar algumas das “adversidades” do casamento de Tatsuki:

“… saudável, Maria quis lhe dar um nome composto como é costume por aqui, mas escolheu um nome estranho e difícil de pronunciar: “Eduarda”. Não queria não saber dizer o nome de minha própria filha então a registrei como “Keiko Maria””.

“… obrigado, Tsun-tsun, mas já está tudo bem, depois de sete semanas Maria deixou-me sair do sofá…”.

A freqüência das cartas começou a diminuir gradativamente, mas Tsubaki continuou a se preocupar bastante com o irmão distante e vice-versa:

“… agradeço sua preocupação, mas não há necessidade de vir, creio que uma mudança tão brusca e ficar tão longe de…”.

“… cedo demais para noivar, sei bem como é nosso pai, mas se acaso sentir-se forçada a…”.

“… alivia-me que estejas feliz, queria ter estado presente em seu casamento, mas desconfio que mesmo se isso fosse possível, nosso pai jamais permitiria…”.

“… Daisuke é um nome forte e bom, Maria também anda falando sobre termos um segundo filho, só espero que ela não escolha outro nome difícil…”.

“… questão de ir pessoalmente ao cartório dessa vez… parece-me que nunca conseguirei pronunciar “Augusto” corretamente, então vou apenas chamá-lo por “Hideo”…”.

Havia facilmente ali mais de uma centena de cartas, e Gintsune não possuía disposição para ler todas, elas continuavam a estender-se por linhas infinitas, Tatsuki dava os pêsames a Tsubaki pela morte de seu sogro, lamentava a morte do pai, contava como o filho Hideo mandou o namorado de Keiko para a emergência após quase matá-lo — supostamente por acidente — envenenado com aveia, falava-lhe dos netos que possuíam nomes compostos, combinando nomes orientais e ocidentais ainda mais estranhos e difíceis de falar, porque Keiko herdara a mesma tendência da mãe, e que pareciam não gostar quando Tatsuki os chamava pelos nomes japoneses, exceto pela neta, cuja idade era muito próxima a de Yukarri e que preferia o nome japonês, e cujo nome ocidental era tão estranho que ele sequer sabia como escrever, Tsubaki também havia enviado fotos ao irmão, pois numa das cartas ele mencionava ter ficado “estupefato com a semelhança que sua neta tem contigo”, e seguia dizendo que quase nãos as conseguiu diferenciar…  uma das últimas cartas dizia:

Janeiro, 26.

30° ano da era Heisei.

Minha querida irmãzinha Tsun-tsun;

Keiko e Camilo vieram visitar-nos no último natal com as crianças, não imagina como eles estão grandes (ou talvez sim, afinal enviei-lhe as fotos), exceto Ayume, ela continua miudinha como sempre, chega a ser ainda menor do que você costumava ser a julgar por suas fotos Tsun-tsun, às vezes é difícil lembrar que ela já não é mais uma garotinha e sim uma moça de…

…perguntou-me por que continuamos a usar essas “cartas ultrapassadas”, quando a meios mais rápidos e práticos agora, imagino que estejamos ficando velhos, não é? Expliquei-lhe que uma ligação interurbana seria por demais custosa, mas ela disse-me que não havia necessidade disso, poderíamos simplesmente falar-nos por…

Gintsune fez uma careta sem conseguir decifrar o que seria a palavra difícil, pois não estava escrito em nenhum tipo de kanji que ele conhecesse, ele cutucou Yukai com o cotovelo.

—Yukari, você sabe o que diz aqui? — apontou.

Ela aproximou-se se inclinando sobre a carta.

—É Skyper. — respondeu — É um tipo de chamada de vídeo que fazemos via internet, nós usamos, para…

Foi então que Gintsune percebeu porque Yukari ainda não o repreendera durante todo aquele tempo por estar bisbilhotando: ela também estivera ocupada envolvida por sua própria curiosidade, e em volta dos dois estavam espalhadas dezenas de fotos.

Uma foto em preto e branco mostrava o Tatsuki das memórias de Tsubaki, claramente nervoso — quase rígido — ao lado de uma mulher usando uma coroa de flores na cabeça e carregando um buquê.

Outra foto mostrava a mesma mulher de antes, Maria, dessa vez carregando uma garotinha toda lambuzada de alguma coisa, e ainda mais uma foto mostrava Tatsuki vestindo apenas bermudas, agachado próximo a uma bacia onde uma menina e um bebê de talvez um ano de idade tomavam banho.

E bem ali, entre as fotos coloridas, Tatsuki, já bem mais velho, ao lado de uma moça usando um vestido longo e branco, Gintsune achou graça tentando imaginar como ele conseguira enxergar para onde estava indo com os olhos tão cheio de lágrimas do jeito que estavam.

—Uma vez vovó chegou a comentar comigo sobre os parentes que temos do outro lado do mundo, por parte do irmão dela que se foi, mas nunca falou muito a respeito deles. — Yukari comentou segurando outra das fotos coloridas numa das mãos.

Havia ali um quarteto de jovens, dois na frente e dois atrás, aqueles deviam ser os netos de Tatsuki, pois todos tinham os mesmos cabelos e olhos profundamente negros de Tsubaki e os irmãos, o rapaz mais alto e magro, atrás e a esquerda, usava óculos e tinha uma comprida franja penteada de lado trespassada por uma mecha branca, já o rapaz a sua direita era significativamente mais baixo e de ombros mais largos, com um cabelo liso até pouco acima dos ombros,  enquanto os dois garotinhos na frente, que não deviam ter mais que treze anos, eram tão idênticos  — com exceção do trio de sinais alinhados horizontalmente debaixo do olho direito que um deles possuía — que provavelmente eram gêmeos, mas… Tatsuki não havia dito que tinha uma neta da idade de Yukari?

Estranhando, Gintsune esticou a mão para pegar a foto com a intenção de vê-la mais de perto, quando Yukari repentinamente a afastou e começou a cuidadosamente reorganizar novamente todas as fotos e cartas.

—O que é isso? — ele sacou do fundo da caixa algo que não havia reparado anteriormente, pois estivera oculto sobre as cartas e fotografias: uma curiosa, fina e pequena argola dourada.

—É a aliança de casamento do vovô. — Yukari respondeu-lhe parando de arrumar as cartas e fotos.

—A “o que”? — Gintsune olhou-a desconcertado.

—Aliança de casamento. — ela repetiu apontando o dedo anelar da mão esquerda — Quando um casal se casa e troca seus votos, eles também trocam alianças, para representar o compromisso de amor, devoção e fidelidade que agora têm um com o outro. Se reparar bem meus pais usam, e a vovó também tem uma igual, e ela ainda a usa.

—Hum… — Gintsune observou o anel com um pouco mais de curiosidade. — E todos os casais fazem isso ao se casar?

—Sim.

—Desde quando? — Yukari deu de ombros sem ter uma resposta para aquilo, Gintsune devolveu o anel à caixa — Suponho que esse é outro costume adotado dos estrangeiros.

—Sim. — ela confirmou, guardando as cartas e fotos — Às vezes os homens também presenteiam as namoradas com anéis como uma prova de amor.

—Está sabendo bastante hein Yukari, será que você é, secretamente, uma romântica?

—Isso é apenas senso comum. — ela girou os olhos.

—Mas a idéia de objetos que tornam-se um elo com aqueles a quem amamos me é bastante familiar, sabe? — ele sorriu-lhe apoiando o rosto sobre a mão direita enquanto balançava alegremente o pulso esquerdo, onde sempre levava consigo o aro prateado posto.

Yukari fechou a caixa.

—Se realmente acha que rever essas memórias irá tranqüilizar vovó, então amanhã depois da escola eu as levarei para ela no hospital. — decidiu-se.

Gintsune sorriu.

—Eu tenho certeza que ela ficará muito contente quando vir.

Mas, apesar da convicção que Yukari demonstrou na noite anterior, no dia seguinte ela começou a ficar nervosa ainda no ônibus.

—Não posso fazer isso. — disse de repente — O que direi quando vovó perguntar como eu sabia a respeito da caixa?

—Diga que seu avô te contou em um sonho. — respondeu balançando as pernas despreocupadamente sentado com sua forma infantil no assento ao lado.

Ela o olhou com o cenho franzido.

—Está louco? Como acha que vou usar o nome de meu avô assim? Já nem sei mais o que falar aos meus pais.

—Aos seus pais? — estranhou parando de balançar as pernas — Do que está falando?

—Eu disse ao meu pai que voltei da excursão quando ligaram avisando sobre o acidente da vovó, mas a mamãe não ligou.

—E daí? Você nunca disse que foi a sua mãe quem…

—E agora não sei mais como evitá-los. — suspirou pendendo a cabeça para frente.

Gintsune coçou a cabeça.

—Diga que foi um vizinho que viu o incidente ou qualquer coisa assim.

—E por que um vizinho teria o número da hospedaria onde a minha turma estaria? — olhou-o ceticamente.

—Diga…

Mas antes que ele pudesse continuar ela já estava balançando a cabeça de um lado para o outro.

—Uma mentira vai puxando a outra, isso está virando uma bola de neve.

Ah céus, que garota tão problemática! Gintsune suspirou passando a mão pelos cabelos.

—Então apenas diga a verdade. — concluiu.

Suas sobrancelhas arquearam-se tanto que quase sumiram no couro cabeludo.

—A verdade?! — repetiu levemente boquiaberta. — Quer dizer, falar sobre você?

—Não estou dizendo para contar toda a verdade, não precisa dizer nada do tipo “fiquei obcecada com um fio de cabelo prateado belíssimo que encontrei por acaso certa vez, e agora tem uma raposa morando no meu quarto”. — girou os olhos — Só diga o básico que Tsubaki já sabe sobre mim e, a propósito, ela certamente já desconfia do meu envolvimento, e diga que te avisei, mas não precisa dizer como.

A melhor mentira era aquela que continha a verdade em parte, afinal.

Porém, ainda sem parecer totalmente convencida daquilo, Yukari o olhou hesitante… e então franziu o cenho.

—Já tem alguns dias que estou reparando nisso, mas porque agora sempre que sai você usa apenas…

—Aquele quimono já estava muito velho, tinha quase cento e trinta anos, eu tive que por fogo nele! — respondeu evasivamente.

De jeito nenhum poderia dizer havia ateado fogo nas roupas porque fora tocado pelo Binbougami.

—Você o que?!

Mas Yukari pareceu tão surpresa que Gintsune sorriu hesitante.

—Não… era sobre isso que você iria perguntar?

—Não, eu queria perguntar sobre a sua constante forma infantil, mas esqueça! E quanto às sandálias de meu pai?!

Ops.

—Oh, sabe… elas também já estavam bastante gastas. — olhou-a o mais inocentemente que conseguiu, fazendo uso máximo de sua aparência infantil…

...mas o olhar de fúria que Yukari lançou-lhe poderia fazer até o mais bravo dos youkais fugir apavorado com a cauda entre as patas.

Oh bem, pelo menos ela se distraiu do que falaria ou não para a família.

Gintsune não tinha interesse algum em adentrar aquele antro e ficar cercado por toda aquela escória, então disse a Yukari que a esperaria ali fora enquanto ela visitava a avó, assim, após ter abandonado o plano físico, ele estava sentado em frente ao hospital quando ouviu um estrondo alto seguido pelo alarme estridente de um carro e quando virou-se para ver o que havia acontecido arrependeu-se imediatamente de tê-lo feito: o galho de uma árvore caíra sobre o capô de um carro, amassando-o e, observando o incidente bem de perto, estava o Bingougami.

Praguejando, Gintsune virou-lhe as costas rapidamente quando o deus da miséria ergueu os olhos, talvez ele não o tivesse visto.

Deveria escapar dali? Isso seria o mais sensato, Yukari talvez se zangasse, mas…

—Ora, se não é a raposa daquele dia. — Gintsune estremeceu ao ouvir às suas costas a risada com som de papel sendo amassado — Eu estava justamente procurando-o, que sorte a minha, não acha?

A sorte do deus, e a desgraça da raposa.

Engolindo em seco Gintsune guardou o kiseru dentro da manga e virou-se lentamente.

—Procurava… por mim?

Ao menos dessa vez o deus da miséria estava contra o vento, poupando em parte Gintsune de seu odor pungente.

—Sim claro. — o deus da miséria o brindou com um sorriso desdentado enquanto abanava-se lentamente com um leque encardido — É você quem tem deixado garrafas de bebida espalhadas por toda a cidade, não é? Afinal se “o Binbougami se embriaga, seus danos são menores”! — Ele riu novamente aquela sua risada de papel amassado. — E era uma bebida de boa qualidade, de fato, mas não costumam fazer-me oferendas então queria agradecer-lhe.

—Não… não há o que agradecer. — Gintsune olhou nervosamente para o hospital, o Binbougami não estava planejando entrar ali, estava? Ele não duvidava nada que à menor aproximação do deus o prédio seria interditado de quarentena, com a descoberta de um vírus mortal propagado pelo ar…

—Não, não, quero agradecer-lhe devidamente. — o deus da miséria insistiu, sem perceber o olhar da raposa — O que acha de eu fazer-te um favor?

Relutante Gintsune afastou seu olhar do hospital para encarar novamente a face da miséria.

—Um favor?

—Sou o deus da miséria, mas eu não só a espalho por aí, sabe? — o deus coçou o queixo com barba por fazer — Também tomo muito facilmente conhecimento da miséria dos outros… e ouvi dizer por aí que fostes invocado a esse mundo de forma misteriosa, e agora está preso aqui?

—Sim… — respondeu hesitante.

—Uma invocação nos dias de hoje, que coisa tão rara! Mas felizmente parece que não houve maiores conseqüências. — riu o Bingougami — Mas diga-me, a alguém o esperando naquele outro mundo? Alguém com quem se importe? Sinto em você alguma solidão.

—Sim, há.

Confirmou umedecendo os lábios, não queria envolver-se com deuses, especialmente com o deus da miséria, e tampouco queria envolver aqueles ao seu redor com ele, mas simplesmente não sabia como desvencilhar-se sem parecer grosseiro e correr o risco de ser amaldiçoado.

—Pois bem. — Binbougami bateu o leque encardido na palma da mão — se quiser posso levá-lo para casa.

Por dez segundos inteiros a mente de Gintsune ficou em branco e ele olhou sem reação para aquele deus maltrapilho à sua frente.

—Realmente… pode? — balbuciou.

—É claro. — Binbougami riu — Independente de quão maltrapilho eu seja, sigo sendo um deus, e nós estamos entre os poucos que ainda conseguem transitar livremente entre os mundos, levá-lo de volta seria fácil. — prometeu estendendo-lhe a mão semitransparente, mas quando Gintsune encarou-a hesitante sem se mover por longos segundos, o deus recolheu-a lentamente com um sorriso compreensível — Mas independente da oferta, é sempre difícil aceitá-la de imediato quando ela parte da encarnação da miséria, não é? Porque não reflete por um tempo a respeito? Ah, mas cuidado, não pense por tempo demais, nunca é bom quando o Binbougami se prolonga por muito tempo numa mesma região, por isso pense que só permanecerei por aqui por mais uns doze dias.

Gintsune anuiu lentamente.

—Sim, obrigado, eu vou pensar. — prometeu.

—Ótimo. — Binbougami aprovou, mostrando-lhe um sorriso desdentado.

E assim o deus da miséria começou a afastar-se, arrastando os pés lentamente na direção contrária ao hospital.

Uma chance de voltar para casa e rever seus amigos, Gintsune suspirou olhando para o céu, e então olhou novamente para o hospital… e abandonar aquele mundo para sempre.

No fim Yukari acabou realmente contando à avó a história de que sonhara com o avô contando-lhe sobre aquela caixa, e enquanto a senhora cercada das cartas e fotos tornou-se finalmente bastante tranquila em suas últimas vinte horas de internação — para o alívio de seus médicos e enfermeiras — pedindo apenas por papel e caneta para começar a escrever uma nova carta que queria enviar assim que recebesse alta, a neta, ao chegar em casa, foi direto ao butsudan da família acender um incenso diante da foto do avô e rezar, provavelmente pedindo perdão.

Gintsune teria rido e provocado-a dizendo-lhe para não se esquecer de fechar bem as portas do butsudan ou o nuribotoke viria puxar suas tranças à noite… se não estivesse ocupado pensando em coisas mais importantes.

Ele havia passado as últimas décadas quase que inteiramente apenas desejando uma chance de retornar ao mundo humano para divertir-se, e agora ali estava ele, é claro que nunca havia pensado, e tampouco planejado, ficar para sempre, mas agora que à hora de voltar se aproximava, ela parecia ter chegado rápido demais e Gintsune tinha a impressão de não ter visto absolutamente nada desse novo mundo! E o pior: podia nunca mais ter outra chance de vê-lo, e mesmo se tivesse certamente não seria mais numa época na qual Yukari ainda vivesse.

Não que ele fosse sentir tanta falta dela quanto ela certamente sentiria dele… mas Gintsune era simplesmente uma criatura assim: que sempre colocava o outro acima de si mesmo.

E por isso não conseguia deixar de pensar naquela família.  O tengu fora criado num regimento violento e certamente era um guerreiro capaz de cortar algumas centenas de cabeças se provocado, mas toda a placidez trazida à sua vida por Gintsune o havia feito relaxar e descuidar-se, chegado ao ponto em que ele simplesmente deixava sua esposa humana sozinha naquele ninho de bestas com a total certeza de que nada se passaria com ela enquanto ele subia à montanha com os filhotes, mas agora que Gintsune já não estava lá por eles, quanto tempo essa calmaria poderia durar? Será que já estava prestes a romper-se? Ou já se rompera há muito tempo?

E quando o fim estivesse próximo, eles o notariam chegando e teriam alguma chance de preparar-se ou fugirem? Ou só se dariam conta quando a chuva carmesim jorrasse sobre suas cabeças? Se ao menos ele pudesse ter alguma notícia deles, para ter certeza de que estavam bem… mas ainda assim por que tinha que voltar justamente agora?!

Por que Gintsune não havia aproveitado mais o tempo em que esteve naquele mundo? Ele não havia visto praticamente nada ainda! Devia ter viajado mais quando tivera a chance…! Mas não, de alguma forma acabou preso àquela cidade e, mesmo nas poucas ocasiões em que saiu, sempre acabou retornando para lá, e agora que o tempo simplesmente escorria-lhe por entre os dedos, ele não podia também dar-se ao luxo de sair voando e tentar ver de uma única vez tudo o que ainda não vira, pois nada lhe garantia que o Binbougami ainda o estaria esperando quando regressasse.

E este era outro dilema que estava dando-lhe nos nervos: talvez nunca mais conseguisse uma chance como aquela para retornar ao seu mundo, mas ainda assim, qual poderiam ser as conseqüências de voluntariamente se por a seguir os passos da miséria encarnada?!

É claro que Yukari se deu conta de que havia qualquer coisa de diferente com Gintsune, pois desde que o reencontrara ao sair do hospital ele andava distante e pensativo e, o mais estranho de tudo, calado.

Mas quando ela afinal perguntou-lhe se havia alguma coisa errada, ele limitou-se a dizer que precisava sair para fumar um pouco e pulou a janela de seu quarto, sumindo noite adentro, depois disso Yukari não voltou a vê-lo pelo resto da noite e nem no dia seguinte, mas ela também tinha seus próprios assuntos com os quais lidar:

Hoje era finalmente o dia em que sua avó receberia alta no hospital!

Naquele ano ela não estaria participando em nenhuma das modalidades esportivas do futebol, de forma que não havia treinos após as aulas para ela, sempre que voltava para casa, Yukari limitava-se a trocar de roupa e ir trabalhar, mas naquele dia ela deu-se ao luxo de fazer um pequeno desvio para ir ver a avó, indo inclusive até seu quarto, mas deparou-se com a casa completamente vazia e, confusa, foi até o jardim da pousada procurá-la, porém ali só havia um pequeno punhado de hóspedes que olharam-na confusos e quase não ocorreu-lhe de cumprimentá-los curvando-se respeitosamente antes de correr para dentro da pousada, chamando pela avó.

Se seu pai descobrisse que ela estivera a correr dentro da pousada novamente, ela certamente estaria em problemas — e ele já não andava muito satisfeito com ela por ser mais do que óbvio que Yukari andava a esconder-lhe coisas.

—Vovó! — arfou espantada, quando finalmente encontrou-a atendendo na recepção da pousada — A senhora não deveria trabalhar ainda, deveria estar descansando!

—Besteira, já descansei demais no hospital! — a velha senhora descartou seu comentário com o mesmo descaso que usaria para espantar um mosquito, e então suspirou pegando-lhe a mão. — Eu sinto muito por tê-la preocupado, Yuki, mas já estou bem agora. Vê?

Yukari sorriu-lhe tremulamente.

—Vovó a senhora nos deu um belo susto. — confessou.

—Eu sei Yuki, também soube que você fez um professor trazê-la de volta no meio…

—Yukari. — o pai chamou-a abrindo a porta ao ouvir aquela comoção — O que está fazendo aí? Vá trocar de roupa, seu turno começa em menos de dez minutos. — Juntando as mãos sobre as coxas Yukari inclinou a cabeça para frente, murmurando um pedido de desculpas.

Ao ouvir aquilo, a avó virou-se pronta a repreendê-lo.

—Daisuke, o que é isso?! — chiou — Diga ao menos “olá” a sua própria filha ao vê-la, antes de já sair mandando-a ir trabalhar!

Foi quando o pai reparou na presença da avó dela ali também.

—Mamãe, o que está fazendo aqui? Deveria estar descansando, onde está Chiharu?

A avó girou os olhos cruzando os braços.

—Parem de ficar me mandando ir descansar! Eu não estou com o pé na cova ainda, sabiam? E não se faça de filho preocupado agora, Daisuke, você não foi visitar-me nenhuma vez sequer no hospital desde que acordei!

O pai recuou amuado, surpreso com a repreenda repentina.

—Mãe, se eu estive com a senhora todo o momento até…

Recuando lentamente, Yukari virou-se e escapuliu dali, para ir trocar-se e dar início ao seu trabalho.

Sua avó estava de volta e perfeitamente bem de saúde, e isso era tudo o que importava!

Yukari não soube exatamente de quem partiu a idéia inicial, se do pai ou da mãe, mas foi acordado que naquela noite haveria um jantar especial para celebrar a recuperação de sua avó — e quando perguntado a ela sobre sua preferência para o cardápio, a senhora limitou-se a fazer uma única exigência: não queria nem sombra de cenouras na comida.

—Lamento, Yuki, mas mesmo que isso seja uma celebração você vai ter que se conformar com sua limonada cor-de-rosa, porque ainda vai precisar esperar mais uns quatro anos antes de poder experimentar um pouco disso aqui. — a avó gracejou enquanto era servida com uma taça de saquê pela nora.

—Mamãe, a senhora também não deveria se exceder. — o pai comentou.

—Oras, Daisuke, eu acho que sei muito bem quais são os meus limites! — a mais velha olhou-o de queixo erguido — Deixe-me ser feliz garoto!

Ver seu pai, um homem mal humorado e de temperamento forte com mais de quarenta anos, ser repreendido como um garotinho, simplesmente não tinha preço.

Yukari ainda precisava arranjar uma melhor maneira de demonstrar sua gratidão a Gintsune… de repente, como se lesse seus pensamentos, os olhos do pai voltaram em sua direção.

—Yukari, agora que estamos todos reunidos, penso que seja uma boa ocasião para falarmos novamente sobre aquela questão.

Sentindo-se estremecer, Yukari pôs-se ainda mais ereta e assistiu a avó pousar a taça de saquê na mesa.

—Que questão? — perguntou desconfiada.

—Querido, tem certeza que é uma boa idéia falar disso agora? — sua mãe tentou intervir — Mamãe acabou de sair do hospital…

—Ora Chiharu, não tente me poupar, já disse que não estou com o pé na cova ainda, sinto-me perfeitamente bem! — a avó irritou-se — O que estão escondendo de mim?!

O pai olhou-a penetrante.

—Yukari você se recusou a falar sobre o assunto para sua mãe e eu, mas será capaz de ocultar a verdade também de sua avó? — questionou fazendo Yukari se encolher involuntariamente. — Mamãe, no dia de seu acidente Yukari chegou ao hospital no meio da madrugada trazida por um professor.

—Sim, eu ouvi falar. — a avó concordou lançando um pequeno olhar à nora — Acho inclusive que deveríamos enviar uma cesta de presente a esse professor, para desculpar-nos pelo incômodo.

—O caso. — continuou o pai de Yukari cruzando os braços em tom grave — É que Yukari afirmou que foi informada do acidente quando ligaram para a pousada onde a turma dela estava hospedada, mas nem Chiharu e muito menos eu ligou. Então Yukari, quem foi que ligou?

Sem coragem de encará-lo Yukari baixou o olhos enquanto apertava os punhos. Por que isso é tão importante afinal?! Ela queria gritar. Por que seu pai precisava ser assim tão obcecado em sempre estar a par de tudo e precisar controlar tudo?

—Yukari. — ele a chamou — Estamos esperando.

Quando Yukari ergueu os olhos novamente, seu olhar encontrou-se com o da avó que, naquele momento, certamente deu-se conta de quem era aquele que ela vinha tentando tão desesperadamente ocultar dos pais, e irritada voltou-se para o filho.

—Daisuke será que dá pra deixar a menina em paz? — reclamou — Essa devia ser o meu jantar de celebração pela minha recuperação, não vou ficar aqui parada enquanto você interroga minha neta como uma delinqüente qualquer!

—Tudo o que quero é saber quem ligou para avisar, por que isso deveria ser uma coisa tão complicada assim? — ele defendeu-se.

 —Deve ter sido algum vizinho, ou a família de meu irmão, minha sobrinha Kaoru estava lá também afinal! Que importância tem? — a avó girou os olhos

Mas sem deixar-se ser convencido o pai balançou a cabeça severamente.

—Tem importância porque Yukari está deliberadamente tentando esconder isso de nós, e a notícia só chegou à casa de meu tio no dia seguinte mamãe, pois com toda correria nem ocorreu-nos avisar a eles. — e, segundo Kaoru, mesmo depois da notícia chegar ali o assunto foi estritamente proibido de ser mencionado por sua mãe, para que seus sogros, o avô e a avó de Kaoru, não ficassem abalados, e a verdade só seria dita hoje, depois que sua avó finalmente havia recebido alta — E por que um vizinho teria o número de onde minha filha estaria hospedada?

—Porque sua filha não era a única lá, essa cidade é minúscula, portanto é perfeitamente aceitável que o pai de outro aluno pode ter visto! — sua avó exaltou-se.

—Mamãe. — a mãe de Yukari chamou-a preocupada — Por favor, não se exalte, a senhora ainda…

Mas a senhora mais velha sequer deu-lhe ouvidos:

—Ora, e que diferença faz quem ligou?!

Provavelmente sentindo-se tão encurralada quanto ela no meio daquela situação, a mãe de Yukari lançou lhe um olhar suplicante como se praticamente pedisse por socorro.

Seu pai é realmente um estraga prazeres, não é Yukari?

Ela quase podia ouvir Gintsune troçar bem no fundo de sua mente, puxando o ar com força por três vezes a colegial forçou-se a falar:

—Quem ligou… — ela fez uma pausa sentindo a boca seca quando o ambiente tornou-se pesadamente silencioso e toda concentração dos presentes focou-se em si — Foi Gin… — pigarreou — San.

—Gin-san? — seu pai repetiu olhando-a intensamente — Quem é Gin-san?

—É um conhecido meu. — Yukari mexeu-se desconfortavelmente. — Ele é amigo do professor Haruna, por isso sabia o número da pousada.

—Eu não conheço nenhum Gin-san. — seu pai fungou severamente — Quem é ele? Onde vive? Quem é sua família? Quanto ganha anualmente? Quando o conheceu? Por que…?!

—Daisuke! — a avó de Yukari o repreendeu seriamente — Para que esse interrogatório? Obviamente era por isso que a menina não queria falar no assunto!

O homem olhou para a senhora com o cenho franzindo e uma expressão confusa em seu rosto quadrado, como se não compreendesse a razão do sermão.

—Só quero saber porque minha filha, que nunca sequer teve amizades com garotos, de repente está próxima o bastante de um homem que não conheço, ainda mais um homem mais velho a julgar pelo uso do honorífico “san”, a ponto de ele ligar para avisá-la sobre um assunto que diz respeito somente a nossa família. — explicou seriamente.

Yukari ocultou as mãos sob a mesa para que não a vissem tremendo.

—Gin-san não é daqui, por isso não tem família na cidade, ele apenas vem à casa de banho às vezes, isso é tudo. — conseguiu dizer — Ele sabe que sou aluna de professor Haruna, por isso achou que deveria ligar.

As palavras e desculpas simplesmente lhe saíram, e ela mal pôde acreditar nisso.

—Aí está! — sua avó estalou a língua.

—Yuki, devia ter nos dito antes. — sua mãe sorriu-lhe.

Mas o pai ainda não estava satisfeito:

—Se ele é um cliente da casa banhos, por que eu não o conheço?

—Ora, pare com isso Daisuke, como pretende conhecer quem vem e vai á casa de banhos se sempre está enfurnado naquele escritório e nunca sai de lá? — vovó Tsubaki girou os olhos impaciente — Além do mais, Gin-kun é um bom rapaz.

A mãe de Yukari olhou desconcertada para a senhora mais velha.

—Mamãe, a senhora o conhece? — afinal ela própria obviamente jamais ouvira falar de nenhum “Gin-san” entre a clientela, fosse da pousada ou unicamente das casas de banho.

—Claro que conheço, é um rapaz muito bonito, gentil e educado, apesar de que precisa de um belo corte de cabelo. — ela começou a levantar-se — Yuki ajude-me a chegar ao meu quarto, por favor? E quanto a vocês dois. — olhou o filho e a nora de cima — Vão trabalhar e deixem de perder tempo com essas baboseiras!

Assim a avó conseguiu tirá-la daquela situação sem que mais nenhuma palavra pudesse ser dita, no entanto, já no andar de cima, quando as duas pararam em frente ao quarto da mais velha, Tsubaki virou-se para a neta.

—Eu entendo se não quiser responder-me Yuki. — disse seriamente — Mas algo no que Daisuke disse realmente me deixou curiosa: como foi que você fez amizade com Gin-kun?

Yukari deu de ombros.

—Apenas aconteceu de certo dia ele chegar aqui e perguntar-me se sabia algo sobre a lenda da raposa lacrada nessa região e depois continuou voltando dia após dia.

Quando a colegial, por fim, conseguiu voltar ao seu quarto, ela sentia-se exausta e, apoiando as costas contra a porta fechada, suspirou profundamente.

—Você andou invadindo minha mente novamente? — questionou em voz alta, ainda sem erguer a cabeça — Mas não estou reclamando.

No entanto estranhou quando apenas o silêncio a recebeu, franzindo o cenho chamou pelo nome da raposa e, novamente, ficou sem respostas alguma e intrigada procurou por ele debaixo de sua cama, mas o espaço estava vazio.

Então ele ainda não havia retornado de sua “volta para fumar um pouco”?

Bocejando, Yukari deitou-se em sua cama e adormeceu, pois sabia que muito provavelmente aquela raposa viria acordá-la durante a madrugada para falar de suas coisas imorais ou tentar fazê-la beber junto com ele… mas ele não veio.

Pelo segundo dia seguido o amanhecer foi encontrar Gintsune sentado em frente à estátua da Raposa de Higanbana, fumando pensativamente.

Aquela ali era uma criatura que nunca tivera chance de retornar para onde quer que fosse, será que algum dia alguém se perguntara o que havia se passado com ela? Alguém ao menos se dera conta de sua falta? Ou ela teria simplesmente caído no esquecimento para sempre? Amaldiçoada àquela prisão perpétua… e quanto a ele próprio? Será que os amigos pensavam no que teria lhe acontecido? Algum dia haveria sequer lhe passado pela cabeça a idéia de procurá-lo?

Gintsune suspirou consigo mesmo, uma coisa era certa: ele realmente precisava devolver aquele chapéu ao seu dono.

Alongando-se, Yukari levantou-se de seu assento e começou a recolher suas coisas para ir para casa quando alguém a tocou no ombro por trás.

—Yuki. — Kaoru chamou-a. — Eu tenho atividades do clube hoje, então não podemos ir juntas para casa, mas… — hesitou — Acha que eu poderia passar o fim de semana na sua casa?

—O fim de semana? — surpreendeu-se. — Por quê?

—Eu sei, já faz um tempinho que não fazemos isso, acho que dá ultima vez ainda estávamos no primário, não é? — Kaoru riu desconcertada com sua surpresa, Yukari havia começado a trabalhar na pousada da família durante o ginásio, por isso não lhe restara mais tempo para coisas triviais como aquelas. — Mas as coisas estão um pouquinho feias lá em casa, sabe? Vovô está uma fera por termos escondido as coisas dele, e está acusando até a vovó que também não sabia de nada, vovó começou a chorar e… papai disse que ele vai se acalmar logo, mas a tia Kazume também se intrometeu… — suspirou balançando a cabeça.

Yukari engoliu em seco, Kaoru dormindo em sua casa com aquela raposa morando em seu quarto?!

—Kaoru, eu… eu sinto muito, mas… mas é que assim tão em cima da hora… — começou a balbuciar. — Você… você entende?

—Claro Yuki, não se preocupe. — o sorriso de Kaoru fraquejou — Foi bobagem minha, apenas uma coisa aleatório que me passou pela cabeça, eu que deveria desculpar-me por pedir-te algo assim tão repentinamente… além do mais é temporada de turismo, vocês devem estar muito ocupados, não é?

—Sim…

Se realmente quisesse Yukari tinha certeza que a avó lhe apoiaria, mas aquela raposa cretina havia declarado seu quarto como território dele e ela não sabia, e nem queria, saber o que poderia acontecer se outro ser humano entrasse ali… será que isso ao menos era possível ou a passagem seria simplesmente barrada?

Aproximando-se por trás, a representante bateu no braço de Kaoru.

—Yo, Hongo, porque não pergunta para Nishiwake?

—Aoi-chan? — Kaoru virou-se. — Mas não quero incomodar.

—Tenho certeza de que não será incômodo algum, você precisava ver como a mãe dela estava feliz quando fui dormir lá depois do festival de verão, acho que é porque Nishiwake não interage facilmente com as pessoas. — garantiu sorrindo, e passou o braço em torno dos ombros da garota mais baixa. — Além do mais, tenho certeza que Nishiwake não é uma pessoa capaz de dizer não.

Kaoru e Yukari arregalaram os olhos.

—Representante, eu não quero me impor assim! — Kaoru ofegou.

—Do que está falando Hongo? Já disse que a mãe da Nishiwake ficou felicíssima com a minha visita, quase não me deixou ir embora, ela também ficará com a sua! E quem sabe não queira até te adotar? — a representante garantiu sorrindo — Venha, vamos falar com ela.

—Mas…!

A representante não lhe deu oportunidade de retrucar, e começou a puxá-la consigo.

—Até segunda-feira Shibuya!

Yukari talvez pudesse ter aceitado o pedido de Kaoru… pois a raposa também não reapareceu nem naquele sábado e nem no domingo consecutivo a ele, embora o feitiço continuasse presente — ela testou e o quarto continuava magicamente a prova de sons pelo lado de fora —, o que significava que ele ainda estava por perto…

—De onde vieram tantos pêssegos?!

Ela assustou-se ao entrar no vestiário das termas femininas e encontrar Gintsune ali ao lado de um prato com as frutas perfeitamente organizadas em pirâmide ao seu lado.

—Yo, Yukari. Servida? — ele estendeu um pêssego em sua direção, mas ela sacudiu a cabeça — A temporada de pêssegos está quase no fim, então pensei em comer alguns enquanto há tempo.

—Então esses dias todos você esteve procurando por pêssegos por causa de um desejo repentino? — perguntou confusa.

—Eu saí para fumar um pouco, não lhe disse? — ele lambeu cuidadosamente o sumo de entre os dedos — Alguém os deixou sobre o muro de uma casa com a placa “pegue o quanto quiserem”.[1]

Apesar de que provavelmente a pessoa não esperava que o prato estivesse incluso… Yukari suspirou e sentou-se ao seu lado.

—Eu falei aos meus pais sobre você. — contou — Acabei dizendo que você é um amigo de professor Haruna, mas foi uma completa dor de cabeça.

Acenando distraidamente com a cabeça ele pegou mais um pêssego para comer.

—Eu sempre estou lhe causando problemas, não é?

Estranhando aquele comentário, Yukari olhou-o de cenho franzido e abriu a boca prestes a perguntar-lhe qualquer coisa, mas ele já havia desaparecido… no entanto o prato de pêssegos, ainda com pelo menos oito frutas restantes, permaneceu exatamente onde estava.

Yukari franziu ainda mais o cenho, e agora o que faria com aquilo?

Definitivamente havia qualquer coisa de errada com Gintsune.

Enquanto pensava pegou um pêssego para si e comeu-o… sempre tão problemático. Suspirou.

Por fim sua avó acabou fazendo pêssego em calda, e usou como desculpa levar dois vidros à sua cunhada só para mostrar ao irmão como estava bem de saúde — o que também era uma desculpa para, na verdade, ir ralhar com ele por estar fazendo, segundo Kaoru (embora não exatamente com essas palavras), a vida de todos em sua casa um inferno.

E Yukari não ficou surpresa quando entrou em seu quarto e encontrou a raposa sentado na janela com um vidro de pêssegos em conserva no colo.

—Você me deixaria tirar suas medidas? — perguntou fechando a porta atrás de si.

—É claro. — respondeu sem pensar, só estranhando suas palavras alguns segundos depois — Mas por quê? — sorriu lentamente de forma atrevida — Por acaso anda interessada no meu corpo, Yukari?

—Para a prova de economia doméstica cada aluno deve confeccionar a partir do zero uma peça de roupa, a professora deu-nos algumas opções de escolha, das mais básicas às difíceis, como modelos de saias, vestidos e camisas, mas o tema é livre. — explicou-lhe — Então pensei em fazer-te um quimono novo já que ateou fogo ao último, e também como uma forma de agradecimento pelo de antes, claro que só poderei entregar-te após apresentá-lo à professora e receber minha nota.

Yukari era realmente certinha demais, Gintsune riu consigo mesmo lambendo a calda de pêssego de entre os dedos, mas ele iria sentir falta disso.

—Ora. — aquele sorriso atrevido dele era muito irritante — Que grande consideração da sua parte, aquele quimono foi feito para mim pela esposa do tengu, eu ficaria encantado em receber um novo de suas mãos.

Erguendo-se a raposa deixou os pêssegos em calda sobre a mesa dela e começou a tirar a camisa.

—O que está fazendo?! — Yukari tampou a boca, sentindo as bochechas se esquentarem.

—Você disse que queria tirar minhas medidas. — Gintsune sorriu inocente.

—Não precisa tirar as roupas para isso! — ralhou imediatamente cobrindo os olhos quando ele levou as mãos ao botão da calça — Mais um movimento e será atentado ao pudor seu descarado!

—Tudo bem, acalme-se, eu só estava brincando. — ele riu erguendo as mãos — Aquele tengu também me chamou de descarado quando fiz essa mesma piada com a esposa dele, sabia? Eu disse a ele que não tinha nada que a esposa dele nunca tivesse visto e ele se pôs tão furioso a ponto de ameaçar expulsar-me de casa. — riu — Muito bem, já estou pronto.

Ele abriu os braços, mas ainda assim não colocou a camisa de volta.

Mas a idéia fora de Yukari, então ela já devia ter esperado por algo do tipo, assim, suspirando resignada, a garota pegou sua fita métrica e começou a tomar suas medidas para fazer anotações.

—De que cor você gosta? — perguntou envolvendo-lhe o tórax com a fita.

—Talvez azul. — ele respondeu após pensar por um momento — Particularmente acho que não há nenhum tom de azul mais bonito que o de minhas chamas.

—Você não disse que estava usando aquele seu quimono azul, ao qual incendiou junto com as sandálias de meu pai, já há mais de um século? — franziu o cenho medindo-lhe os quadris.

—Então logo se vê que eu gosto de azul.

Riu tentando distraí-la quando se contraiu levemente ao sentir suas mãos aproximando-se de seu bracelete no pulso esquerdo enquanto ela media-lhe o comprimento de seu pescoço até o pulso.

—Fique quieto Gintsune! — Yukari ralhou-lhe deixando-o de lado para ir anotar as medidas que já havia tirado. — Pode baixar os braços. E o que acha de variar um pouco agora?

Gintsune precisava parabenizá-la, Yukari mal conseguia ver um pouco de pele exposta sem desviar o olhar e reclamar sobre pudor e coisas assim, mas naquele momento estava tão concentrada em sua tarefa que nem lhe ocorria corar enquanto tocava-lhe o corpo.

—Variar? — ergueu levemente o queixo quando a garota aproximou a ponta da fita da base de seu pescoço — Bom, não é como se azul fosse à única cor de quimono que usei na minha vida, mas… de que cor você gosta Yukari?

—Rosa. — respondeu sem titubear, movendo-se para suas costas.

Aquela era uma cor inesperada vinda de alguém sempre tão rígida, Gintsune estava esperando uma cor mais sóbria e entediante como marrom ou bege, mas guardou esses comentários para si mesmo.

—Acha que ficaria bem em mim? — sorriu de lado. — Na verdade, melhor ainda, que cor você me sugere?

Yukari afastou-se o observando com o cenho franzido, e só depois de virar-se para anotar mais aquelas medidas respondeu:

—Eu preciso pensar um pouco.

—Então me faça uma surpresa! — sugeriu alegremente.

E ao vê-la acenar com a cabeça, torceu silenciosamente para que o quimono ficasse pronto em menos de seis dias…

Pelo resto dos dias seguintes Gintsune ocupou-se em sair para beber e flertar, dormir mais um pouco sobre as máquinas de lavar, espalhar mais algumas garrafas de saquê pela cidade, comer os dois potes restantes de pêssego em calda da família Shibuya e assisti-los acusando uns aos outros sobre quem comera as frutas, deixar latas de patê para gato na casa de Kakeru, fumar praticamente diariamente em frente à estátua de raposa, ajudar Yukari nas tarefas noturnas da posada e também fora buscá-la no colégio por mais três vezes, sempre fazendo uso de sua forma infantil, e aceitara o convite de Tsubaki para tomar chá, até que, na manhã do sexto dia, encontrou um embrulho de papel pardo com seu nome escrito nele sobre a cama de Yukari.

A essa altura já era inegável que Yukari começara a ficar preocupada com o estranho comportamento de Gintsune — por mais natural que ele estivesse tentando agir — ao ponto de, mesmo sem falar nada, suas amigas começarem a notar que algo andava incomodando-a.

—Terra para Shibuya, alôooo. — a representante cantarolou puxando-lhe levemente uma das tranças.

Yukari voltou-se para ela quase que distraidamente.

—Sim?

—Nada, é só que você está almoçando conosco, mas nós não sabemos onde você está agora. — a representante estalou a língua apoiando o rosto de lado na mão — O que há de tão interessante na direção do prédio da escola, para você não parar de olhar para lá? Tem alguém que esteja esperando ver? Sabe que esse é um evento fechado ao publico, não é?

—Não, nada disso... — apertou levemente os lábios — Do que falávamos?

 —Nishiwake ganhou a partida para nosso time ao fazer o gol da vitória.

—O que?! — Aoi-chan engasgou-se.

—Verdade? — Yukari franziu o cenho.

—C-claro que não! — chiou Aoi-chan

—Yuki, está tudo bem com você? — Kaoru perguntou-lhe preocupada — Está aérea…

—Não há nada de errado comigo. — desconversou — Eu só...

Calou-se ao ouvir o inusitado timbre de um celular e agradeceu mentalmente quando a representante pediu silêncio enquanto procurava o próprio celular na mochila — ela era uma representante de classe e celulares eram estritamente proibidos dentro das dependências do colégio, mas ainda assim não se preocupava sequer em deixar o seu aparelho no modo silencioso.

—Mas que chateação. — ela reclamou mexendo impaciente no celular.

—O que houve representante? — Aoi-chan perguntou-lhe.

—É o meu ex! — jogou o aparelho raivosamente de volta na mochila — Está há dias perturbando-me, dizendo-me que errou e se arrependeu e quer reatar!

Yukari franziu o cenho, pousando seus hashis ao lado do obento.

—E por que não o bloqueia?

—Já o bloqueei, duas vezes, mas ele contata-me de outros números, acho que pede o celular dos amigos para infernizar-me.

—E não pensa em lhe dar uma segunda chance? — Kaoru mordeu o lábio inferior. — Quero dizer, se ele realmente se arrependeu e…

—Desculpe, mas sou apenas uma garotinha imatura que não tem nada o que fazer com um homem tão adulto que no primeiro momento em que não tenho disponibilidade para cumprir suas vontades faz birra e termina. — a representante cruzou os braços e girou os olhos orgulhosamente.

—Mas… — Aoi-chan tentou falar.

—Você devia chamar a polícia. — Yukari afirmou.

—Ah. Não é má idéia. — a representante olhou-a com uma sobrancelha erguida — Vou fazer isso se ele continuar a me encher, mas por agora o que acham de ir ao karaokê hoje? Eu pago, é claro, Hanyu-senpai me garantiu um bom dinheiro quando acertou aquela cesta.

Kaoru balançou a cabeça.

—Sinto muito, mas acho que estou esgotada por hoje, nosso time de vôlei ainda não foi eliminado, sabe? Estamos quase nas finais.

—Eu… eu não gosto muito de cantar. — Aoi-chan encolheu-se um pouco. — Mas se não for preciso pegar o microfone… eu só preciso ligar para casa antes…

Acenando afirmativamente a representante voltou-se para Yukari.

—E quanto a você Shibuya?

Yukari, que mal as estivera ouvindo nos últimos dois minutos, levantou-se de repente quando avistou seu alvo entrando na escola.

—Sinto muito, mas não vai dar, há algo que eu preciso falar com o professor Haruna!

Desculpou-se saindo e deixando-as às pressas, juntamente com seu obento quase intocado. As regras da escola diziam explicitamente que era proibido usar os tênis de Ed. Física dentro do prédio, bem como correr nos corredores, por isso Yukari precisou se limitar a um passo apressado enquanto torcia para não ser apanhada em fragrante, mas o professor ainda estava tão longe que, ao fim, ela precisou ceder a correr um pouco antes de finalmente conseguir alcançá-lo, tocando-lhe suavemente no ombro esquerdo.

—Professor Haruna. — chamou-o.

O professor estava segurando uma porção de cartazes, mas virou-se sorridente para Yukari.

—Ah, olá Shibuya-chan, em que posso ajudá-la?

— Podemos conversar um pouco? — pediu-lhe.

—Claro. — ele sorriu — Do que se trata?

Hesitante Yukari olhou a volta.

—É que… é particular.

—Compreendo. — ele assentiu — Ouça Shibuya-chan, eu estava agora mesmo indo até a sala de material de consulta, por que não me ajuda?

E assim que ela concordou, ele transferiu parte do peso dos cartazes para seus braços e a instruiu a segui-lo.

—Desculpe-me por incomodá-lo. — disse enquanto o professor destrancava a porta da sala de material de consulta.

—Que isso, eu é que devia me desculpar por estar explorando-a desse jeito. — o professor riu abrindo a porta e deixando-a entrar primeiro — Então sobre o que queria falar? Pode deixar os cartazes naquela mesa, eu vou arrumá-los. — ele seguiu-a para dentro da sala, fechando a porta atrás de si — É sobre Gin-san?

—Ele anda se comportando de maneira estranha. — confirmou suspirando.

—Estranho como? — Haruna deixou os cartazes caírem de qualquer jeito no canto da sala.

—Ele anda pensativo e distante… — contou-lhe.

—Como se planejasse alguma coisa? — quis certificar-se enquanto começava a arrumar tudo em seus lugares correspondentes.

—Não exatamente. — Yukari suspirou puxando uma cadeira para sentar-se. — Mas sempre que lhe pergunto se há algo errado ele simplesmente diz-me que precisa sair para fumar, e como sei que ele costuma conversar com o senhor eu pensei…

—Lamento muito, Shibuya-chan, mas já tem mais de uma semana que não vejo Gin-san, embora tenha a impressão de que ele continua a visitar minha casa quando não estou, meus gatos não podem estar engordando sem razão alguma afinal. — o professor desculpou-se — Eu realmente gostaria de ajudar, mas também não sei o que possa estar…

—Um professor e sua aluna trancados sozinhos numa sala. — Gintsune comentou aparecendo repentinamente sentado sobre a mesa. — Que crianças mais travessas.

Ele sorriu ao ver Kakeru sobressaltar-se surpreso, mas Yukari, sem graça como sempre, limitou-se a olhá-lo com o cenho franzido, mas essa expressão foi se desfazendo enquanto ela lentamente erguia as sobrancelhas ao perceber o que ele vestia.

—É o quimono que confeccionei? — perguntou.

—Precisamente! — Gintsune ficou de pé com um pequeno salto e começou a rodopiar de um lado para o outro diante da colegial, para que ela pudesse apreciar devidamente ao seu trabalho — E veja o caimento! Nenhuma sobra de tecido, e nem costura frouxa em canto algum, fez um ótimo trabalho Yukari, só faltaram mesmo um par de sandálias para completar o conjunto!

Afinal ele estava descalço.

—Um ótimo trabalho, mas tirei setenta e cinco, porque a peça tinha que ser algo para “servir em mim mesma”. — ela reclamou — E não posso ajudá-lo com as sandálias.

—Estávamos falando de você agora mesmo, Gin-san. — Kakeru comentou deixando seu serviço de lado.

—É claro que estavam, sou a coisa mais interessante que já aconteceu ou acontecerá à vida de vocês. — Gintsune ofereceu-lhe um sorriso brilhante, antes de voltar-se para Yukari novamente — E quanto às sandálias não há com o que se preocupar, Yukari, o tengu certamente me fará um par novo quando eu voltar, depois de me encher de socos, é claro.

Yukari pareceu levar ainda alguns segundos para compreender completamente o que ele dizia, mas quando o fez, seu cenho franziu-se tanto que suas sobrancelhas quase se tornaram uma só… Gintsune começava a pensar que sentiria falta daquela expressão carrancuda.

—O que quer dizer?

Gintsune parou por um momento, puxando distraidamente o cordão do chapéu do tengu que trazia pendurado na parte de trás do pescoço e olhou-a seriamente.

—Estou indo embora Yukari. — afirmou.

—Embora? — ela repetiu piscando incrédula.

—Embora para onde? — Haruna intrometeu-se, igualmente surpreso e confuso.

Gintsune suspirou passando as mãos pelos cabelos.

—Na verdade eu vim atrás somente de Yukari, mas já que você está aqui também Haruna, claro, acho que posso me despedir de você também, então se sinta privilegiado, e também é uma boa oportunidade para falar-te da maldição que te impus. — afirmou ocultando as mãos nas mãos e olhando-o preguiçosamente.

Haruna arregalou os olhos.

—Maldição?!

—Ah claro, se você contar a alguém a verdade sobre mim saiba que todos os dedos dos seus pés vão ficar grudados, os seus cabelos cairão e tudo o que beber ou comer terá gosto de leite azedo pelo resto da sua vida.

O rosto de Haruna começou a esverdear-se.

—Só pode estar brincando. — reclamou enojado.

Gintsune sorriu-lhe enigmático.

 —Estou voltando para casa, em meu próprio mundo, mas não se preocupem, afinal sempre haverá uma raposa nessa cidade, não é mesmo?

—Quando? — Yukari quis saber.

—Agora.

—Agora?! — ela colocou-se de pé com um salto.

—Exatamente, por isso Yukari não pense que estou sendo um descarado ou qualquer coisa assim agora. — ele pigarreou tirando as mãos das mangas lentamente — Com licença.

Pediu-lhe estendendo os braços em sua direção e puxando-a para si, Yukari chocou-se contra seu peito com um arfar surpreso, e Gintsune apertou-a um pouco mais contra si, enquanto aproximava os lábios de sua orelha esquerda:

—Yukari, eu já vivo há séculos, como você bem sabe, e nesse tempo conheci tantas centenas de pessoas que seria impossível recordar-me agora mesmo que de apenas um décimo delas, mas você… você é sem dúvida a humana mais ranzinza que já conheci na vida, por isso penso que será também umas das poucas que jamais esquecerei. — disse-lhe.

E quando os braços de Yukari começavam a se erguer, como se tivessem vontade própria, para abraçá-lo de volta… ele desapareceu.

Ela cambaleou para frente, sentindo os joelhos cederem sob o peso de seu corpo, mas foi amparada pelo professor que correu ao seu auxílio, erguendo a cabeça descrente e atônita, olhou lentamente ao redor, esperando ver em algum canto daquela sala a raposa rindo zombeteiramente de sua cara, mas ele não estava mais ali, pois naquele momento Gintsune voava em direção aos céus sem se permitir olhar sequer uma única vez para trás, até alcançar o túnel ao qual primeiramente encontrara ao despertar naquele mundo um ano atrás, e que costumava ser a principal rota para sair e entrar em Higanbana, mas que hoje, especificamente, encontrava-se interditado por uma grande árvore que, ao ser atingido por um raio, caíra e obstruíra a passagem.

Uma porção de humanos com capacetes e serras elétricas estavam trabalhando ali e, a pouco mais de uns cinco metros de distância, um velho maltrapilho parado na beira da estrada abanava-se com um leque enquanto observava-os.

—Vejo que decidiu vir então. — riu enfiando o leque na parte de trás do obi ao ver a raposa prateada pousando na estrada. — E já não era sem tempo, eles já quebraram duas serras ali, sabia?

Gintsune inclinou a cabeça.

—Eu tinha alguns pormenores a resolver antes. — desculpou-se.

—Então descobriu quem chamou seu nome afinal? — diante do silêncio da raposa o deus riu — Não faz mal. — levou uma garrafa de saquê aos lábios ressecados e entornou-a antes de oferecê-la a ele — Servido?

Gintsune hesitou.

—Eu não…

—Tudo bem. — Binbougami entornou mais um gole e secou a boca na manga puída do quimono — É melhor que eu me embriague o máximo possível antes de irmos, não acha? Não quero impregnar você com a miséria. — ele riu novamente aquela sua risada de papel seco, mas suas palavras só deixaram Gintsune ainda mais tenso — A viagem é bem simples: abrirei caminho para você, então pise exatamente onde eu pisar, e certifique-se de nunca ficar a mais de três passos de mim.

—Isso é tudo? — estranhou.

—Isso é tudo. — garantiu pondo-se a andar. — Talvez eu devesse ter me embriagado um pouco daquela vez também, mas para o azar daquela bela raposa o deus da miséria estava perfeitamente sóbrio naquele dia.

Indo ao seu encalço a orelha de Gintsune moveu-se com um tique involuntário.

—Refere-se à raposa lacrada em Higanbana?

O deus anuiu.

—Aquela moça e você são muito parecidos, creio que isso justifica eu tê-los confundido antes. Mas ao mesmo tempo são completamente opostos, o que torna a minha confusão inconcebível. — riu ebriamente consigo mesmo, até que se tornou repentinamente sério — Eu estava lá naquele dia, sabia? — Gintsune balançou a cabeça — Era outono se bem me lembro… estava vagando, como sempre faço, o crepúsculo estava caindo e todas os lírios aranhas tinham desabrochado, e ela estava sentada na sombra de um bordo observando tudo placidamente, embora não ache que tenha me visto, e naquele momento pensei que o mundo parecia ter-se tornado uma pintura. É claro que eu logo vi que ela não era humana, suas roupas pareciam tecidas com as cores do pôr do sol, tinha os lábios pintados de vermelhos, e seus cabelos longos e prateados estavam amarrados por uma fita também prateada na altura dos quadris.

Naquele momento foi como se uma corrente elétrica atravessasse o peito de Gintsune.

—Essa fita…?

Binbougami mal lhe deu ouvidos:

—Também não havia um youkai sequer que ousasse aproximar-se. — pois era nítido que aquela era uma criatura intocável para além de qualquer um — mas eu pensei em aproximar-me e trocar uma ou duas palavras, pois ser um andarilho é solitário, porém um humano adiantou-se a mim, não sei qual era seu nome, mas ele era mais ousado que qualquer youkai dessa região e dizia conhecê-la.

—O exterminador. — Gintsune concluiu chocado enquanto o ar tornava-se pesado, com um nevoeiro nocivo e familiar à volta de ambos — O irmão daquela garota.

—Sim, acho que ele disse algo sobre uma irmã e que vinha para vingá-la — virando a garrafa mais uma vez o deus percebeu-a vazia e suspirou com desalento — Pensei que a raposa lhe arrancaria a cabeça por interromper o seu momento de contemplação, mas ele era mais ágil do que parecia e esquivou-se de cada raio que ela lançou-lhe, e você deve saber melhor que eu como o domínio de raios é algo mais raro entre as raposas do que o domínio do fogo, então foi uma luta emocionante da qual não pude desviar os olhos! A nobre dama raposa e o exterminador que por anos rastreara aquele mísero rastro de energia do qual ainda se lembrava dos sonhos com a irmã perdida, ele não parava de repetir isso: a energia era inconfundível, mesmo ela tentando ocultá-la e disfarçá-la ele ainda conseguia senti-la nela, por isso não lhe restava dúvida alguma. Era um homem realmente obstinado. — Mas a idéia de objetos que tornam-se um elo com aqueles a quem amamos me é bastante familiar, sabe? — Até a raposa ficou surpresa e de repente ela assumiu seus crimes: levara consigo a irmã dele e tantas outras as devorara e roera-lhe os ossos. — o deus da miséria balançou a cabeça — Ela ainda zombou-lhe, pois se algo de mal acontecera a sua preciosa princesa, então a culpa fora sua que não a protegera, nem a encontrara a tempo… — aquelas palavras fizeram Gintsune sangrar por dentro, quem é que realmente não pudera proteger a irmã e nem chegara há tempo…? — Ah, ele tornou-se num demônio, pensei que a mataria, mas deu-lhe um destino muito pior: lacrou-a. Uma criatura tão bela e tão terrível, ou foi o que pensei na época, sou o deus da miséria então não me pergunte como, mas eu sei que aquilo que assisti, muito mais que uma batalha foi um sacrifício. Olhe, parece que chegamos, este é seu mundo, não é?

—Não. — sacudiu a cabeça angustiado em meio às lágrimas. — Leve-me de volta.

—Como disse? — Bingougami surpreendeu-se.

Abandonando sua forma animal, Gintsune agarrou-lhe as vestes e de joelhos suplicou:

—Leve-me de volta, por favor, eu sei quem chamou meu nome! E não posso abandoná-la novamente!

...

Yukari não compreendeu porque o professor insistiu tanto que ela deveria ir para casa, mesmo com ela dizendo-lhe repetidas vezes que não estava se sentindo mal, porque sabia que se voltasse antes do horário sem estar ferida ou doente, só seria posta para trabalhar mais cedo, então permaneceu no colégio e assistiu as competições esportivas de sua turma — embora não se lembrasse de nenhuma agora — depois voltou para casa no horário de sempre, trocou-se e se pôs a trabalhar com movimentos automáticos e mecânicos até ver-se deitada em sua cama ao fim de mais um dia, como certamente seriam o restante de seus dias também, mas por mais que se virasse de um lado para o outro na cama, o sono não lhe veio e pensou em talvez andar e pegar um pouco de ar, quem sabe cansar-se mais um pouco até o sono vir… quando deu-se por si já estava descendo as escadas da colina, e acabou vagando pela cidade vazia durante a noite sem um destino fixo em mente, até que se deparou de frente à estátua da Raposa de Higanbana.

“Não se preocupem, afinal sempre haverá uma raposa nessa cidade, não é mesmo?”

Que grande imbecil, depois de meses estorvando-a nem para se despedir adequadamente!

Raivosamente ela pegou uma pedra no chão e armou-se para atirar contra a raposa de pedra como se mirasse na cabeça daquele estúpido, quando um trovão ressoou no céu antes limpo de tal maneira que a fez imediatamente gritar e largar a pedra para tampar os ouvidos.

Mas havia mesmo sido um trovão ou o rugido de uma fera gigantesca?

Mal esse pensamento ocorreu-lhe e um som como o de uma explosão de descarga elétrica tomou conta de seus ouvidos, ao mesmo tempo em que ela foi atirada de costas no chão por uma forte rajada de vento e algo passou voando sobre sua cabeça, como se também houvesse sido arremessado.

Virando seu corpo, Yukari apoiou-se com dificuldade sobre os cotovelos e confusa avistou uma árvore que simplesmente partira-se ao meio, mas para além dela tudo havia desaparecido, restando apenas a mais profunda escuridão que parecia ter engolido até mesmo o próprio céu, como se de repente Yukari estivesse no interior de uma cúpula de trevas e, ainda enquanto observava, algo pareceu mover-se próximo a árvore

Pelos prateados brilhando na escuridão.

A raposa ergueu-se, imensa e semitransparente como uma miragem, mas a cada movimento ela ganhava mais substância e tornava-se mais sólida, pequenas labaredas azuis começaram a surgir por todos os cantos, flutuando fantasmagoricamente naquela escuridão, a cauda da fera estalou como um chicote e dividiu-se em duas, e estas também se dividiram, até que ele portasse quatro caudas, labaredas azuis cercavam suas patas e escapavam-lhe de entre as mandíbulas entreabertas por onde entrevia-se os caninos furiosamente a mostra.

—Gintsune...? — Yukari chamou-o atordoada.

Mas aqueles tempestuosos olhos cinzentos não a viam, e cavando profundos sulcos na terra com suas garras ele rosnou com uma voz rouca e animalesca:

—Solte-a… solte-a agora!

E então avançou.

Gritando espantada a adolescente deitou a cabeça na terra cobrindo-a com as mãos, ouvindo segundos mais tarde a nova explosão elétrica.

Tremendo voltou a erguer a cabeça e olhou ao redor assustada, até encontrar Gintsune que dessa vez fora repelido vários metros à esquerda, esmagando um banco de pedra, e erguendo-se com dificuldade a raposa reassumia novamente forma física.

—Devolva-a! Devolva-a!

Ele avançou, saltando sobre a raposa de pedra com a boca aberta pronto a estraçalhá-la com seus poderosos caninos, apenas para ganir e retorcer-se, apanhado em uma nova descarga elétrica que o atirou para longe, desaparecendo em pleno ar, e destruindo parte de uma trilha de cascalho quando seu corpo invisível chocou-se ali.

Yukari arregalou os olhos.

—Pare! — levantando-se aos tropeções ela correu em sua direção, sem importar-se com as labaredas que ali flutuavam — Gintsune, o que está fazendo?! Vai acabar se matando…!

Ressurgindo lentamente a raposa demonstrava agora que parte de seus pelos estavam chamuscados, e o olho direito havia se fechado quase completamente, agarrando-se a ele, Yukari tentou impedi-lo de se levantar novamente.

—Pare Gintsune! O que está tentando fazer? Não vê que está ferido?!

Mas erguendo-se ele continuou a avançar lenta e vacilantemente, parecendo mancar por uma das patas, sequer parecendo notá-la ali enquanto grossas lágrimas vertiam de seus olhos e ele repetia uma e outra vez:

—Ela está me chamando… ela está esperando por mim… ela está me chamando… solte-a… devolva-a… solte-a… SOLTE-A!

Ele saltou atacando e, pela terceira vez, a estátua de raposa repeliu-o, mas dessa vez Gintsune persistiu, recebendo toda a descarga enquanto teimava em aproximar-se, perdendo força e tamanho enquanto uma mão humana afundava-se em seu próprio peito, puxando dali entre gritos e lamentos agudos, uma esfera brilhante a qual ele, penosamente, empurrou em direção àquela estátua.

—Devolva-a! — gritou dolorosamente — Você pode me ouvir?! M…!

*.*.*.*

A cada novo estremecimento ela sentia que aquele mundo estava um passo mais próximo do colapso e sorria observando as rachaduras espalhando-se e deixando a luz entrar, como raios cortando uma noite escura, pois sabia que ele finalmente viera resgatá-la.

Envolvendo o punho com seu laço de prata, ela apertava-o ansiosamente, e arfou arregalando os olhos quando um eco distante de sua voz chamando-a alcançou-lhe os ouvidos:

—Devolva-a…!

E então uma mão surgiu na escuridão buscando-a, e ansiosa ela saltou em sua direção, buscando alcançá-lo, mas a escuridão puxava-a para longe, tentando separá-los, a mão estava se afastando, a escuridão estava engolindo-a.

Não! Não! Não!

Estava tão perto! Estava logo ali!

Os ecos de sua voz que alcançavam-na estavam agora ainda mais distante:

—… de me ou…?! — e então ele chamou-a, invocando seu nome oculto: — Masami!

E com um último impulso angustiado ela também o chamou.

*.*.*.*

Paralisada, Yukari assistiu quando a mão com a qual Gintsune segurava sua própria hoshi no tama, já praticamente em carne viva, finalmente alcançou à raposa de pedra e seus dedos fecharam-se em torno da hoshi no tama e arrancaram-na de sua boca e fundindo a esfera de pedra com a de luz, fazendo o objeto explodir em uma luz cegante e incontáveis fragmentos, e instintivamente cobriu o rosto com as mãos e encolheu-se, tentando proteger-se debilmente.

Quando voltou a abrir os olhos viu que as labaredas azuis estavam apagando-se e desaparecendo uma a uma, ao mesmo tempo em que aquela escuridão, tão antinatural, desvanecia lentamente… e algo estava deitado imóvel sobre a grama próximo ao lago onde agora só restava os restos partidos de uma antiga raposa de pedra.

Não!

Enchendo-se de urgência Yukari mal se deu conta do que fazia ao correr até lá, Gintsune estava deitado imóvel na grama, com as pernas mergulhadas na água enquanto uma mulher jazia caída sobre si, mas ofegou aliviada ao ouvi-lo gemer, ele ainda estava vivo…!

Caiu de joelhos sentindo uma ou duas lágrimas de alívio escapar-lhe.

E então a mulher também se mexeu, e segurando-se fracamente ela estendeu uma mão trêmula ao seu rosto.

—Eu sempre soube que você viria…

Murmurou um pouco antes de desfalecer, enquanto o copo transmutava-se, abandonando as formas humanas e tornando-se assim uma magra raposa de pelos brancos, mas erguendo os braços Gintsune abraçou-a e puxou-a contra si enquanto sentava-se com dificuldade.

—Ela esteve me chamando e me esperando durante todo esse tempo, mas eu nunca me dei conta. — lamentou-se enterrando o rosto em seu pescoço.


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Notas finais do capítulo

E a raposa de Higanbana era a irmã de Gintsune!!!
Se bem que acho que meio que todo mundo já sabia disso, não é? ^^'
O que será agora com DUAS raposas soltas nessa cidade?

CURIOSIDADES DO JAPÃO:

Frutas gratuitas;
O Japão tem uma forte cultura de evitar desperdícios, então quando alguém possui algum tipo de árvore frutífera, é comum que a pessoa disponibilize os frutos que não vai comer (varias vezes sendo postos sobre o muro com o recado para levarem o quanto quiserem), para que não se estraguem.

Binbougami;
Deus da pobreza é a encarnação da miséria e da calamidade. Com a aparência de um velho magro e maltrapilho com um leque na mão, diz-se que quando muitos infortúnios acontecem na vida de uma pessoa ou família é porque o Binbougami está morando em sua casa, mas se o Binbougami ficar embriagado seus poderes de miséria diminuem.

BESTIÁRIO:

Nuribotoke: Youkai grotesco do folclore japonês, seu nome significa “morto revestido”, e é descrito como uma criatura cadavérica de pele escura e oleosa, com cheio pungente, cauda de peixe e possuindo os glóbulos oculares pendurados para fora do rosto. Segundo a lenda ele aparece quando alguém se esquece de fechar o Butsudan após o por do sol, e voa pela casa aterrorizando os moradores.

Tanuki: é um alegre e travesso guaxinim, que adora brincar com as pessoas que e é capaz de se transformar em objetos e pessoas diversas.



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