A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 17
16: Quando os humanos roubaram o céu.


Notas iniciais do capítulo

A você do outro dessa tela, obrigada por voltar.

Glossário:

Edo: Literalmente “entrada da baía” é o antigo nome da capital japonesa, mas em 1868, quando o xogunato terminou, a cidade foi renomeada como Tóquio, que significa "capital do leste".

Haori: Jaqueta tradicional japonesa, com mangas largas e gola estreita.

Kadomatsu: É uma tradicional decoração japonesa. Geralmente é colocada em pares em frente das casas, ou esquerda e á direita dos caminhos da entrada de um edifico ou loja, consiste em um arranjo com hastes de bambu, ramos de pinheiro e ramos de ameixeira.

Kanzashi: é um enfeite tradicional japonês de cabelo. Desde grampos e fivelas até sofisticadas grinaldas, existem Kanzashis dos mais simples aos mais elaborados.

Nakatsukuni: Literalmente “Mundo do Meio”, refere-se ao mundo terreno.

Senpai: É usado para indicar alguém com mais experiência e para indicar hierarquia.

Takamagahara: Literalmente “Campo do alto paraíso”, refere-se à terra dos deuses.

P.S: Caso haja uma palavra que não compreendam avisem-me.



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Em um dia muito quente e seco, Gintsune estava sentado em frente a sua casa bebendo sozinho quando avistou o tengu se aproximando pela estrada poeirenta.

—Ora! — ele ergueu sua taça de saquê saudando ao amigo recém-chegado. — Quando foi que voltou da sua vila?

—Acabo de descer a montanha agora mesmo. — O tengu lhe respondeu, retirando o chapéu e sentando-se ao seu lado.

—E veio aqui para rever seu bom amigo antes mesmo da sua amada esposinha? — sorriu provocando-o.

—Deixe disso! — o tengu girou os olhos, e aceitou o saquê que lhe era oferecido — Os dias andam muito secos, eu precisava de uma bebida!

—É o verão. — Gintsune deu de ombros.

—Quando eu estava na vila, um de meus irmãos, recém-chegado de uma viagem, comentou que haverá um festival amanhã à noite, nas terras mais a oeste daqui. — o tengu comentou.

—Um festival youkai? — Gintsune sorveu mais um gole de seu saquê.

—Assim é. — seu amigo confirmou — Afinal tengus não lidam bem com a civilização humana.

—Vocês são youkais muito frágeis. — Gintsune desdenhou.

Seu amigo estalou a língua.

—Bem, somos youkais das montanhas afinal. Quanto tempo faz que você não vai a um festival?

—Deve fazer, no mínimo, uma década inteira... Quanto tempo faz mesmo desde que você trouxe a garota para esse mundo? — Gintsune devolveu, servindo-se de mais saquê.

Fingindo não ter captado a provocação, o tengu comentou:

—Uma vez ela me contou que quase nunca tinha permissão para deixar a propriedade do pai, e certamente não sozinha. Mas desde que chegou aqui também não viu nada além dessa cidade, então pensei em levá-la. Você bem que podia vir conosco.

O saquê havia acabado.

—Isso podia ser divertido. — Gintsune refletiu — Eu vou pensar.

—O problema. — reiniciou o tengu — É que o local fica muito distante para chegarmos a tempo se formos caminhando. Mesmo se saíssemos agora.

Gintsune o olhou de canto, já suspeitando de onde aquela conversa iria parar.

—Você tem asas, imbecil.

—E já que você também está indo... — o tengu continuou a dizer, fingindo nem tê-lo escutado.

—Eu disse que iria pensar. — Gintsune resaltou.

—Vamos, não seja assim! — o amigo lhe implorou, agarrando a manga de seu quimono — O que lhe custa? Você voa!

—E você também! — retrucou irritado.

Os dois amigos se encararam irritados por algum tempo até que, por fim, a raposa cedeu.

—Você sabe o que eu terei que fazer. — reclamou contrariado, desviando o olhar.

—Por favor. — o tengu suplicou.

—Tudo bem. — Gintsune suspirou — Mas não entendo porque você não se mostra de uma vez a ela. Ela já sabe que você não é humano, e olhe só para o mundo em que vivemos! Não seria um simples par de asas que a faria deixar de amá-lo.

—Mas não são só as asas. — seu amigo resaltou sério.

—Traga-a amanhã à tarde. — Gintsune o instruiu sem encará-lo de volta — Se vocês se atrasarem eu parto sem os dois! E agora vá logo embora daqui amigo interesseiro!

Ignorando as risadas e os agradecimentos alegres do amigo, ele levantou-se e entrou em casa.

Não eram muitas as situações capazes de deixar Gintsune constrangido, ou mesmo minimamente desconfortável, mas aquele casal era incrível, menos de uma década e eles conseguiram pô-lo em situações desconfortáveis não uma, mas duas vezes!

Gintsune já se mostrara em diversas formas para aquela garota: homem, mulher, criança e animal.

Mas nenhuma delas era a sua verdadeira forma.

Pois apesar de ter censurado o amigo Gintsune o compreendia, pois quase nunca era fácil para um youkai mostrar quem era de verdade a um humano com quem se importasse.

Youkais viviam por séculos, eram criaturas de vidas longas e resistentes, e podiam amar ou guardar rancores pelo tempo que poderia facilmente equivaler a uma vida humana, já os humanos eram criaturas frágeis e de natureza efêmera, e talvez para conseguirem aproveitar melhor essas vidas tão curtas, seus corações eram capazes de sentir milhares de coisas ao mesmo tempo, e sempre mutáveis, um humano podia amá-lo de todo coração em um momento e então, no instante seguinte ao que o visse como era de verdade, passasse a repudiá-lo e odiá-lo.

Aquela mulher amava o tengu, de outra forma ela não teria abandonado sua vida humana tão cheia de regalias para vir com ele a esse mundo inumano, mas apesar de tudo seu coração ainda era humano e nada o impedia de converter-se a qualquer momento.

Se fosse para ela rejeitar um “monstro” então que fosse Gintsune.

—Muito bem suponho que aquele tengu idiota já tenha lhe explicado o que vamos fazer hoje, não é? — Gintsune perguntou à humana no dia seguinte, em um raro estado de humor de impaciência.

A rua onde Gintsune morava estava deserta como sempre, e os dois estavam parados em frente à casa da raposa enquanto o tengu assistia-os sentado no telhado.

—Vamos todos a um festival. — a garota respondeu de maneira feliz, relaxada e ingênua.

Gintsune suspirou, com ela sorrindo daquela forma tudo ficava ainda mais difícil... Assustar humanos nunca foi um de seus passatempos favoritos.

—Nós teremos que ir voando, mas eu não posso carregar aos dois na minha forma normal, afinal não é como se um de vocês tivesse um par de asas escondidas nas costas. — de novo o tengu fingiu que não era com ele — Então eu terei que assumir minha forma verdadeira para isso. Então preste muita atenção agora, porque você está prestes a presenciar algo tão grandioso e esplendoroso que talvez a sua cabecinha humana sequer seja capaz de compreender.

—Certo! — ela assentiu séria.

Gintsune fechou os olhos, se fosse realmente para fazer aquilo, ele não queria ter que ver a expressão de pavor no rosto dela quando se transformasse.

Suas caudas foram as primeiras a surgir, elas eram três naquela época, depois vieram as garras e as presas, o rosto transfigurou-se, o corpo expandiu-se e triplicou de tamanho tornando-o uma gigante raposa prateada com três metros de altura. E Gintsune deitou-se sobre suas patas e esperou que ela gritasse e fugisse.

Mas ao invés disso sentiu uma pequena e suave mão tocá-lo entre os olhos e descer ao longo de seu focinho.

—Você... É a coisa mais linda que eu já vi na vida. — ela sussurrou quase sem fôlego.

Quando Gintsune abriu os olhos, a expressão da garota não a deixava mentir: ela estava completamente fascinada pelo que via.

Relaxando Gintsune cruzou as patas dianteiras e deitou a cabeça sobre elas.

—Ora, mas é óbvio. — afirmou convencido — Você realmente ainda não havia se dado conta do quão magnífico eu sou?

—É lindo. — ela suspirou abrindo os braços e deitando sobre seu focinho.

Isso até o tengu aparecer por detrás dela e puxá-la.

—Muito bem, já chega. Nós não estávamos com pressa? — ele reclamou.

Gintsune sorriu zombeteiro.

—Ciúmes?

Irritado o tengu abriu a boca prestes a protestar, quando Gintsune sentiu algo roçar sua cauda, e virou-se com tamanha velocidade que, se estivesse realmente em sua forma original poderia ter causado uma enorme ventania, mas quando suas mandíbulas fecharam-se capturaram apenas o ar e o vazio.

Foi quando um grito assustado o trouxe de volta à realidade e ele percebeu onde estava.

Não estava em seu mundo, junto do tengu e sua esposa, aquilo havia sido séculos atrás, não, ele estava no mundo humano, dormindo de baixo da cama de Yukari.

Ainda bocejando, Gintsune arrastou-se de debaixo cama  e virou-se, ela estava em cima da cama, sentada com os olhos arregalados, os joelhos junto ao peito e as costas prensadas contra a parede.

Gintsune voltou a bocejar.

—Ah, Yukari, eu devia ter avisado antes, mas não toque nas minhas caudas sem permissão. Eu sou muito sensível quanto a elas.

—Você podia ter arrancado meu pé! — ela o acusou com voz aguda e quase num fôlego só.

Gintsune usou a pata traseira para coçar a orelha direita.

—Podia. — confirmou despreocupado — Que sorte que eu estava sonolento e você teve reflexos rápidos, não é?

—O que você fazia de baixo da minha cama?! — ela perguntou em tom acusatório, mas ainda agudo.

Quase como se fosse um animalzinho que por pouco não pisara em uma armadilha na floresta e ele o caçador.

Gintsune a olhou.

—Ora, como assim? É onde eu durmo.

—O que? — Yukari piscou confusa — Desde quando?

—Hum... Desde quando, você me pergunta? — Gintsune ergueu-se abandonando sua forma animal e passando então à sua forma humana — Eu diria que desde os meados do outono, mais ou menos.

E ainda assim, de uma forma até quase impressionante, mesmo estando ali todo aquele tempo Gintsune ainda não havia tido a oportunidade de vislumbrar Yukari desprovida de suas tranças.

—Mas eu achei que você dormia na pousada, por que de repente...? — Yukari deteve-se — Está me dizendo que você está dormindo aqui desde aquela noite em que o deixei ficar porque você estava com medo daquele...?!

—Isso! — ele a interrompeu sobressaltado.

Yukari franziu o cenho.

—Escute naquela vez, quando eu disse que você podia ficar aqui, eu me referia apenas àquela noite e não para que se mudasse para cá de uma vez. — explicou de forma quase paciente — Mas agora já se passaram mais de dois meses, não pode estar com medo ainda!

—Não estou. — ele negou calmamente sentando-se e cruzando as pernas em pleno ar. — É só que ultimamente tem sido problemático demais conseguir dormir na pousada. — ele apoiou o rosto de lado sobre a mão — Não estou dizendo que eu não coseguiria, mas se eu puder escolher prefiro dormir no plano material ao invés do plano astral e com a minha forma animal, mas isso seria muito problemático de se fazer com a pousada ficando cada vez mais cheia, eu poderia fazer outra armadilha de raposa, como essa daqui, mas por que me dar ao trabalho, não é mesmo? Além disso, o camaradinha lá na pousada podia não gostar muito disso...

Yukari não tinha ideia de quem ele estava falando, mas ignorou aquilo e, cruzando os braços, focou-se no principal:

—E aí decidiu simplesmente se mudar para o meu quarto?!

—É. — ele deu de ombros — Afinal com você não há problema se eu for visto... Ou será... — sorriu astutamente — Que você pretendia que eu fosse visto para assim atrair mais clientes com histórias de fantasmas?

—Você podia ter arrancado o meu pé! — a garota voltou a acusá-lo.

Ela ia mesmo ficar insistindo naquilo? Gintsune girou os olhos.

—Sim, então de agora em diante preste mais atenção onde pisa, porque você nunca sabe o que pode haver debaixo da sua cama. — respondeu.

Yukari cerrou os olhos e, sem dizer nenhuma palavra, levantou-se e foi embora irritada, batendo a porta de correr com força ao sair do quarto.

*.*.*.*

Sozinha em meio à escuridão, ela lembrava-se de seus tempos de menina, quando ouvira falar sobre youkais que foram capazes de dormir por até um século ou mais, mas obviamente nem um desses youkais era uma raposa.

Ela de fato havia dormido durante as primeiras décadas de seu confinamento, mas só até ser despertada pela dor lacerante de sua nova cauda nascendo, pois de forma cruel, como parte de sua penitência — embora talvez não de maneira proposital —, o aprisionamento de alguma maneira intensificava o sofrimento da já dolorosa transição, até que seus gritos retumbassem como um trovão e raios cortassem a escuridão.

Bem depois de tudo ter-se acabado, lembraria-se de ter pensado se já não era hora de sair dali em fim, os humanos não eram conhecidos por terem vidas longas, ela dissera a si mesma, mas então hesitara... Humanos podiam não ter vidas longas, mas de certo eles podiam viver por algumas poucas décadas... E se aquele humano ainda estivesse vivo e descobrisse sobre sua fuga, e pior ainda, descobrisse sobre ele... Ela não poderia sair.

Definitivamente não o colocaria em risco, não depois de já ter sacrificado tanto para mantê-lo a salvo.

E, portanto, decidira esperar por mais um século inteiro até que a próxima cauda lhe nascesse ainda mais dolorosa que a última, permanecendo assim na escuridão que agora mais do que seu aprisionamento era quase seu lar.

Entreabrindo os lábios sussurrou:

Minha casa é perto da capital,

Minha humilde cabana nua

Encontra-se a sudeste do Monte Uji; assim

As pessoas declaram “Monte da Melancolia”

Porém ela agora já se cansara de esperar, um século e meio havia se passado desde que ela vira a luz do dia pela última vez, por três vezes pensara em chamá-lo e por duas recuara, mas desde que em fim cedera, desde que ao seu nome chamara ela seguia esperando.

Pois já era hora de partir de seu “monte da melancolia”.

*.*.*.*

A raposa tinha razão em algo que dissera: a pousada estava cheia demais. Trabalhando a todo vapor, com todos os seus funcionários, parecendo quase a ponto de rebentar, e podia ser que dali a dois dias isso realmente pudesse acontecer.

—Yuki-chan o quarto 107 pediu por uma yukata tamanho infantil! — Naoko-chan avisou-a ao passar pelo corredor em passos velozes, mas sem jamais correr, empurrando seu carrinho e cruzar com Yukari.

—Certo, eu passo lá assim que deixar esses pratos na cozinha! — Yukari respondeu seguindo na direção oposta, também em passos apressados como os de Naoko-chan, embora os seus fossem um pouco mais próximos de uma corrida que os dela, equilibrando um trio de bandejas com pratos e tigelas. — O quarto 211 precisa de toalhas!

—Obrigada! — Naoko-chan dobrou o corredor e desapareceu.

Seu pai era muito rígido quanto a isso: os funcionários nunca deviam correr dentro da pousada, uma imagem equilibrada era importante para o descanso e relaxamento dos hóspedes, Yukari trabalhava há anos na pousada e sabia bem disso, no entanto era difícil manter a pose calma e controlada com aquela raposa atrapalhando-a!

—Saia do caminho! — proferiu irritada ao vê-lo sentado no topo das escadas.

—Oi Yukari. — ele olhou-a por cima do ombro, usava seu antigo quimono azul e estava novamente disfarçado de humano com os cabelos escurecidos. — Isso é jeito de falar com um hóspede?

—Você não é hóspede algum! — disparou — Saia do caminho!

—Que estresse. — ele suspirou levantando-se — Uma garota tão jovem não deveria ter esse tipo de humor, sabia? Além do mais a escada é larga o bastante para um carro de boi subi-la, eu estar sentado apenas em um canto não deveria incomodar ninguém.

—Mas incomoda, é perigoso sentar nas escadas. — respondeu descendo, não tinha tempo para pausas.

Mas ele a seguiu, claro que a seguiu.

—Também é perigoso descer as escadas sem ver direito e tão rápido assim, me dê essas bandejas, eu vou levá-las para você...

Aquilo havia se tornado um costume dele já há algum tempo, sempre quando Yukari precisava trabalhar a noite a raposa surgia, pegava um esfregão e comaçava a limpar junto e se ouvisse alguém se aproximando — como os pais ou a avó dela — ele simplesmente desaparecia. Para Yukari a raposa havia começado a fazer isso porque estava entediada, mas com certeza logo se cansaria... No entanto ele nunca havia feito isso durante o dia, até onde Yukari sabia, ele nem sequer aparecia na pousada durante o dia, já que passava a maior parte na escola e Yukari não tinha interesse em saber o que ele fazia depois do horário escolar... Seria porque as férias de inverno começavam hoje? Ele já estava entediado a esse ponto?

—Esse é o meu trabalho, eu faço isso há anos. — recusou-o.

Atrás de si a raposa parou e suspirou.

—Não acredito, ainda está brava por hoje mais cedo?

—Claro que estou, você quase arrancou meu pé. — ela parou e virou-se na base da escada.

—“Quase” é a palavra, eu quase arranquei, mas não te fiz nenhum arranhão, você, por outro lado, realmente tocou na minha cauda, e eu não estou mais bravo com isso, estou? — ele realmente achava que havia como comparar as duas coisas?! — O passado é passado, deixe pra lá.

—Então me deixe em p... Você veio até aqui só para saber se eu ainda estava brava? — olhou-o de forma estranha.

Ele não respondeu coisa alguma, se limitando a dar de ombros, de repente Yukari lembrou-se de que estava muito ocupada e não tinha tempo para ficar ali perdendo tempo, e apressou-se para a cozinha.

—Somente para funcionários! — repreendeu-o quando ele fez menção de segui-la cozinha adentro também.

Mas ele ainda estava esperando-a quando Yukari voltou a sair.

—Por que não usa o grampo que te dei? — perguntou seguindo-a novamente — Já lhe disse que tranças não combinam com...

—Por que você está me seguindo afinal?!

Porém quando ela virou-se ele havia sumido, bem, o quarto 107 precisava de uma yukata tamanho infantil, Yukari girou os olhos e entrou no depósito, coisas do dia a dia da pousada, tal como yukatas, futons e toalhas extras, eram sempre guardadas no depósito, no entanto havia ainda um velho galpão nos fundos da propriedade — do qual Yukari costumava ter medo quando criança — no qual eram guardadas coisas que só eram, geralmente, necessárias uma vez ao ano, como a decoração de Natal, as bandeiras carpas do dia das crianças e as lanternas do festival obon, além de várias tranqueiras inúteis que nunca eram usadas e, em sua opinião, já deviam ter ganhado a lata de lixo há muito tempo.

Pouco depois, ainda enquanto Yukari atravessava o saguão fazendo seu retorno para levar a yukara ao quarto 107 a avó a chamou.

—Yuki. — acenou — Vem aqui um segundo.

Yukari aproximou-se, embora geralmente vagueasse livre pela cidade, tendo como única tarefa ali cuidar do jardim, a avó havia sido posta para atender na recepção durante aquela temporada, como sempre acontecia quando a pousada estava cheia demais e precisava de todas as mãos possíveis para atender os quartos já que — e que isso nunca lhe chegasse aos ouvidos! — não tinha mais idade para ficar atendendo aos quartos.

—Sim avó? — atendeu-a docilmente, sem querer demonstrar estar com pressa.

Uma mulher passou por si em direção aos banhos e Yukari inclinou-se respeitosamente.

—Foi o Gin-kun que eu vi aos seus calcanhares agora há pouco?

—Foi. — respondeu sem titubear.

Nunca fora dada a mentiras, elas nunca lhe vieram tão fáceis como vinham a certas pessoas... Ou raposas.

—Hum... — a avó umedeceu levemente os lábios, tamborilando com os dedos da mão direita sobre o balcão — Ele não é nenhum hóspede aqui, eu me lembraria. E também não parece ter vindo para tomar banho. Então o que faz aqui?

A avó observou-a.

—Ele... — Ele veio ver-me.

Mas sua avó certamente entenderia errado se dissesse algo como aquilo. Além disso, as palavras soaram-lhe estranhas e inadequadas quando pensou nelas, Yukari fez uma careta.

—Yuki. — sua avó suspirou — Gin-kun é um rapaz bonito, e você sempre foi uma garota responsável, é verdade, e já tem quase dezessete anos, mas eu não acho que seja adequado, vocês ao menos deveriam falar com Daisuke...

—Não é nada disso vovó, a senhora compreendeu mal.

Uma dupla de homens vestidos em yukatas saiu conversando alegremente das termas, uma senhora de idade descia as escadas de mãos dadas com uma criança pequena, aquilo não era bom, os hóspedes não deviam ver os funcionários simplesmente parados conversando sem fazer nada.

Fazendo uma vênia Yukari começou a dizer:

—Agora se me der licença avó, o quarto...

—Há algumas coisas que eu preciso da cidade. — vovó Tsubaki a interrompeu, e abrindo as mãos com um gesto amplo prosseguiu: — No entanto eu estou ancorada aqui. Poderia me fazer o favor de ir em meu lugar?

Yukari piscou.

—Vovó eu estou um pouco ocupada no m...

—Claro que você não irá demorar. — a avó lhe garantiu — E pode trocar de roupa, bem sei que detesta usar quimono na rua.

—O quarto 107...

—Você pode deixar a yukata antes, enquanto isso eu vou anotar o que preciso.

E piscou de modo travesso.

Yukari não entendeu o propósito daquela piscadela, ou por que ela havia insistido tanto para que fosse até a cidade, não havia nada de urgente naquela lista afinal (creme para as mãos? Purificador de ar?) até sair da pousada e ouvir a raposa comentar:

—Acho que Tsubaki entendeu qualquer coisa errada sobre nós.

Ela queria que passasse algum tempo com aquela raposa, Yukari realmente precisava ter uma pequena conversa com a avó quando voltasse.

—E de quem é a culpa? — perguntou de volta sem se virar, guardando a tal lista da avó no bolso do casaco.

Assim como a avó havia lhe sugerido, Yukari trocara de roupas antes de sair e, por causa do ar frio tinha as pernas cobertas por um grosso par de meias brancas, e um comprido, embora já gasto, casaco cor de rosa que cobria-lhe a saia até os joelhos também cor de rosa, e o suéter bege, mas ainda não lhe parecia frio o bastante para por luvas e cachecol.

—Bem, sinto em decepcionar Tsubaki, mas você não é interessante o bastante para mim Yukari. — a raposa estalou a língua seguindo-a, e no final, só no final, Yukari teve a impressão de tê-lo ouvido resmungar consigo mesmo: — Além do mais eu não gosto de brincar assim com meus amigos, é desleal.

—Farei uma prece agradecendo aos deuses por essa pequena proteção então. — comentou em tom de voz alto, já descendo as escadas da colina (rocha) onde estava a pousada.

—Eu poderia tentar explicar.

—Isso só pioraria as coisas, sem dúvida. — mas ela realmente precisava ter uma conversa séria com a avó.

—Bem, não podemos culpá-la, podemos? — ele soou convencido — Quer dizer, olhe só para o meu rosto, qualquer boa senhora iria querer-me para sua neta.

—Você ter um rosto bonito não muda o fato de ser um cretino. — afirmou — E por que você está me seguindo de novo?

—Você está indo para a cidade, não está?

—Estou.

Ele hesitou.

— A cidade está bonita. — respondeu incerto

Aquilo intrigou Yukari. Bonita? Do que ele estava falando? Aquela raposa não costumava dirigir essa palavra a outras coisas além de si mesmo e, além do mais, era inverno, o que significava que não havia muitas coisas para se apreciar na paisagem de Higanbana: as árvores estavam quase todas nuas, a grama se tornara rala e estava começando a ficar seca e marrom em vários pontos, e o céu estava, quase sempre, cinza e carregado.

A menos que ele estivesse falando das flores de inverno, tais como as camélias no jardim da avó, além das tulipas, narcisos, algumas espécies de orquídeas, entre outras, se havia algo em que a cidade era rica além de suas fontes termais, certamente eram suas flores, mas as flores por si só não eram o bastante para sobrepor o ambiente amarronzado e seco do resto da cidade.

Se ao menos nevasse...

—Yukari! O que é aquilo? — ele segurou-a pelo cotovelo, quando ambos chegaram ao distrito comercial.

Já que era para sair, Yukari ao menos queria poder ver os turistas que, naquela época do ano, eram em sua maioria casais.

—São luzes de natal, mas elas só são ligadas a noite. — respondeu.

—Ah, eu sei! Eu as vi! Elas piscam sem parar, não é? Como na pousada e também havia várias delas na praça onde está a raposa lacrada, eu as vi ontem à noite, por que elas piscam tanto Yukari...?

Hoje ele estava usando novamente o enorme chapéu que há tempos Yukari não via, além disso, vestia um haori por cima do quimono e trazia um cachecol em volta do pescoço os quais ela esperava que ele não tivesse roubado de nenhum hóspede da pousada.

—Você realmente sente frio? — ouviu-se perguntar do nada.

—Eu sinto. — ele virou-se para ela, ocultando as mãos nas mangas. — Não a uma temperatura dessas, é claro, sou mais resistente ao frio que os humanos, e sou mais resistente ainda ao calor.

—Então por que usa roupas de frio?

—Hum... É que parece sensato. — mas quando Yukari olhou-o cética, ele desatou a rir — Tudo bem, você pode chamar de “força do hábito” então.

—Força do hábito?

Ele acenou.

—Um que eu adquiri depois de tanto tempo convivendo entre vocês. — ele sorriu-lhe por debaixo do chapéu. — Se passar por humano é mais do que apenas escurecer os cabelos, sabia Yukari?

Yukari pensou sobre aquilo.

—Se você não precisa passar-se por humano diante de mim, e tampouco é suscetível ao calor, ficar seminu no verão, enquanto se abana com um leque e come melancia também é por questão de hábito?

—Sim. — ele deu de ombros — Mas comer melancia no verão é delicioso, assim como batatas assadas no outono e... — de repente ele agarrou-lhe o braço — Yukari o que é aquela árvore toda enfeitada ali? E olhe, tem outras ali e ali! E ali!

—São árvores de Natal.

—É a segunda vez que você menciona essa palavra “Natal”. — ele a observou — Luzes de Natal, árvores de Natal... O que é Natal?

—Uma data comercial, ela será daqui a dois dias, no dia 25 de dezembro, na qual se come bolo de creme com morangos e frango frito, e é muito popular entre os casais que gostam de marcar encontros românticos nessa data, sendo basicamente um segundo “Dia dos Namorados”, é outra data comercial também, mas mais focada em chocolate, de qualquer forma, o comércio em geral investi bastante em decorações lindas para impulsionar as vendas. É uma época bem corrida para as pousadas também, por causa da grande demanda de casais querendo uma reserva para sua noite romântica.

Ali em Higanbana, assim como Yukari imaginava que devia ocorrer nas cidades grandes também, embora os moradores não costumassem enfeitar suas casas para o natal, todo o centro comercial e áreas turísticas brilhavam com a decoração natalina, na própria casa de Yukari não havia sequer um único visco, mas ela ainda se lembrava da grande discussão entre seu pai e sua avó de dois anos atrás quando ele decidiu que a pousada também começaria a ser decorada e sua avó foi terminantemente contra, “eles não tinham nada haver essa tal data” ela afirmara, mas “essa era uma data comercial importante”, seu pai insistiu e era ele o chefe ali, de forma que desde então naquela época do ano o saguão ganhava uma árvore de dois metros e meio, além de festões verdes intercalados com guirlandas nas paredes, essa também foi uma das poucas vezes em que a palavra final não coube a sua avó.

—Uma data inteiramente nova criada apenas pelo bem do capitalismo! — ele exclamou admirado.

—Não é inteiramente nova, nós apenas a pegamos emprestado dos estrangeiros. — deu de ombros. — E oficialmente é uma data para “comemorar o amor”.

Finalizou fazendo aspas no ar.

—Isso explica as dúzias de convites para encontros, justamente nessa data, que venho recebendo há semanas! — compreendeu de repente.

Yukari preferiu ignorar aquilo.

—Se está assim tão deslumbrado com essa decoração simples, nem posso imaginar como reagiria se visse a cidade grande nessa época do ano. — comentou.

—É melhor?

—Certamente.

—Melhor quanto?

—Incomparavelmente.

Afirmou, embora ela própria nunca houvesse visto a cidade grande ao vivo, fosse à época que fosse, mas isso estava entre as suas coisas a fazer antes de morrer.

—Está vendo aquela casa de chá ali? — perguntou sem razão alguma, depois de já ter feito as compras que sua avó pedira, ela realmente fizera a lista de forma totalmente aleatória, não é? Uma caixa de ban dads... — Ela costumava pertencer à avó de Kaoru, que se casou com o avô dela, o irmão da minha avó, mas agora pertence à filha deles, a tia de Kaoru irmã mais velha de seu pai, portanto também sobrinha de minha avó e minha parenta em algum grau, ela tem duas filhas que costumavam ajudá-la no negócio, mas um pouco mais de um ano e meio atrás a filha mais nova teve uma grande briga com a mãe e foi embora da cidade, vovó disse que está no sangue, porque foi assim que o irmão dela também se foi e nunca mais voltou mais de cinquenta anos atrás.

—Eu já fui ali. As garçonetes são muito... Gentis. — ele sorriu de maneira enigmática, mas Yukari preferiu não tentar saber o que aquilo significava. — O que é isso Yukari?

Yukari virou-se, esperando ver mais alguma decoração de Natal que houvesse chamado a atenção da raposa, mas ao invés disso deparou-se com o café mais delicado — e popular — da cidade o “Kitsune encantada”.

—É uma confeitaria, eles servem, além de diferentes tipos de cafés, vários tipos de doces também, como bolos e sorvetes, para comer no local ou para viagem, mas a maioria deles, principalmente esse aí, é zona proibida para homens desacompanhados. — estalou a língua — É território de mulheres, crianças e casais.

No entanto ela própria nunca visitara o local.

—Zona proibida para homens desacompanhados? — repetiu decepcionado, embora Yukari bem soubesse de sua completa desconsideração por regras em geral, e que num piscar de olhos ele poderia transforma-se numa garota, mas aparentemente a ideia que ocorreu à raposa foi outra: — E se você entrasse comigo?

—Como se eu fosse entrar em um lugar assim com você. — reagiu cortante.

E ainda mais naquela época do ano!

A raposa levou a mão ao peito.

—Agora mesmo eu pude jurar que senti o ar frio entrando em meu peito e me cogelando os órgãos internos.

—Não diga idiotices.

Virou-se e começou a afastar-se esperando que ele a seguisse, afinal era o que parecia determinado a fazer o dia todo, quando ele a chamou de volta:

—Tem um garoto sozinho lá dentro. Ali naquela janela.

Quando se virou e olhou novamente na direção indicada pela raposa Yukari logo viu de quem ele estava falando, era um senpai aluno de sua escola e era até bem popular, talvez, a representante era amiga dele também, não era? Mas qual era seu nome?

—Hannyu-senpai. — lembrou-se — Tem certeza que não está acompanhado?

Ele estava sentado a uma mesa perto da janela, tal como a raposa dissera, lendo um livro enquanto mexia distraidamente com uma colherzinha em uma xícara à sua frente.

—Absoluta! — respondeu sorridente.

Yukari franziu o cenho.

—Não é da minha conta. — ela virou-se e tentou mais uma vez se afastar.

—Me parece que talvez ele seja uma pessoa interessante. — a raposa comentou atrás dela, mas sua voz estava afastando-se então não parecia que a estava seguindo.

Yukari parou e virou-se, ele ainda estava parado no mesmo lugar, olhando atentamente para a janela onde Hanyu-senpai lia seu livro.

—Que quer dizer?

Ele lançou-lhe um sorriso astuto.

—Hum... Como devo dizer? Acho que Say-chan pode ser uma pessoa divertida para jogar.

Yukari cerrou os olhos, ela sabia o tipo de “jogos” que interessavam aquela raposa.

—Você certamente não vai...

—E também me parece que pode ser fácil manipulá-lo — ele acrescentou descarado — Bem, até mais Yukari!

E acenou afastando-se em direção à confeitaria, Yukari arqueou as sobrancelhas, aquele...! Bem, ele podia fazer o que quisesse, de qualquer forma não era da conta dela! Ela virou-se e foi embora.

Foi à última vez que o viu naquele ano, pois Yukari havia capturado a curiosidade de Gintsune ao citar que “as luzes dali, nem se comparavam às luzes da cidade”, ele já passara muito tempo em Higanbana de qualquer forma, então talvez estivesse mesmo na hora de conhecer as cidades maiores.

Naquela noite quando Gintsune pousou no alto de um prédio — quando foi que os humanos começaram a construir moradias tão altas? Eles por acaso estavam tentando alcançar os deuses? E aquele nem era o prédio mais alto ali! — e segurou o chapéu sobre a cabeça para evitar que saísse voando com o vento dali, pois o tengu certamente nunca o perdoaria se o perdesse, ele perdeu o fôlego pela primeira vez desde que voltara ao mundo humano.

Em seu mundo quando a noite caia era normal que luzes fantasmagóricas surgissem para flutuar a deriva e iluminar a escuridão, mas o mundo que se estendia aos seus pés era completamente diferente disso.

Enquanto o céu fora apagado e permanecia escuro e vazio a terra era um mar de incontáveis estrelas, como se todas elas houvesse caído ali, luzes amarelas, verdes, vermelhas, brancas e azuis piscavam aleatoriamente por toda parte e para onde quer que se olhasse, nos prédios, nos postes de luz e nos toldos das mercearias, formando até mesmo padrões e desenhos aqui e ali, então fora isso que Yukari quisera dizer? Mas como os humanos haviam feito para apagar os céus? Estariam realmente eles próprios tentando se equiparar aos deuses e transformar o Nakatsukuni em Takamagahara?!

E os humanos! Os humanos lá embaixo eram tantos! Edo sempre fora uma cidade grande, mas agora ela parecia ter inflado dez vezes mais seu tamanho, eles andavam de um lado para ou outro, muitos em pares, mas havia também famílias com crianças que riam e apontavam alegremente, e suas carruagens sem cavalos — não, seus carros! — que corriam ali? Eram tantos! Não havia tantos assim em Higanbana! E tudo era tão movimentado!

Abandonando sua forma material ele saltou do prédio, ainda segurando o chapéu para que não voasse, precisava ver aquele mundo mais de perto, precisava estar nele.

E Gintsune podia ouvir os sons da cidade!

Carros, vozes, canções, risadas e animais, captou também o som de um sino, mas por que sinos? Ainda não era ano novo. Foi então que viu em frente a um café um humano idoso com barba branca como a neve e óculos redondos de finíssimos aros dourados, que vestia roupas vermelhas de inverno e lustrosas botas pretas.

—Hô hô hô.

Ria o idoso de rosto vermelho enquanto tilintava um sininho dourado em sua mão, e com a outra ele segurava um maço de panfletos da loja às suas costas.

—Papai Noel!

Um garotinho gritou passando correndo através de Gintsune (não podia vê-lo afinal) para alcançar ao velhinho, que riu daquela forma peculiar e abaixou-se para falar com ele, e pergunta-lhe se queria um pouco de bolo.

Então isso era Natal?

Gintsune sentia uma coisa engraçada no peito, uma comichão talvez, uma agitação que há muito tempo não sentia e o fazia querer correr e rir como aquele garoto, e ele não conseguia deixar de sorrir, nunca antes pudera imaginar que os humanos seriam algum dia capazes de criar um mundo tão belo.

Uma suave neve começou a cair na cidade que antes era Edo, mas que agora parecia um mundo completamente diferente, e Ginstune sentia que poderia ficar ali para sempre.

*.*.*.*

Se ela tivesse um pente ali consigo, poderia pentear os cabelos para que eles estivessem lisos e brilhantes quando ele viesse por ela — pensou consigo mesma —, embora os lábios permanecessem rubros graças à pintura labial que ainda lhe restava guardada em uma de suas mangas.

Quanto tempo já se passara dentro daquela escuridão?

Perguntou-se novamente pelo que devia ser a décima ou talvez a centésima vez.

Na verdade era até mesmo irônico que agora fosse ela a esperar por seu resgate dessa vez, já que, quando pequeno, fora sempre ele a ser mimado e protegido, não apenas por ela, como também por todos que os cercavam.

Nosso auspicioso príncipe.

Cada um de seus desejos, cada uma de suas vontades, tudo sempre lhe fora oferecido com um sorriso gentil sem que ninguém nunca lhe pudesse dizer não, inclusive e talvez principalmente ela própria, ele jamais conhecera qualquer consequência dos próprios atos, fora protegido para evitar que qualquer mal pudesse lhe alcançar.

E então um dia ela se fora.

Não podia ficar ali com eles para sempre, amava-os, mas eles a oprimiam e sufocavam, sabia que ele ficaria bem, já era grande o bastante para cuidar-se e eles também não deixariam que nenhum mal lhe abatesse, era o precioso príncipe de todos.

“Não vá”.

Lembrava-se ainda de seu suplicio, o único ao qual ela negara, e então desistindo em fim, pois ela realmente precisava ir, presenteara-a como uma parte de si mesmo, “assim estarei sempre contigo” dissera-lhe e se um dia precisasse ela poderia chamá-lo, e estivesse onde estive ele a encontraria.

Essa fora sua promessa.

E em troca fizera o mesmo por ele.

Sabia que ao seu próprio tempo ele também os deixara, era um espírito livre e inquieto afinal, mas nunca poderia imaginar que seria ela própria e não ele a um dia chamar por socorro... Mas, ao principio de tudo, não estava ali unicamente porque mais uma vez quisera protegê-lo?

Quem sabe não fosse hora de tentar chamá-lo mais uma vez?

*.*.*.*

Um hobbie...

Yukari lembrava-se de que quando conhecera a raposa e o levara para conhecer a estátua da raposa de Higanbana, dissera a ele o quanto sua vida era tediosa e monótona.

 “Isso é meio triste sabia?”.

Ele era realmente muito irritante... Mas tinha razão, fazia vários dias que ela já não via aquela raposa em canto algum, nem mesmo à noite quando ele geralmente aparecia para ajudá-la — com certeza havia se cansado, tal como Yukari previra que faria — ou atrapalhar seu sono, talvez a estava evitando por achar que ela ainda estava brava com ele, e para Yukari isso era bom, a raposa com aquela sua recente mania de segui-la era realmente problemática e Yukari definitivamente não queria ter outra conversa daquelas com sua avó, como a que haviam tido no dia em que vira a raposa pela última vez:

—Avó, eu não estou saindo com ninguém. — havia dito naquele dia — E definitivamente se fosse sair não seria com aquele cara.

Mas sua avó, um tanto cética, comentara que eles foram vistos andando no centro comercial admirando a decoração natalina entre tantos outros casais, no entanto ela concordara em deixar Yukari em paz até que ela “se sentisse confortável em falar disso”, e Yukari deixara as coisas assim mesmo, rezando para que a avó esquecesse logo daquele assunto.

E agora ela estava finalmente em paz... E profundamente estagnada em sua velha rotina trabalhando na pousada, ela nem sequer deveria ter tempo para se sentir entediada com toda aquela correria de fim de ano o dia inteiro na pousada, que a fazia apenas conseguir cair exausta e dolorida na cama ao final de tudo e adormecer instantaneamente, mas ela se sentia.

Ter uma vida tão chata a ponto de sentir falta de alguém que só a estressava era realmente algo muito triste ou, no mínimo, uma maluquice sem tamanho.

Talvez ela realmente precisasse de um hobbie.

Parada em frente ao espelho na porta de seu guarda-roupa Yukari ergueu as tranças e tentou enrolá-las para espetar o kanzashi nelas e as prender como a raposa havia feito naquele dia.

Mas que tipo de...?

De repente a porta de seu quarto foi aberta e Yukari saltou de susto escondendo por reflexo o grampo nas costas:

—Yuki, você viu as chaves do galpão?

— Papai! O que o senhor faz aqui? — perguntou piscando desconcertada.

Ele não devia estar ali, afinal a raposa não havia demarcado aquele espaço como seu próprio território — no cúmulo do atrevimento! — e garantido que ninguém entrasse nunca, abrindo apenas uma “exceção” a ela própria?

—Essa é minha casa. — Seu pai franziu o cenho. — O que estava fazendo? Está escondendo algo de mim Yukari? Não pense que vou aturar uma delinquente em minha casa.

Para seu pai coisas como pircings e segredos eram sinônimos de delinquência.

—Não, não, papai, me desculpe. — Yukari ergueu as mãos ainda segurando o enfeite de cabelo — Eu só fiquei surpresa, o senhor não vinha aqui há meses e, além disso, devia ter batido na porta.

—Não vinha? É verdade. — ele passou a mão pelo queixo, mas não deu muito atenção àquele assunto — E as chaves do galpão? Precisamos trocar a decoração.

Embora a pousada fosse decorada para o natal assim como tantos outros estabelecimentos comerciais da cidade, nenhum deles retirava suas árvores e luzes tão cedo quanto à pousada Shibuya que, dois dias após o Natal, quando a maioria dos hospedes que viera para a data já se fora ou estava de partida, as devolvia todas ao galpão e as trocava então por um par de Kadomatsu colocados na entrada, ao invés de simplesmente deixá-lo todos juntos como faziam o restante dos estabelecimentos comerciais.

—Não estão no seu escritório? — o pai passava praticamente o dia inteiro trancado no escritório, atendendo as ligações, fazendo reservas e resolvendo os assuntos de papelada da pousada, ali era o lugar mais provável.

—Acabo de vir de lá.

—E na cômoda em seu quarto?

Seu pai acenou e fechou a porta novamente.

Assim que ele se foi Yukari correu para olhar debaixo da cama, mas estava vazia, nem sinal da raposa.

Ele podia estar simplesmente dando mais um de seus passeios por ali, fazendo-se sabe lá o que, mas e quanto ao seu feitiço? Mesmo quando ele não estava o feitiço permanecia e ninguém nunca vinha ao quarto de Yukari, mas então isso queria dizer... Que ele havia ido embora?

Yukari sentou-se no chão sem reação, o grampo de cabelo caiu de sua mão e rolou para debaixo da cama.

Ele simplesmente... Se fora?

...

Desde que começara a trabalhar como professor, quando Kakeru iniciava um assunto novo em classe ele gostava de, primeiro, mostrar as fórmulas passo a passo e então responder junto com os alunos de uma a três questões no quadro negro — uma das quais certamente estaria na prova, talvez com palavras diferentes, mas os números e, portanto os cálculos, ainda seriam os mesmos, essa era a sua maneira de ajudar para que, pelo menos, nenhum de seus alunos terminasse com a prova zerada.

—... Assim, o vértice forma uma parábola com a concavidade voltada para cima, e o eixo de simetria...  — ele estava dizendo.

Mas quando estava virando-se para olhar a classe, alguém tirou a rede de borboletas da sua mão, e surpreso Kakeru virou-se novamente naquela direção.

Ayaka Shiori sorria travessamente escondendo a rede de borboletas nas costas.

—Professor, todos os vaga-lumes vão escapar assim!

Ela estava linda usando uma regata azul clara que lhe deixava um dos ombros desnudos e, caindo-lhe até pouco acima do meio das coxas, deixava-se entrever apenas uma fina faixa de tecido jeans desfiado do short que usava por baixo.

—Vamos logo! — Shiori-chan o chamou entre risadas, agarrando-lhe uma mão e puxando-o consigo. — Ou não seremos capazes de ver à princesa vaga-lume!

Rindo juntos os dois caminharam, meio correndo, pela trilha sinuosa do bosque em frente à rua onde Kakeru morava, o qual ele sempre gostava de cruzar quando estava indo ao trabalho ou voltando para casa.

—Shiori! — ele a chamou rindo, ajeitando os óculos para que não lhe caíssem do rosto — Se continuarmos correndo desse jeito nós vamos espantar a todos os vaga-lumes!

Soltando sua mão ela correu a frente, com os cabelos balançando ao vento, sua risada era como música aos seus ouvidos, Kakeru certamente gostava do som de sua risada, e também na forma como seus lábios se dobravam e curvavam naquele sorrisinho travesso e como a palavra professor parecia soar diferente quanto dita por ela, e sempre tão cheia de energia, mas de constituição delicada, e pele tão alva... Kakeru só queria alcançá-la, abraçá-la e protegê-la.

Ele poderia ouvir o som de sua voz para sempre.

—Vamos professor! — ela o chamou, acenando-lhe por cima do ombro, e então rindo mais uma vez saltou para fora da trilha e ocultou-se entre as árvores.

Kakeru a seguiu por entre as arvores e sentou-se no pequeno barquinho que agora deslizava suavemente por um rio, cujas águas pareciam reluzirem prateadas como se fossem feitas de pura prata líquida, ele mergulhou a mão ali, mão não pôde sentir a gelidez da água.

Shiori recostou-se ao seu peito com um suspiro satisfeito.

—Professor. — chamou-o suavemente.

Ela inclinou o rosto para cima, buscando-o com olhos fechados, Kakeru tirou sua mão da água e tocou-a delicadamente no rosto e inclinou-se para beijá-la.

Kakeru acordou sobressaltado em seu quarto, jogando para longe as cobertas e, ainda com a respiração pesada, passou a mão pelos cabelos, que tipo de sonho fora aquele? Por que ele havia sonhado com Ayaka-chan? Engoliu em seco.

—Foi apenas um sonho. — disse em voz alta, parecendo querer convencer a si mesmo — Sonhos não querem dizer nada.

Mas, mesmo enquanto dizia isso, não conseguia deixar de pensar no toque macio da pele de Ayaka-chan sob sua mão, e na forma como ela inclinara cabeça procurando-o... Tão adorável.

Curvando-se sobre si mesmo e cobrindo o rosto com ambas as mãos, Kakeru grunhiu.

O que estava acontecendo com ele?!

Sobre sua escrivaninha estava a única fonte de luz do cômodo: um pequeno relógio despertador digital que emitia um tênue luz azulada e acabara de marcar as três da manhã e a data era 1° de janeiro.


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Notas finais do capítulo

Olá e obrigada por voltar.
Se chegou até aqui, o que achou desse louco sonho que o professor Haruna teve no fim do capítulo? E será que alguém já tem um palpite de quem é essa misteriosa mulher na escuridão e por quem ela está esperando? Quero muito saber sua opinião.

Curiosidades do Japão:

1- O "festival obon" é um dos principais feriados japoneses, que celebra a vida dos antepassados, comemorado durante o verão (geralmente em agosto para coincidir com as férias escolares), as lanternas são usadas para iluminar o caminho das almas dos antepassados.

2- O primeiro sonho do ano: segundo a tradição popular, no Japão acredita-se que o primeiro sonho do ano pode tornar-se numa premonição que definirá o seu ano.



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