Lacrimosa escrita por Sem Nome


Capítulo 2
A praia e o padre


Notas iniciais do capítulo

Segundo capítulo, pessoal.
Fiquei muito feliz com as boas vinda que eu recebi! Obrigada por ainda lembrarem de mim, seus lindos!
A propósito, gente: quando eu disse que a história seria bem mais crua que Rin Casaco Marrom, eu quis dizer que ela tem um tom bem mais pessimista (vocês vão perceber), mas eu diria até que é menos violenta. A classificação é 16 anos mais porque tem mais sexo, mesmo (até porque a influência da relação que a Rin vai ter com o Len move bastante o andar da história).
Enfim, espero que gostem do cap 2. Pretendo deixar os capítulos mais curtos mesmo (percebi que gosto bastante de livros com capítulos curtos, rsrs).



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Rin se saiu da casa da tia para logo descobrir uns tantos outros que compartilhavam de histórias gêmeas. Esse aqui nem conheceu o pai e a mãe morreu de qualquer coisa nas tripas. Aquele ali perdeu o pai d’um tiro de poliça. O outro acolá é filho de mulher da vida. Vários e vários et ceteras aparentados que deram no mesmo resultado desamparado: crianças ossudas perambulando pela cidade em busca do quê colocar na boca para acalmar o estômago.

Foi simples para Rin encontra-los, de modo que não passou muitos dias sozinha. Diz-se que meninos com estrelas ruins se acham que nem pombos, como que por um instinto primitivo de sobrevivência. E não houve saudação nem convite, apenas identificação espontânea e irresistível que impeliu Rin a ir-se com seus semelhantes.

Isca, ímã, farol forte demais.

Não eram muitos nem poucos – talvez cinquenta, talvez cem –, mas ninguém lograva contar crianças sempre inquietas e em movimento, aí o jeito era arredondar a conta para definir o tamanho do bando em questão.

Nos primeiros meses, Rin chegou a conhecer o armazém abandonado. Contam que houve um tempo em que funcionava para guardar os grãos e o algodão trazidos da cidade do interior antes que fossem empurrados para dentro de navios. Os navios então deviam de desovar a carga em terras além-mar que Rin não conseguia nem atinar como eram. Entretanto, a Coroa resolveu construir novo porto maior e melhor, para mais além da praia, e o velho armazém não tardou a ser trocado por outros mais importantes.

Por bem ou por mal, serviu a partir daí para proteger da chuva e do vento umas dezenas de garotos vadios. Aliás, boas noites de sono foram as que Rin passou no velho armazém. Reclamar não podia de frio ou perigos, e até lhe pareceu por algum momento que a existência ali haveria de ser melhor do que a convivência com os irmãos mais velhos.

Mas aí vieram as reformas na cidade e, com elas, a demolição do velho armazém. Ele não tinha mais utilidade e era decrépito, enfeava a vista e juntava pragas. Desmanchá-lo foi a decisão mais acertada porque se buscava apenas o bem da cidade.

Desta feita, Rin tinha onze anos quando foram todos parar nas ruas, nas pontes e nas praças. Foram se habituando, ela e os outros, a se grudarem na hora de dormir e a botarem dois ou três do bando como sentinelas durante a noite. Alguém ouviu de algum lugar que os poliças davam fim nos mendigos adormecidos largando pedras pesadas em suas cabeças. Mas não se pode ter certeza disso. O povo gosta de inventar histórias.

Nesse interim, entretanto, foi que Rin conheceu o padre da igreja em frente à Praça Pequena. Ele, ajudado pelas freiras, servia comida aos famintos depois da missa de domingo e se apiedou do pedaço de gente de cabelos louros que comia a sopa com pão afastado dos outros para que não tomassem sua refeição do dia.

A ele lhe pareceu que Rin era meio desigual dos demais. Tinha algo de diferente no jeito dela de olhar para o resto; parecia estar pensando em alguma coisa enquanto mastigava a carne dura que boiava no caldo. O padre quase que conseguia perceber a dificuldade que era juntar um pensamento com outro para arranjar uma conclusão, mas o que importava era que ela estava raciocinando – filosofando, por que não? – alguma coisa, e não apenas gritando e cotovelando como era de se esperar.

Então, foi-se chegando. Passou pelas freiras, atravessou os arbustos, contornou as árvores, tudo como quem não queria nada. Devagar, devagar, para não assustar:

— E a sopa? Boa? – sentou-se no banco, mas guardou distância. Se Rin quisesse, podia procurar outro lugar para comer.

Rin fez que sim com a cabeça, porque a finada irmã ensinara que era mal educado conversar com a boca cheia. Já tinha visto o padre. Ele falava bonito latim e parecia alto e esguio com a batina cumprida. Achava-o jovem e formoso, com seus óculos redondos e seus cabelos castanhos.

— E qual sua graça, se me permite perguntar? – o padre endireitou os óculos e desviou o olhar para o grupo de meninos perto das freiras. Ele costumava ordenar que a comida dos pequenos fosse servida antes da dos adultos. Não lhe agradava o pensamento de homens feitos competindo alimento com crianças.

A cabeça de Rin pendeu um pouco, e ela refletiu antes de responder.

— É Katherine, seu padre. Mas ninguém vai saber quem é se o senhor for procurar por nenhuma Katherine. Todo mundo me apelidou de Rin, desde o tempo de mãe.

— Pois fica Rin, então – o padre sorriu. Não era sempre que um dos meninos se mostrava prestativo – Meu nome é Kiyoteru. O padre da igreja.

Ela fez que já sabia disso com um movimento de ombros e engoliu mais comida enquanto Kiyoteru não matutava outra pergunta para fazer.

— Você tem muitos amigos, Rin?

— Serve o Leão?

— Leão?

Rin apontou para um vira lata amarelado e com focinho largo, os olhos muito pretos meio encobertos por uma pelanca mole. O cabeção no bicho se ergueu ao ouvir o nome, e Kiyoteru percebeu que Leão mastigava um dos ossos que por vezes vinha no meio do caldo.

— Achei na praia, escondido na areia. Ele é velho, seu padim. Não sabe mais arranjar comida só. E manca dessa pata aqui – ela mostrou com o dedo a pata traseira direita – Eu que dei o nome. Gostou?

— Gostei – mas o Padre Kiyoteru indicou com o queixo o bando lá longe que já terminava a refeição – Mas e amigos gentes? Não tem?

— Deles eu tenho raiva, bastante – Rin virou o prato de sopa e sorveu o que restava – Aqueles ali vivem tomando minha comida. E aqueles outros gostam de me bater sem motivo. Ninguém mexe com quem é maior, e o problema é que eu sou menor que todos. Leão não morde ninguém porque é um medroso; não tem serventia pra defender. Mas eu deixo que me siga assim mesmo.

— E por que fica junto deles, assim? – o Padre Kiyoteru estava acostumado a lidar com moleques bem integrados em sua coletividade. Arredios, agressivos, unidos. Não queriam saber das escrituras ou da ajuda divina. Nunca antes que se deparara com um solitário pensador.

Rin quase riu da pergunta. O Padre Kiyoteru impressionou-se com o sorriso de deboche que ela deixou escapar e com os olhos azuis que pôs em cima dele, como que dissessem em silêncio que ele era mesmo um bobo. Não, não. Não era que nem eles; era sagaz, seus olhos perfuravam.

— E ir pra onde, seu padim? – saltou do banco, Leão levantou-se para acompanhar – Ou é eles ou é sete palmos debaixo da terra.

O Padre mandou que esperasse, porém. Tirou de um dos bolsos da batina um medalhão de Nossa Senhora e entregou para ela e disse que poderia visita-lo quando quisesse conversar ou pedir algo que achasse que ele pudesse providenciar. Decidiu ali e naquele momento que salvaria aquela alminha que não tinha culpa das circunstâncias em que se encontrava. Solicitou o apoio das freiras, escreveu um sermão simplificado para que fosse facilitada a compreensão, colocou um pote de água para Leão na entrada da igreja.

Rin tinha salvação; era esperta e escutaria a palavra de Deus. Se o Padre Kiyoteru conseguisse ajudar pelo menos um daqueles seres abandonados e largados pela cidade, poderia, quem sabe, alcançar os outros, também. Um efeito dominó! Um ciclo virtuoso! O dever maior de um padre!

O padre Kiyoteru ficou sabendo, logo no dia seguinte, que Rin trocara o medalhão de Nossa Senhora por comida no Mercado Central. Não pôde deixar de gargalhar frente à notícia. Não havia problema: Deus perdoava – e ele, igualmente.  

 


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Notas finais do capítulo

Eu costumo sempre editar o capítulo nos dias depois que posto. Mas é só pra ajeitar um erro de gramática aqui, uma repetição de palavra ali. Nada que mude essencialmente a história.



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