tende piedade de nós escrita por scarecrow


Capítulo 1
capítulo único.




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tende piedade de nós

Queimava.

Sentia seu corpo inteiro queimar, feito o inferno. Seus órgãos internos viviam em combustão completa, irradiando calor por sua pele áspera. E como se todo líquido tivesse evaporado junto do suor sujo de suas costas empoeiradas, ele engoliu seco. 

E tudo porque pecava. 

Pecava tanto que sequer sabia o que fazer. A coragem, que sempre foi de seu feitio, desaparecia por apenas ponderar a confissão de suas perversidades. À nenhum padre nunca disse nada; tinha medo. Somente ele e o Senhor eram conscientes de seus erros estapafúrdios. Por isso, a culpa pesava tanto em seus ombros que escorria até seu peito, onde inflamava.

Inflamava tanto que doía.

Mergulhou-se tanto dentro de suas próprias mazelas, que carregava em suas mãos magras a única ferramenta capaz de tirar de si aquele pecado imundo: o cilício. O cordão pesado e agudo estava limpo, duro e firme, perfeitamente alinhado para forçar sua carne ao caminho exaustivo até o perdão. O vento frio devorou seu tronco magro e desnudo, como se lhe incentivasse a continuar com o castigo mais do que merecido. 

Estava ajoelhado de frente para a cruz, olhos nos olhos azuis de Cristo.

Todos os seus problemas começaram por olhos tão claros como aqueles. Porque Salvatore tinha os olhos mais belos que Vincenzo já ousou enxergar em toda sua vida. Na primeira vez em que os viu, faltou-lhe o ar. Eram tão imensos e frios, que até mesmo a fala pareceu fugir. 

E ali, logo no seu primeiro ano de seminário, tinha descoberto que toda a beleza dos anjos cantada por poetas poderiam, sim, pertencer aos homens. 

Salvatore tinha aqueles olhos redondos, a boca fina e tão rosada que parecia ter sido esculpida pelo próprio Senhor. Era alto e esguio, do corpo magro e saudável, esculpido para  trajar os panos brancos da prece — e aquilo por si só poderia ser considerado um pecado. Ali, no meio das pinturas sagradas da igreja exagerada do cristianismo italiano, Salvatore fazia parecer que tudo no mundo tinha sido feito apenas para empoderar sua beleza singular.

Vincenzo só sentiu o ar voltar aos pulmões quando Salvatore iniciou o sermão em alto e bom tom. Sua voz era suave feito cetim cosido pelas mãos de mil árabes, e cabia em seus ouvidos como se fosse de um santo. Sentado na madeira torta dos bancos da igreja, Vincenzo sentiu que só saberia como respirar novamente diante daquela presença.

Na primeira vez, ele decidiu por confessar. Foi obducto até o padre atrás dos panos grossos, e contou a ele como tinha notado a beleza de anjos em um mero mortal, nascido do pecado do mundo como todos que na terra habitavam. A atitude foi prontamente negada. Nove vezes de Pai Nosso e sete o Cordeiro de Deus, foi o que teve como resposta.

Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo. 

Durante o passar daquele primeiro ano, Vincenzo rezou até mais do que precisava. As palavras de Deus que tanto repetia pareciam perder o sentido para si depois de um tempo, e toda vez que confessava vinha um castigo maior — algumas orações sequer sabia como eram cantadas. Vieram greves de fome. Dias sem vinho, água. Sem direito a um banho sequer. Alguns dias, tinha que carregar pesos em nome do Senhor piedoso até suas colunas dolorosas se curvarem, colocando-o no posto que merecia. 

Não coincidentemente, tinha passado a habitar os sermões de Salvatore. Sonhava com seus olhos bonitos e sua voz amarga proferindo sons proibidos pelo seminário. Com os cabelos loiros e escorridos, oleosos e bagunçados entre lençóis. Sonhava com coisas que lhe trariam castigos maiores do que qualquer oração ou dias de fome. 

O seminário sempre foi seu sonho. Cresceu ouvindo de seus pais que não existia maior valor para o homem do que os ensinamentos de Deus. E depois de ter perdido a vida paterna para o mundo, tornar-se parte da fé era o máximo que pudesse fazer para sua mãe e seus outros seis filhos. Não ousava em desejar dinheiro, porém deixar de ser um estorno já era ajuda o suficiente. 

Vincenzo acreditou do início ao fim que aquilo era vontade do Senhor de lhe colocar no caminho sagrado. Porém, desde que obteve idade suficiente e iniciou os estudos na instituição, sentiu que nunca esteve tão longe das coisas que desejava.

Porque, ao mesmo tempo em que se tornava ciente da presença de Salvatore, Salvatore se tornava ciente da sua. Cumprimentava-o pelos corredores do seminário e o ajudava a suportar os castigos dos padres. 

Diferente de si, Salvatore estava já no último ano de estudo e de prática para poder se tornar oficialmente padre. O caminho para salvação era a si predestinado como fidalgo, e sua laboração no seminário era invejável de tão imaculado. E por isso, Salvatore era cheio de direitos e regalias. Trazia-lhe sopas quentes, com legumes coloridos e bem cozidos, diferentes dos pães secos que davam-lhe a noite. Dividia seus copos de vinho escondido dos olhos de todos menos de Cristo durante a missa. Dava-lhe o prazer de ouvir suas risadas densas, como se ele realmente fosse feliz no meio daquilo tudo.

Vincenzo não acreditava que era feliz.

Acreditava, sim, em seu Senhor e em seu caminho sagrado para a paz suprema, mas sentia que era impossível conseguir algo próximo da felicidade plena em terra mundana. Mesmo que pudesse conviver com Salvatore, ouvir das suas risadas e comer de sua comida. 

Salvatore era tudo de mais precioso que existia em sua vida desde o início daqueles dias. Junto de toda a alegria que Salvatore o proporcionava, Vincenzo recebia também os castigos sobrecarregar seu corpo. E Vincenzo tinha aguentado, cada um deles, até simplesmente não dar conta mais. Com o cilício em suas mãos, ele percebeu que não tinha coragem. 

Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo. 

Era tolo, imundo e não merecia a piedade do Senhor. E sem valentia mais para encarar os olhos claros de Cristo crucificado em sua frente, deixou o choro silencioso cair em cima das suas unhas roídas. Era fraco, feito um não-cristão, que não conhecia o poder da Nossa Senhora de alcançar a fé daqueles que tocavam.

Vincenzo tinha se tornado o próprio pecado do mundo. 

Era a própria maçã podre, murcha, cheia de desgraça, esperando que alguém viesse mordê-lo para arrastar consigo algum langoroso até o inferno. E ele sabia que a única pessoa propensa a tal sacrilégio era apenas Salvatore. 

Logo ele, que tinha sido tão bondoso consigo. Salvatore não merecia todos os pensamentos profanos que rodeavam em sua mente. Se tornaria padre em poucos meses e estaria mais próximo de Deus que muitos outros, e por isso deveria ser glorificado como tal. Reverendos não eram tocados por outras pessoas do jeito que Vincenzo queria tocar Salvatore. Não deveriam. Não poderiam, mesmo se quisessem. 

Seu choro ecoou entre as paredes divinas e nem mesmo suas lágrimas mornas conseguiram apagar o incêndio que queimava sua pele. As gotas gordas apenas salgavam seus dedos sujos de ferro. Seu castigo não era apenas para salvar a si mesmo. Oh, não. Era por Salvatore e sua casticidade, que não poderiam ser manchados por sua vontade asquerosa.

Subiu o cilício até a altura dos ombros, como se pagasse impulso, de modo que os ferros pontiagudos ficassem da altura de seu rosto. Tentou encontrar algum momento de paz no meio dos seus soluços, mas não conseguiu. O medo e o terror eram tão fortes que mesmo em prol de outrem, Vincenzo conseguia se submeter às vontades da Igreja. 

Não chegou a abraçar a corrente em suas costas. Talvez por vontade de Deus, Salvatore tinha decidido ir até a pequena capela exatamente naquele horário, mesmo de madrugada, para conferir se sua bata havia sido esquecida ali. Perguntou, exasperado, o que por céus estava acontecendo. Vincenzo não encontrou palavras no choro para justificar sua presença. Deixou o cilício cair frente ao seus joelhos cansados, levantando a poeira acumulada no chão santificado durante o dia. 

Agarrou os cabelos castanhos. Não sei, disse, envergonhado pela própria sinceridade. O que é suposto que aconteça, acredito. E Salvatore, ainda incrédulo, foi até aquele que considerava amigo e o abraçou torto, ainda no chão.

Não! Vincenzo exclamou, nervoso consigo mesmo por trazer pessoa tão perfeita à sua altura. Não se permita sujar de minha imundície. Não você, que é tão virtuoso, digno de tanta santidade. Não você, eu imploro. E ele realmente implorou, de tronco nu caído no chão em uma reverência. 

Salvatore levantou o mais novo no instante seguinte. Não seja tolo, Vincenzo. Somos feitos da mesma carne, somos frutos do mesmo pecado. Voltou a abraçar o tronco molhado de suor, deixando as lágrimas molharem sua roupa. Vincenzo sentiu sua pele, que antes queimava, incendiar todo seu corpo. Quando estiver dando teus próprios sermões, verá que tal castigo não condiz com os ensinamentos que proclamamos. 

Não diga tais bobagens, Salvatore. Eu peco. Todo dia. Pequei por ti, também, por te trazer para dentro de minhas heresias. Não sou digno de seus sermões e não serei digno de meus próprios. Respirou fundo, entre os soluços. Entre aqueles braços que não se incomodavam com toda a impureza de sua imperfeição, Vincenzo sentiu-se mais próximo da confissão do que com qualquer outro padre escondido por uma tela fechada. Profano-te em meus sonhos. Desejo-te na carne e na alma. Quero-te mais do que posso querer qualquer homem, filho de Deus, contra todas as crenças do casamento divino. Com o cilício de volta às mãos, estendeu-os até o de cabelos loiros: castigue-me você, por minhas infrações.

Quando o toque cálido dos lábios delineados de Salvatore alcançou sua boca seca, Vincenzo sentiu o coração perder uma batida. Eram ainda mais macios do que tinha imaginado. O toque foi rápido, envergonhado, escondido, como era todas as vezes que bebiam vinho na taça divina da Igreja, exclusiva da missa. Sentiu falta do toque antes mesmo de ter acabado. 

Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo. 

Venha comigo, sugeriu. Quando for padre, e tiver meu próprio caminho até a Terra Santa. Ou quando for até às terras de infiéis, que nosso Deus tem nos guiado para evangelizar. O Senhor de tudo sabe, Vincenzo. E nos deu esses sentimentos por um motivo único e Seu, que está além da nossa capacidade de compreender. 

O vento parecia soprar mais frio ainda àquela madrugada de outubro. Vincenzo sentiu o rosto se contorcer em uma careta. Estava confuso como nunca. Não tinha como Deus, Nossa Senhora ou até mesmo o Espírito Santo perdoar tudo aquilo que faria quando aceitou a mão de Salvatore para levantar do chão.

Não bateu a mão nos joelhos, ou no tórax sujo para limpar-se do pó — continuou com a poeira até seu dormitório minúsculo, no canto do primeiro andar, como se aquela sujeira grudada em seu suor frio fosse prova suficiente de que estivera lá, na frente de Cristo, ao lado de Salvatore. 

Os dois não conversaram ao sair da capela. Tinham um segredo que ficaria apenas entre eles e o Senhor, que de tudo cuidava. Não sorriram ao se despedir pois sabiam que no dia seguinte, antes mesmo do amanhecer, se encontrariam mais uma vez para organizar o sermão da semana. E no próximo dia, da mesma forma. E no seguinte. E no outro. E assim fariam até o dia em que pudessem sair juntos do seminário e se esconderem atrás de seus próprios muros. Talvez fossem às ilhas da Índia, Vincenzo sonhou. Ensinaria aos índios do novo mundo a fala e as orações cristãs, ao lado de Salvatore. E talvez assim, pudesse, verdadeiramente, ser feliz. 

Sentado na beira da cama, esperou lhe chamarem para o banho e o desjejum rotineiro que sempre fazia antes do amanhecer. Estava de peito cheio, músculos lentos. O que antes queimava em seu corpo não tinha desaparecido, apenas mudado de sabor. Parecia esquentar sua garganta feito uma lã grossa. 

E baixinho, pronunciou:

Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo — tende piedade de nós.


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