Sucessão escrita por João Antônio G S


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Não tive tempo de revisar o conto e não terei por algum tempo. Perdão pelos eventuais -e certeiros - erros de qualquer natureza.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/775618/chapter/1

Acordei. Ofegante e olhos arregalados. O quarto estava agradavelmente escuro, saí da cama vagarosamente. Eram sete e meia da noite. Os carros, se arrastando na avenida comercial logo dois andares abaixo do meu reduzido apartamento. Fazia-se o som insensível de velocidade. Cruzei o espaço entre a cama onde repousava e a única janela do aluguel, fixada em frente e à esquerda da cama. E ela encostada na intersecção das paredes do lado direito com a oposta à janela do quarto. Abri as cortinas. A luz amarela e preguiçosa de um poste à frente iluminou-me a face e também, tímida e lânguida, parte do apartamento escuro que consistia em 3 cômodos: um quarto-sala, uma cozinha e um banheiro. Preferia deixar as luzes apagadas para que ficasse aconchegante. Não é a escuridão trevosa e também não há luz demais. Tudo repousava em uma gostosa penumbra. Apenas o banheiro e a cozinha permanecem no negro total. E entre as entradas desses dois cômodos, a porta de madeira desgastada da moradia. Poucos metros adiante dessa última entrada, a janela onde me firmo.  As cerâmicas são de um marfim fosco envelhecido. O teto e a parede: um branco desbotado chegando a uma tonalidade cinza pela velhice da tinta. Ao lado direito da janela, e adjacente a ela, um guarda roupa marrom escuro e uma estante de livros bagunçada tomam pouco espaço. Aliás, a casa inteira mantém-se numa desordem parcialmente organizada: livros, roupas, meias e sapatos espalhados pelo chão, penduradas onde fosse possível; no móvel sustentante da televisão – defronte ao velho, mas bem conservado, sofá marrom escuro de dois lugares –, discos jogados em todos os cantos; utensílios domésticos pequenos dos mais diversos, deitam-se sobre a pequena mesa de duas cadeiras ao lado esquerdo da janela. Sabia que, de alguma forma, o estado presentificado de onde resido, reflete a condição psicológica minha nesse instante. Pelo menos era o que li em algum livro perdido da minha estante. Apesar das tentativas de organizar esse pequeno espaço, a náusea do desencanto constante não permitia a constância de qualquer estado psicológico moderado para manter o espaço circundante ordenado. É quinta-feira e não há o que fazer.

O centro da cidade ferve a quinhentos metros de distância à direita de meu recôndito. Esticando um pouco meu pescoço para fora da janela, posso observar os ônibus do transporte público. Os veículos e as pessoas andando, seguindo através de todos os pontos cardeais no centro citadino. Igual a muitos dos centros de cidades no Brasil, esse não era tão estupidamente grande: de maneira quase mística, daqui a poucas horas, a efervescência de automotores e contatos interpessoais se reduziram drasticamente. Até que o silêncio murmurante do sono urbano e daquelas poucas pessoas que ousam vacilar pelas ruas vazias se infiltrasse sorrateiramente nas altas horas da noite quase completamente esquecidas. Não há grandes teatros ou cinemas luxuosos e não existem prédios tão altos como os arranha céus de São Paulo ou toda pompa fajuta de Nova Iorque. De fato, existe um shopping numa esquina; um grande relógio tosco e um terminal do metrô imersos em uma praça arborizada com 5 ou 6 paradas de ônibus espalhados ao seu redor, onde transeuntes, traficantes e pastores pregando com microfones ligados a grandes caixas de som improvisadas se empenham em suas vidas cotidianas. Além dos apartamentos entrecruzados em sem números de lojas de todas as espécies: calçados, roupas, eletrônicos, móveis, eletrodomésticos, bancas de jornal, loja de discos, óticas, ternos... A lista segue. Talvez, um dos únicos pontos em comum entre tantos outros centros de cidades, seja o que ninguém quer -  ou gostaria - de ver. Por isso, ignorado: os empecilhos das trabalhadoras e trabalhadores em seus caminhos de volta a suas casas e até mesmo o cotidiano dentro delas; poucos se importam com isso. E os obductos da luta vivente de moradores de rua, meretrizes, viciados e marginais vagando entre os outros transeuntes com suas vidas se deteriorando pelos meio fios. Ainda olhando pela janela enferrujada, sorri o sorriso hipócrita daquelas pessoas. Mesmo ao longe era possível ver de relance o brilho de um celular aqui e acolá iluminando os rostos cativos de seus usuários a refletir todo o tédio de suas vidas, refletindo - talvez - tudo o que gostariam de ser e nunca serão.

         Vesti minhas roupas: uma botina, um jeans, uma blusa preta desbotada e uma jaqueta, também em jeans. Sai do apartamento, tranquei a porta de madeira desgastada e desci as ásperas escadas cor de grafite. Virei à direita saindo do prédio construído em concreto armado, rústico e bruto, da década de 80 e iniciei a caminhada de quinhentos metros até o centro da cidade. Quanto mais me aproximo dele, mais quente torna-se o ar. Os barulhos e ruídos, intensos. Buzinas, atrito entre o asfalto e os pneus, vendedores ambulantes gritando as promoções de seus produtos receptados ou vindos do sudoeste asiático. Procurei qualquer farmácia próxima para comprar uma pastilha para dor de garganta e pequenos itens de higiene. Comprei-os rapidamente e dei meia volta para voltar à penumbra do meu quarto (também sala de estar). Ao compor o caminho de volta, percebo algo que não havia visto antes: cartazes de propagandas políticas grudados nos postes e muros. Os brados em nome da ordem, progresso, conservadorismo e ódio envernizado em naturalização. As antigas fórmulas se repetem em um novo mais do mesmo. Gritos de ideais zumbis. Em mim todas as utopias já tinham morrido. O paraíso do progresso ou o paraíso metafísico era uma piada convincente. Outros discursos, apenas uma piada sem graça. Quem dera fosse-me dada alguma nova utopia. E mesmo assim não deixaria ela de ser uma utopia.

O caminho estava repleto de pôsteres e panfletos para as eleições ainda meses à frente. Rostos politicamente divinizados onde quer que minha visão alcance. Divinização em crasso erro. Um vacilo por nós contemplado: divinizar é a idealização mais ilusória ao que penso agora. Criar a perfeição e infalibilidade. O grande ato de auto-cegueira ideológica. A caminhada acaba. Chego na loja de ferragens na esquina da avenida comercial da cidade. Dois andares acima, minha casa. Sem que tenha percebido antes, na porta de ferro – quase pintada, quase enferrujada – do edifício completamente retangular, cinza e desbotado onde morava,  havia um adesivo de um desses políticos saudossistas da pior esteira possível (incrivelmente os mais bem sucedidos com um sem número de pessoas) que parecia se proliferar como um fungo danoso e insistente no solo de uma terra imunda, manchada pelo sangue ancestral inocente. Enrijeci meu semblante. Puxei o adesivo rasgando-o pela metade. Depois, arranquei a restante, sobrando apenas resquícios do papel adesivo no portão metálico.

Subi as escadas no lance de dois andares. Destranquei a porta, entrei e a fechei. Joguei as chaves na pequena mesinha ao lado esquerdo da cama, à direita da porta principal e da porta do banheiro. Mais alguns passos e sentei-me no sofá de dois lugares praticamente no meio do apartamento em frente da televisão de tubo encostada na parede na metade esquerda do aposento. Devido ao ângulo da luz entrando pela janela (quando aberta), aquela era a parte mais clara da sala-quarto. Apertei o botão e ela ligou, segurei o controle em uma de minhas mãos: “A inflação sobe, veja como...”. Troca. “Com a intensificação da guerra, o número de imigrantes aumenta. Hoje mais de mil e quinhentos imigrantes vindos da África e do Oriente médio morreram quando um navio afundou na travessia do mediterran...”. Troca. “Veja agora as notícias dos famosos no TV famosos! ”. Troca. “Maria Eduarda, como pode fazer isso com sua irmã? ”. Troca. “ Neste reality show vale tudo por dinheiro! Não perca, hoje às 22 hora...”. Enquanto a TV permanecia ligada, me distanciava, imóvel, de seu conteúdo. As palavras não importavam mais, não havia pretérito, futuro, ou tempo verbal. Apenas a contínua sucessão vazia do presente, como uma locomotiva silenciosa que viajava diante meus olhos estáticos e desfocados em puro desinteresse medonho e incógnito onde tudo aparentava apenas não ser. Esse desânimo veio tão rápido quanto a minha memória de já ter lido sobre “náusea” semelhante em algum livro perdido na minha estante. Ou talvez no meu armário, caído entre os vãos. Mas, apenas aparentava. Afinal de contas, eu sou. As coisas são ao meu redor. Tudo repousa suavemente grave no espaço. As sinto, como minha existência, se desgastar languidamente através da ilusão psicológica – inexorável e essencial – da continuidade da quarta dimensão. Só as construções contidas na memória tornavam minha experiência atual compreensível. E fora a óbvia imanência da matéria, todo o resto repousava numa certa homogeneidade de improposito e irreferência. Subtraia do humano sua cultura e abstrações, resta apenas absurdo.  

Desligo a máquina televisora. Tinha o poder de direcionar minha atenção entre 23 canais de TV e, se bem desejasse, entre tudo o que poderia acessar em meu notebook guardado logo abaixo da televisão em um vão do móvel de madeira que sustentava o aparelho de telecomunicação. É muito fácil cegar-me ao caos do mundo com os aparatos do supérfluo e das distrações felizes; ou afogar-me completamente dentro de seu turbilhão perturbador – geralmente, opção que não ocorre de forma consciente, creio. Formidável capacidade sobre o controle da informação. Me levanto do sofá e me encosto na janela. Olho para o céu observando as estrelas. Entretanto, não vejo nenhum cruzeiro, cinturão de deus grego ou signo zodiacal algum. Somente pontos jogados a esmo. A palavra que para organizar minha visão desses astros, surge com a palavra caos. Sinônimo da realidade em seu âmago, penso. Caos é a serpente violenta oculta sob uma rocha lisa e uniforme banhada pelo raios luminosos da elaboração humana, pronta para trucidar. Ou pétalas jogadas numa tempestade. Toda ordem instituída: apenas a invenção. Toda fórmula uma aproximação (nunca a coisa em si). Toda matéria e energia: resultado da causalidade que as formaram. Todo choque e consequência entres elas mesmas, igualmente, ocorrem em total contingência. Restritas apenas por seus respectivos limites. Onde, depois, imaginamos a ordem padrão do que chamamos de real. Mera meia-ilusão criada e mantida pelo encéfalo. Cada objeto, cada coisa viva, é tão singular como nunca poderia ter sido. Toda igualdade é apenas uma semelhança. Plena igualdade, nunca. Entretanto, mesmo tudo isso, são apenas abstrações do imponderável. E o que não seria representação quando o em si se faz inexpugnável? Apreender nos é imprescindível. Mas em absoluto… O absoluto é intrincável. E o real paira sob o absurdo.

Em disruptura do devaneio: percebo que minhas calças estavam rasgadas. Senti-as roçando irreflexivamente as pontas de meus dedos ao redor das pernas. Sai de minhas reflexões bruscamente e me surpreendi. Deviam estar rasgadas há tempos e não vi. Mal conseguia me lembrar quando e onde tinham rasgado à altura da coxa direita. Eram as únicas que tinha. Era tempo decomprar um novo jeans.

Pela manhã do dia que segue, acordei cedo. Saí de casa e andei até o shopping a cerca de oitocentos metros do centro da cidade. Não era grande nem luxuoso, mas tinha o mínimo de um bom shopping (mesmo que ausência de um cinema me entristecesse). Em uma loja de departamento, comprei uma calça jeans preta. A mais barata. Não tive a curiosidade de buscar por qualquer outra peça. Bastava-me a objetividade de encontrar uma calça jeans de cor escura, pagar e levar-me embora dali.

 Resolvi almoçar no local. O menos custoso: um fast-food da promoção do dia. Sem pressa, peguei meu pequeno lanche (transfigurado, por mim, semanticamente em almoço) e sentei-me numa mesinha da praça de alimentação colocando a sacola com minha nova calça, também, em cima da mesa. Comecei a morder a e saborear lentamente a carne, sódio e gordura engosmando-se numa massa cancerígena e molhada escorregando e bailando nas minhas cavidades e entranhas. Comi o hambúrguer e, agora, traçando minha batata frita, três jovens – como eu, apenas pouco mais novos três ou quatro anos no máximo – sentam-se perto sem me notar, estão muito ocupados conversando alto e contentes. Como não havia nada para fazer, decidi prestar atenção discretamente neles enquanto passava ketchup ao longo das batatas fritas e em seguida as devorava desgostosamente pois estavam macias e murchar pelo excesso de óleo. Um daqueles, falava muitíssimo alto (quase aos berros) se gabando, proferindo suas grandes proezas e casos hilários, edificando uma estátua caricata e cômica de si mesmo. “Coisa da juventude”. Se ali fosse eu, naquela mesma condição, talvez falasse as mesmas coisas. Mas, já reconhecia a insignificância humana. Consideramo-nos, de fato, seres únicos, inigualáveis, magníficos... E realmente o somos, tomando a vida rasteira dessa Terra como referência. Mas isso tudo é demasiado minúsculo. Tamanha é nossa insignificância, que nos reduzimos à maior piada sem graça do espaço-tempo. Há quem diga – sempre na antiga frase clichê – em sermos grãos de areia na imensidão tetra-dimensional. Particularmente, essa comparação cai no meu desgosto. Somos infinitamente menos que isso: ora, um miúdo planeta azul órbita um grande sol que é meramente estrela menor entre outras centenas de bilhões de estrelas orbitando a milhões de anos-luz do centro de uma galáxia em meio a outras imensuráveis, incontáveis galáxias; essas sim grãos de areia. Ou seja, toda humanidade e sua edificação reduz-se a um minúsculo pedaço de um bilionésimo de fração infinitesimal, intermitente e insignificante – realmente, insignificante – de um quark dum átomo qualquer.

Cansei das batatas fritas. As pus de lado me aquietando em minha cadeira e observando pelos cantos dos olhos e escutando aqueles jovens na primeira metade de seus vinte anos não tão deslocados temporalmente em relação a minha própria idade. Compreendia tudo o que era posto e dito por aqueles três. Assuntos completamente corriqueiros e "próprios" ao que punha à juventude. Mas me pareciam inscritos demais sob esteriótipos etários, medianamente afoitos desnecessariamente e levianamente irresponsáveis. Quanto mais tempo passava prestando atenção de maneira espiã suas conversas, deslocava-me mais e tediosamente daquelas questões. Porquê pareciam progressivamente inadequadas a mim. Se seriam esses os sinais do amadurecimento ou de um desencantamento prematuro, não posso dizer com clareza.

Deixei minha bandeja de fast-food, indelicadamente, encima da mesa. Ergui-me e coloquei minhas pernas em caminhada. Procurei o banheiro mais próximo. Entrei em um box, tranquei a porta de vidro escuro e fosco. Tirei da sacola minha nova roupa. Arranquei as duas etiquetas grudadas perto do bolso direito. joguei a peça por cima dos meus ombros de forma que não caísse. Tirei a calça rasgada do meu corpo e deixei-a no chão. Peguei do ombro a nova veste, segurei-a com as duas mãos imediatamente à minha frente e a vesti passando uma perna depois da outra dentro do tecido e endireitando o jeans escuro até minha cintura. Fechei o zíper e abotoei o botão da calça. Coloquei a velha calça maculada na sacola da loja de departamento. Retirei-me do box. Caminhei até a pia e, em cima dela, um grande espelho comprido que ocupava toda uma parede. Contemplei-me no espelho avançando moderadamente sobre ele: meus olhos estavam começando a ficar fundos e escuros. Havia ainda, um leve olhar perdido. E os cabelos chegando aos ombros estavam relativamente arrumados. Porém já perdiam o corte. Olhei para o lado encontrando uma grande lixeira, joguei fora a sacola juntamente com o velho jeans. Retirei-me do banheiro.

Passando pela pesada porta e atravessando o longo corredor que separava a área dos banheiros dos amplos corredores comerciais do shopping, um rosto conhecido passa por mim. Uma rápida e constante troca de olhares – recíprocos e reconhecidos - nos corta e seguimos em frente. Rumos diametralmente opostos. Segui. Adentrei os corredores, desci as escadas; dirigi-me rumo à saída do edifício. Em simultâneo, as lembranças de um amor passado inundam-me a memória. Ela - a memória - tem o péssimo hábito de, às vezes, inundar-nos com seu sabor doce.

Por todo caminho, até a meia-luz de minha cama, o esforço da não lembrança é vão. E em meio à pauperização blasé do enfadonho dia-a-dia, despontavam as lembranças de sentimentos antigos. e mesmo a paixão e o amor parecem se enferrujar e dissolver como uma peça de metal antiga. Sua natureza parece insolúvel à total compreensão. Eis aí, também, onde certa parcela de caos reina. Sentimentos são imprecisos e tentamos os guiar sob apertadas rédeas. Coadunar as idiossincrasias afetivas de duas existências, firma-se uma empresa exaustivamente imprecisa. Desvendar os anseios, desconfortos e desejos; interpretar os movimentos daquilo externo a mim, parecia uma obra igualável à tradução de um antigo dialeto extinto. Tentei me lembrar melhor daquele olhar conhecido que me cortou ao andar pelo corredor dos sanitários. Mas noutro tempo - um tempo irretornável - em minha memória, busquei naquele olhar o amor que um dia senti. Mas apenas pude-me lembrar que um dia amei. Uma constatação insensível. Como uma nota de rodapé que traça uma pequena informação. Esses sentimentos cálidos permaneciam distantes agora. Frígidos e impossíveis de incutir-se em minha ânima. Não me movia por eles e eles não faziam mover-me. Entretanto, sei que se os cultivasse, seriam de mais alento os dias meus. Entretanto, isso não me era dado no momento.

Ainda que, preponderantemente, e já a tanto tempo, permanecesse nesse entorpecimento - que me é tanto causado como auto-induzido -, algo aparenta correr suave pelas minhas entranhas. Um resto, uma  pequena aspiração de desejo. Subindo pelas veias, contorcendo as tripas e inflando o tórax. Quanto mais pensava nisso, tomava potência esse pífio desejo se incrementando progressivamente, remoendo a carne – de dentro para fora – como uma aranha agitada presa em sua toca. Uma pequena loucura que deixo crescer; uma insanidade onde outra matéria, tão macia e decadente como essa que me faz, pousa sobre a existência rotulada pelo meu nome. A arranha firma suas patas, remói as vísceras minhas. Inquieta. Docemente atroz. Podia, finalmente, sentir afeição em meus sentimentos. Era jubiloso, uma ponta de contentamento a se desdobrar. A despeito disso, essa nascente de ternura a me sobressair, não encontra alvo algum; sequer um ente. Sequer um objeto a alvejar. Ele desaba sobre si mesma e se coagula num charco inerte de paixão. Uma tautologia ignóbil. Ainda assim, pelo menos pude senti-la de relance: Paixão. Docemente atroz... Mas já era demais; queria suprimir essa torturante sensação zoroastra (ou estariam elas além do dualismo?). Muni-me dos calçados que havia atirado ao pé da cama quando entrei em meu apartamento voltando do shopping. Amarrei os cadarços, levantei-me de um salto sobre a porta. Passei por ela sem trancá-la. Era preciso me livrar desses pensamentos aracnídeos.

Lá em baixo, a temperatura e a luz minguavam. Fariam, mais duas horas de claridade. E o sol se poria num manto suave de cores róseas e anis. Caminhei por quinze minutos rumo ao norte da avenida comercial. Algumas lojas já se fechavam preguiçosamente e o movimento nas paradas de ônibus e na pista com quatro faixas de rolamento automotivas diminuiam paulatinamente. Penetrei a porta de vidro de uma lanchonete quase vazia. Repousei num banco macio e marrom frente à enorme janela, também de vidro, do limpíssimo estabelecimento. A garçonete. O pedido. A (rápida) espera. Eis-lo abaixo de minha cabeça, o alimento e o líquido num copo comprido. Nem conseguia me importar com suas qualidades. Bastava alimentar-se. Saciar e não me ser desgostoso. Passei a olhar a janela lateral. Do outro lado da rua, uma esquina. Preenchida por um prédio branco e sujo. Sem nenhuma sacada, sem nenhum contraste. No primeiro e segundo andares: apartamentos. Deviam ser como o meu: poucos cômodos, diminuto. Pelo térreo, uma loja de refrigeradores – prestes a fechar – e,no joelho da esquina, uma antigo e bem conhecido bar: fechado agora a alguns dias. Nunca fui de frequentar bares. Isso fugia a meu feitio. Contudo, a imagem degenerada daquilo que foi um dia um bom bar decadente, me entristecia. E agora, me enchia de um ar saudoso. As mesas e cadeiras de plástico azul pincelando toda a calçada. O estabelecimento propriamente dito: apenas uma cozinha e as geladeiras repletas de líquidos e mais líquidos. O piso, as bancadas, e as geladeiras obsoletas, sujas em levidão. Os jovens garçons, sempre meio tristes e sérios, ainda assim bem-humorados, serviam e riam o riso de seus atendidos. Seleto era o público: às vezes velhos. E em sua maioria, adolescentes e jovens-adultos. Tipicamente os universitários duma faculdade próxima. Não havia nenhum glamour. Sequer as paredes externas eram pintadas. Mas eis logo aí onde as aparências se enganam, todo glamour necessário emanava da felicidade do encontro que o local (simples; mesmo imundo) proporcionava àqueles e àquelas espreitando suas mesas de plástico azuis. Aquele espaço por si, não era nada. O punhado de coletividade ocupando-o quem o transformava em um empreendimento recreativo sui generis. Suas luzes amarelas bronzeavam as sombras fantasmagóricas da noite e as vozes descontraídas povoavam o silêncio e inércia das ruas.

Fora a memória, a existência – e ela é irrevogavelmente presentificada – do bar, fixava-se solidamente triste no outro lado da rua. O banner, logo acima das grandes portas fechadas de ferro esmorecido, balançava rasgado à brisa do fim da tarde. Jaziam na escuridão das luzes apagadas, duas mesas de plástico restantes – uma delas, virada de lado com um par de pernas para o ar como um inseto moribundo – amontoadas ao redor de três geladeiras enferrujadas, juntas e muito compactas, ocupando pouco espaço nas trevas daquela larga calçada. Ridículas em sua morbidez. Aquele pequeno pátio, irradiava consternação e decadência total. Mas não... e agora me vejo banhar sobre minha própria sandice! Como poderia a matéria morta e inorgânica irradiar tristeza e morbidez? Eu quem as irradiava sobre aquelas existências, que por sua vez se voltavam contra mim novamente. Sem a consciência minha, elas eram indeterminadas. Sem mim, ela era apenas um ente não percebido. Uma massa de coisas sobre coisas inomináveis, irreconhecíveis.

A noite se abre sobre as lajes e telhados quando termino meu lanche. Saio da minha mesa e caminho até o balcão. Uma minúscula fila se mobiliza frente ao caixa. Um casal dão-se as mãos logo a minha frente. Cochicham e riem juntos. Continuam cochichando e pouco tempo depois, o semblante de um deles enrijece. Os dois se calam e um ar grave desponta. Ficam sérios. Imagino que seja apenas uma pequena animosidade e em breve se resolveria.

Como era mesmo que duas pessoas se engajavam em relacionamentos profundos? A lembrança dessa relação humana básica me falhava. Pude apenas me lembrar de como deslizavam para um fim, seja ele mais doce ou amargo. O sentimento aracnídeo me remonta. Tíbio, dessa vez. A emoção saltante, no entanto, agora, não era das coisas e sentimentos que me tinham concretizado, desgastado e, por fim, acabado. Me incomodava, então, a perca de potência ante a decisão. O amargor e raiva da inação proveniente do medo e insegurança, surgiam com todos aqueles momentos que considerava cruciais no trato social próximo e íntimo. E eles derretiam-se pelos meus dedos quando aparentavam aterrissar sobre minhas mãos. Mesmo com toda sociologia e psicologia, a ação daquilo fora de mim permanece sempre a certo nível de imponderabilidade. Quando podia deduzir claramente que um evento, um ato fazia-se promissor e então logo me escapava. Todo ensejo de sua potência, as possibilidades que se rascunhavam a partir dela, a beira de se concretizarem, morriam. Contudo, mesmo mortas, as lembranças resilientes dos fracassos, restavam. Antes se realizassem e se tornassem um estorvo, um malgrado; do que nunca se condensar e fazer restar a tortura que é a resistência da reminiscência de toda potência que aquele ato irrealizado carregava em si. “De tudo resta um pouco”, me dizia Drummond. O problema, era que me restava demais. Memória demais, potência - irrealizada - demais. Pago no balcão. Sorrio por simpatia, digo boa noite. E parto.

 As ruas estão fervendo, em sintonia com o sol de meio-dia. Por hoje, desistiria de procurar emprego. A pressa não atordoava exclamantemente. Restava-me renda ainda a renda de herança de minha mãe para oito, quem sabe, nove meses de subsistência. Parei à sombra das árvores de uma praça onde havia um banco de concreto rachado e quebrado em alguns pontos. Uma grande escola à frente. Os portões em grade estão fechados e detrás deles centenas de adolescentes conversam e brincam. O sinal toca, o funcionário da escola abre os portões e todos os jovenzinhos e jovenzinhas saem da escola em um mar de gente, como quando o boiadeiro abre as porteiras e o gado corre amontoado. Alguns saem correndo para pegar os ônibus nas paradas próximas ou para caminhar depressa até suas casas. Outros se espalham na praça coagulando-se em pequenos grupos. Uma parte deles e delas ficam em duplas ou por si sós, olhando para os sapatos e com o olhar disperso.

Apenas gado, é isso que somos: manada engordando para o abate. Aquelas turmas de ensino médio engordavam para as universidades (idealmente, pois apenas uma parte se sua fração chegaria a tanto), onde engordariam muito mais e, quando finalmente de lá saíssem: abatidas e empacotadas, vendidas no mercado. Sentado em meu banco, não consegui mais ver jovens estudantes, mas sim futuros belos cortes de carne processada sufocadas em saquinhos a vácuo com seus respectivos rótulos; validade. Àquela altura, era eu um corte de carne estragada. Bastava de repousar sob a sombra do curral, talvez fosse prudente debruçar-se em uma obstinada - mas de má vontade - busca por labuta. E assim, cedia letargicamente a cada esquina translada.

         Cheguei a minha residência às oito da noite, tirei os sapatos assim que atravessei a porta. Instantes depois despi minha calça nova que se juntou aos sapatos no chão. Liguei a TV: Desenho animado reprisado, novela idiota, jornal. Assisti as notícias por 15 minutos, sendo elas interrompidas pelo horário político eleitoral obrigatório. Assisti atentamente, afinal, impreterivelmente, teria de votar. E não desejava me desperdiçar quando no apertar de uns botões - mesmo que tal ato não fosse uma total resolução à problemática política. Depois dos longos (nada reveladores) minutos do horário eleitoral a programação normal voltou: mais uma novela, programa de auditório apelativo; et cetera e mais do mesmo. Desliguei a televisão. Levantei do sofá, bati os pés pelos metros quadrados do lugar, acendi a luz da cozinha, agarrei um copo em cima da pia, enchi de água da torneira, bebi com calma e o telefone tocou, deixei o copo na cozinha e andei depressa até o telefone na mesinha do lado da cama. O barulho drim-drim irrita. Atendi. Não me preocupei em dizer “Alô”. Reservei-me em escutar o outro lado; esperando primeiro sua identificação. Respondo a ligação inteira com monossílabos e desliguei o telefone. Acabará de falecer meu pai. O funeral, daqui a dois dias. Não dei muita importância ao evento. Seria ele tedioso. Além de triste. Todas as ilusões da excelência, heroísmo, romantismo e das autoridades parentais tinham-se perdido na infância; na percepção da ordinariedade trivial e eventual iniquidade dos entes familiares. O encanto mágico e otimista da extradionalidade familiar, frequentemente se revela um total embuste ao factual. Deitei na cama, sequer decorei a data do evento funéreo e adormeci, com um ligeiro sentimento de consternação.



         Levantei pela madrugada, cocei os olhos e levantei-me com preguiça. Dei passos tortos-sonolentos até chegar à tomada da TV e puxei o plug do encaixe energético da parede. Fui para cozinha beber um pouco mais de água. O som do vidro do copo vazio ao repousar na pia fria ecoa solidão. Desliguei a luz da cozinha ao sair do recinto e sentei-me no meio do sofá em frente à televisão. A olhei um pouco na escuridão. Ergui-me de novo, desta vez, em direção à janela de vidro e bordas de ferro fechada. Abri-la (as cortinas já estavam abertas, quase nunca estão fechadas). Um vento gélido adentra. Voltei à TV. Me agachei. Agarrei ela com os meus dois braços levantando o pesado tubo do aparelho. arreguei-o até a janela e lancei a máquina no solo da rua dois andares abaixo sem hesitar. O barulho seco do plástico e vidro estridente do instrumento obsoleto amplificou-se com o silêncio escuro da madrugada. Fechei as janelas lentamente. Depois as cortinas. Retornei para o descanso do sono.



         Fim de semana. Tanto faz, não importa que dia nascia. Me eram irrelevantes. Passavam como areia por entres os dedos. Eles não me eram mais necessários. Mas sabia que estava no fim de semana. Talvez domingo. Bastava olhar pela janela: poucas pessoas na rua, menos carros rodando. Passava-se mais uma semana. Continuava repousando no entorpecimento pacato de minha mediocridade, e o mundo, na diversa constância de sua violência. Logo o mês acabará, depois o ano. E a esperança, a cada dia que passa, é uma gota de meu sangue que se coagula e para. Matei uma mosca no ar diante a mim. Olhei a palma da minha mão, lá estava ela: morta, achatada. Saia uma gosma liquida branca de sua cabeça lacerada e deformada. Do outro lado do oceano, uma criança explodia o crânio de um rebelde em qualquer guerra santa, o leite da geladeira dum anônimo esgotava-se, o amor de alguém eclipsa. Tudo está cedendo. Em breve seria eu um pedaço orgânico de carbono podre debaixo da terra quando atingisse a inexorável não consciência, o fim dos impulsos corporais vitais, a extinção da existência correspondente à matéria sentada nesse sofá de onde divago. De qualquer forma, nunca houve a prerrogativa em existir. Sempre foi uma causalidade.

         O domingo - ou seria sábado? - veio e acabou. Seguiu-se segunda, ou a terça; e era sábado, ou domingo, novamente. Depois outra semana. Logo toda tentativa de projeção futura era o grande não saber de coisa alguma. Não havia nada que garantisse minha existência além da minha própria matéria decadente reclusa em meus lençóis. Não havia dado eu a ela seu sentido, apenas por mim instituído. Por isso, olhei para a mesinha de madeira escura lado a lado com a cama, acima dela, a caixa de papelão do remédio para garganta. Ali vi o quanto ela era eu; e eu, ela. Observo a caixinha medicinal em tom de desafio, apenas dois entes aguardando que alguém nos dê alguma definição. Algum projeto de vir a ser. Nada com que ela - a caixa de papelão - deva se preocupar. Lhe faltava consciência para se angustiar com o fato de ser e ocupar algum espaço. E, de fato, um conjunto maior de humanidade lhe havia imbuído de um senso de ser além dela. Quanto a mim, transbordava consciência. Consciência da consciência própria. E ela, que me é - irrevogavel -, esperava o sentido de ser; dos próximos movimentos e ensejos; meios e fins. Me faltava lançar-me num devir. Tentar, com afinco, terminar-me. Mesmo aqueles e aquelas sem lucidez disso, inconscientemente, em automático, realizam o empreendimento de se auto-fazer, por menor que seja. Dirigidos pelos mitos, os trabalhos, pelo cientificismo, pelas religiões, hábitos, ideologias... Emanava delas - e quando além delas, de outras pessoas -, para elas mesmas, os significados. Sabia disso. Por isso, eles me pareciam moles, contingentes, taciturnos, fracas como um remédio que se usa demasiado… e não me transpassavam encharcando-me em suas redes de nexos. Pouco podiam significar-me, agora, mesmo que tentasse. Continuaria eu então, por mais um tempo, pouco diferente daquela caixa de papelão.    



         Semanas passaram, as crianças continuavam a sair das escolas como gado quando abre-se uma porteira; os cartazes e adesivos de propagandas políticas permaneciam fixados nos muros com cercas elétricas, nos postes, nos carros... Minha calça nova começara a desbotar – como, quase tudo, se desbota com o tempo. Como anseio o não desbote... O trabalhar das máquinas, os fluxos das energias e rotina do proletariado continuava em seu ritmo automático: gado tecno-mecânico. E todo sentido e ordem que criamos ao viver desmorona, chegando-se – finalmente − ao nada absoluto, o vazio necessário e inexorável da totalidade da existência em seu significado oculto. De todo ponto onde se parte, chega-se ao caos da realidade em sua absoluta inconstância, não-finalidade e não-porque. É apenas estar impresso sobre a realidade. Tentar ficar de pé quando, igualmente, tenta-se extirpar as muletas metafísicas – o que se mostra um esforço penoso. Por isso, olhando para o abismo que é o ser e sua existência absurda, puxei uma cortina que o esconda só por um momento. Até voltar a, perturbadoramente, lembrar-me dele. Me levantei, tranquei a apartamento e parti pra lugar qualquer.

        Era noite e as luzes vindas das janelas dos prédios faziam um mosaico afórmico. Não era apenas noite como ela também estava avançada: poucos carros rodando, carência de pessoas no passeio público; silêncio e escuro. O frio confortável, a escuridão e o silêncio da madrugada são um convite à caminhada solitária (já que não há quem acompanhe). Lá embaixo, no mundo fora do meu apartamento ridiculamente pequeno e do controle seletivo do que é a realidade (ou as?), mesmo exposto aos perigos urbanos do cotidiano, considero necessário descer as escadas do edifício cinza, principalmente nos horários “rush” da cidade, e respirar o ar tóxico, quente e barulhento da avenida comercial. Olhar os ônibus apinhados de gente humilde dividindo as pistas com sedans. Observar a gente feliz, os velhos bêbados nas praças, os apressados e apressadas correndo pra chegar em qualquer lugar a procura de chegar-se a um abraço, um trabalho, não perder suas conduções públicas, pegar as crianças nas escolas, encontrar um namoro; enfim, qualquer coisa. Descer aquelas escadas pacatas, é estar de braços abertos à realidade. O real que não posso controlar, que é difícil de julgar de forma simples; que faz-me feliz e apunhala-me sem complacência ambivalentemente.

        Mas já era tarde, toda correria do dia e início da noite tinham passado nasruas. Só havia o barulho esporádico dos automóveis cruzando as pistas largas do centro urbano, das garotas e garotos de programa cochichando baixinho entre si, dos traficantes e seus clientes de alta renda, do atendimento dos funcionários do drive thru do McDonald’s; o som de uma guitarra de um show punk em um porão ao longe... toda hora é hora de tentar ganhar a vida, ou seja, dinheiro. Estava atravessando a rua, quando um ônibus vem passando. A princípio estranhei a condução rodando tão tarde da noite – era difícil pegá-lo por a esta hora. Acenei. O transporte parou. Entrei. Sequer tomei conhecimento de seu destino. Estava em um estado de entorpecimento vivente. Mal dei-me conta, muito tempo depois  (meia ou uma hora?), passava pelas casas e apartamentos das famílias abastadas, num bairro vizinho. O ônibus parou de frente a um dos mais luxuosos shoppings da localidade. Desci. Obviamente ele estava fechado, a exceção de uns restaurantes e bares contíguos a ele. Decidi ir para um deles. Um bar-restaurante de tema western: ambiente fechado com paredes escuras, teto e piso de madeira densamente envernizado mergulhados à meia luz. O ambiente estava calmo: nem lotado, nem vazio. Sentei-me numa mesa grande (para seis pessoas) de cadeiras inteiriças muitíssimo acolchoadas num canto negro aconchegante do bar. Pedi um copo de chá gelado ao garçom. “Fechamos daqui a 2 horas, tenha um bom drink”. Dois minutos: chegou o chá em um copo estilo chopp, dou um grande gole. Leve queimação gelada na garganta. Ótima bebida. Mais um grande gole. Finito. Descanso o copo pesado na mesa. Levanto a mão. O garçom. O pedido. Mais dois minutos. Outro chá. Gole. Queimação. Leve. Gelado. Doce. Prazeroso. Copo. Mesa. Lampejo de existência; novamente. Já desconhecia o motivo de estar em uma mesa bebendo bebidas geladas. Tudo estava sem graça ao meu redor. Assim como não houve motivo para chegar a essas cadeiras confortáveis, também não havia em ser a consciência baseada em carbono que atendia pelo meu nome. Então, eu soube, existo. Como a caixa de papel, o metrô que me leva ao norte, o gelo do copo de chá, o garçom que me sorri. Comecei a olhar fixamente nos cubos de gelo no copo esgotado após um longo gole, derretendo e cedendo uns sobre os outros em estalos agudos quase silenciosos. Naquele breve momento, mais uma vez, emergi das águas oceânicas gélidas e profundas do anestesiamento vivente e inspirei o ar da consciência de meu estado em estar carente de propósito: o fim para a existência; que, em minha própria, continuará a não haver. Pois neguei a ela a instituição de seu propósito por não ter conseguido fazê-lo até o instante onde aperto forte e angustiadamente a alça do copo espesso de vidro vazio de chá. Sabia de que precisava me instituir. Isso já não me era mais baço. Meramente não conseguia fazê-lo. O existir meu constitui-se análogo ao estado daquele copo. Restando-me somente residir no instante corrente; por hora, ausente de perspectiva à posterioridade.

        Levei o recipiente vítreo até a boca, bebendo a insípida, inodora, incolor e álgida água desgarrando-se dos cubos de gelo. Pousei o copo na madeira absurdamente lisa da mesa debruçando-me sobre a mesma. O garçom me apareceu mais uma vez com um de seus braços esticado em minha direção: “Posso levar seu copo? ”. Olhei para o funcionário já em posse de um copo de chopp vazio na mão, voltei a sentar-me de maneira inteiramente ereta, levantei meu copo e o fiz chocar - em brinde - com um outro que o garçom segurava em sua mão esquerda. Ele montou um rosto de estranhamento. Me levantei, entreguei meu copo à mão livre do rapaz junto com um maço de papel moeda. E levei a mim embora.

        Uma brisa fria cantava fora do bar movendo meus cabelos, as ruas dormiam desertas. Por longos minutos, esperei na parada de ônibus aguardando uma condução qualquer que pudesse fazer o caminho de volta para casa. Com a menor paciência em esperar, faltando cerca de três horas e meia para raiar a manhã, decidi retornar por conta de meus próprios pés. Na realidade, também suspeitava de minha falta de recursos econômicos para pegar qualquer ônibus ou metrô. Quilômetros esperam à frente. Não me incomodaria caminhar por horas a fio. Apesar da constante reclusão em meu apartamento, meus esforços em me lançar na observação mundana, retiraram-me do sedentarismo e punham-me em forma. No mais, caminhar era quase um hobby. Os carros nas pistas eram tão raros que não me importei de caminhar exatamente no meio das vias e ruas que me levariam ao meu repouso. Quando os automóveis vinham, apenas davam-me o trabalho de me afastar um pouco do centro da pista deixando que passassem rasgando o ar em minhas orelhas.

         A certa altura - e depois de sentir uma fagulha de orgulho do quanto andara -, meus pés começavam a doer, ainda faltava muito terreno a se percorrer e por mais, aproximadamente, trinta minutos andei; percebi o quão longe estava. Um equívoco de julgamento. Mas não um estorvo. O sol recusava-se em brotar no horizonte, mas o céu clareava-se tímido. Depois de duas horas caminhando a dor era quase insuportável – o sapato com solado ruim ajudava nessa situação. Manquei até o meio fio pintado com tinta rala branca da larga pista onde estava. Me sentei na grama do canteiro central entre a mão e a contramão da via arterial. A cerca de 300 metros havia um outdoor. Manquei um pouco mais até ele para repousar-me. O mastro cilíndrico metálico grosso do outdoor era tão largo como meus ombros. Tirei meus sapatos caros – porém ruins – e coloquei-os ao meu lado, sem me dar o trabalho de retirar as meias dos pés cansados. Fechei os olhos e senti por alguns minutos a brisa fria. Regozijando o descanso, quase adormeci. Constatei pela longa sombra do mastro que iniciara a se formar diante de mim, que o sol estava nascendo. As vezes gosto de pensar no fato de ser o sol nosso juiz final, obviamente um juiz cego e sem consciência alguma, afinal não passa de uma gigantesca esfera plasmática de hidrogênio e hélio. O fato dele morrer em alguns bilhões de anos, mesmo que seu processo de morte torne a vida na Terra impraticável bem antes disso, não parece aborrecer muita gente. Apesar da existência de incontáveis outras possibilidades (remediáveis ou não) de extinção, a execração da humanidade é, quer queira ou não, inevitável. Verdade que tirava-me subitamente, hora sim e hora não, o tsão da musculatura em resistir tensionada em esforço vivente. Macabramente – pela inevitabilidade de um fim completo –, nutro certa preferência ao aniquilamento solar. Seria naturalmente irremediável como a morte de uma mosca, a quebra de um coração ou  o fenecer de uma flor perfumada. Além do mais, o colapso da estrutura solar renderia uma belíssima explosão em formatos cósmicos cintilantes. Tal hecatombe é menos imbecil que o armagedom nuclear; menos dramático que a derrocada do humanidade pela degradação cometida a si própria, pela simples incapacidade em armazenar recursos vitais ou outra auto-aflição que pode causar a si. Perante esses pensamentos apocalípticos, adormeci. No sonho de exaustão, uma bomba de hidrogênio (que era uma grande mosca) pousa numa flor de pétalas murchas e espinhos. Acordei quando horas e horas haviam acabado de se gastar em sono. A pista estava repleta de carros irrompendo em alta velocidade em suas duas mãos e o sol pairava alto num céu azul sem nuvens. Calcei os sapatos, atei os cadarços, levantei-me para retomar o caminho rumo a minha residência. O corte insensível do som da velocidade dos carros no ar da manhã impregna na pele, a luz do sol refletida no asfalto, rude, perfura os globos oculares e o vento soprando lembra solitude. O anonimato carregava meu nome. Se qualquer futuro é a ignorância, se esperanças são utopias obscuras; os sentidos, caos; se havia certa confusão entre eu e o pedaço de papelão; e se a realidade é mesmo essa tempestade vigorosa, faço a mim tempestade; e a vós: ignóbeis expressões vazias da imanência, o solo que tormento. Pois é o solo árido e estéril quem impede o fluxo de minha chuva impiedosa e revigorante a fazer brotar o que quer que seja. Me pus a equilibrar-me sobre o meio fio olhando os automóveis, motocicletas e caminhões rodando, não passam de vultos, manchas diante de meus olhos, mas eles pareciam mais sólidos que a etérea realidade com sua brutalidade. Então dei um passo para qualquer direção.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sucessão" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.