O Diabo do Sertão escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 39
A fúria de um pai


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!

Este é o antepenúltimo capítulo do livro. Espero que goste!



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Incansável, José de Lima não parou de cavalgar nem por um minuto. Acima de sua cabeça, o céu mudou de cores e, sem que ele percebesse, já estava num azul profundo marcado por estrelas. Aquilo, entretanto, não importava. O pai de Alice estava tão focado em seu objetivo que não parava para prestar atenção na mutabilidade da natureza ao seu redor. Ela, de fato, estava diferente. Os animais – como tatus, pequenas raposas e preás – pareciam pressentir a chegada de algo importante, enquanto o vento mais frio aliviava a longa viagem para a égua Águia. “Quem dá o nome de ‘Águia’ para uma égua?”, foi o único questionamento de Zé durante toda a viagem. Fora isso, ele só tinha em mente a necessidade de proteger Maria Beatriz e Bárbara de qualquer perigo.

Foi então, com espanto, que ele viu o caminho para Água Funda mais movimentado que o usual. Ao invés de viajantes, porém, a movimentação se dava pelas idas e vindas de homens fardados. A primeiro momento, o rapaz montado na Águia assustou-se. Sendo um fugitivo da prisão, tinha a falsa sensação de que haveria centenas de cartazes com o seu rosto por todos os lados. A verdade? Os agentes que ali transitavam nem sabiam quem era o tal de José de Lima. Eles apenas seguiam de um lado para o outro, como se vigiassem aquela estrada contra possíveis bandidos que viessem a aparecer. Com os ombros encolhidos e uma expressão fechada, Zé fez com que a égua trotasse lentamente enquanto passava na frente dos agentes.

— Ei, você aí — um dos agentes chamou a atenção de José. Quase congelando de medo, o rapaz virou-se muito lentamente. O agente então o examinou por longos segundos antes proferir qualquer palavra que fosse. — O que anda fazendo por aqui a essa hora?

— Eu? — José indagou de maneira idiota, pois era a única pessoa a não usar farda ali. — Eu gosto de passear e essa hora é a melhor de todas: tudo friozin do jeito que eu gosto. Aconteceu alguma coisa?

Aliviado, José acreditou ter contado uma boa mentira. No entanto, viveu mais um momento de tensão: o homem fardado parecia analisá-lo com ainda mais rigor. Ficou em um silêncio perigoso por quase meio minuto até finalmente decidir o que falar:

— Siga logo com seu passeio — respondeu com uma voz grave forçada, como se quisesse deixar evidente a sua autoridade. — E não, não tem nada acontecendo. Agora dê o fora daqui!

Aquela era uma mentira facilmente perceptível e Zé nem chegou perto de acreditar naquelas palavras enganosas. Era óbvio que algo grande tinha acontecido. Por qual outro motivo as forças da lei se preocupariam em vigiar as estradas? A razão, entretanto, não importava. Seguindo com o dito “passeio”, José de Lima direcionou-se para seu último lar conhecido: a residência que lhe fora cedida por Gustavo Água-Santa.

No caminho, entretanto, algo começou a mexer com a pouca serenidade que restava ao pai de Alice. Conforme ele se aproximava do antigo lar da sua família, a presença de policiais e agentes do estado também se tornava mais intensa. O coração de José de Lima começou a palpitar e ele pôde sentir sua boca secar com o nervosismo. “O que diabos aconteceu no tempo que eu fiquei preso? Não pode ter acontecido um desastre muito grande”, ele pensava de maneira que encontrasse conforto, mas o aumento da movimentação policial refutava qualquer ideia positiva. Foi então que, após algumas centenas de metros de cavalgada, chegou o momento de fazer Águia parar. Olhando para frente, Zé viu a casa onde Maria Beatriz, Alice e Diabo deveriam estar. Ao invés de um templo de paz e familiaridade, o lugar agora parecia mais uma delegacia.

Com homens fardados por todos os lados, eles pareciam vigiar o local, apenas esperando a chegada de alguém suspeito ou, quem sabe, um informante. Escondido na escuridão, o pai de Alice observava de longe, mas podia sentir seu coração palpitar cada vez mais forte, tendo a certeza de que ele sairia pela boca. Por um momento, teve a ideia estúpida de pegar o revólver na bolsa de couro e usá-lo contra os policiais em uma incursão violenta, mas esse plano foi rapidamente jogado no lixo. “Tem que ter outro jeito”, Zé respirou fundo enquanto pensava numa solução.

Como que atendendo suas orações mais internas, um indiscreto som de choro chamou a atenção do rapaz. Desmontando de Águia, ele esgueirou-se de forma cautelosa até a origem do som e, sem ser notado, percebeu que era um agente da lei quem chorava. Ao lado dele, um colega de trabalho parecia ter dado a trágica notícia.

— Seu irmão... — o colega falava com a dificuldade costumeira de quem tenta confortar alguém que vive um intenso luto. — Ele era um bom homem!

— Não! — Revoltado, o agente choroso não se conformava com aquilo. — Eu tenho que ver com meus próprios olhos!

— Espera!

Não esperou. Ao invés disso, o homem em luto simplesmente montou no cavalo e foi em direção ao último lugar em que seu irmão esteve. José de Lima não precisou pensar muito para agir. Deixando que o agente ganhasse alguma distância, o rapaz montou na égua e seguiu os rastros com algumas centenas de metros de atraso. Tinha certeza de que, dessa forma, não só conseguiria chegar onde estavam os cangaceiros e, possivelmente, Maria Beatriz, como também teria um caminho relativamente seguro.

Nos minutos seguintes, teve algum tempo para respirar. Enquanto Águia seguia com o trabalho pesado, José de Lima tentava montar a possível história de tudo que havia ocorrido enquanto estivera preso. A princípio, definiu uma premissa básica: onde quer que Beatriz e Alice fossem, Diabo iria junto. Dessa forma, a ausência de qualquer boato sobre a morte do ex-cangaceiro poderia ser um indicativo de que a esposa e filha estavam vivas. Com isso, Zé permitiu-se sorrir, ainda que brevemente. Obviamente, essa não era uma certeza, mas foi o pensamento que ele escolheu agarrar até que uma nova informação chegasse. Enquanto isso não acontecia, ele seguia com fé e coragem, ainda que um forte medo caminhasse ao lado.

 Não tardou para que, num ritmo relativamente lento, o rapaz e sua égua chegassem nas fronteiras do acampamento cangaceiro. Ainda que de longe, José podia perceber que o lugar fora virado de cabeça para baixo. Apesar da escuridão da noite, os agentes que se concentravam no lugar carregavam lampiões que derramavam sua luz sobre o solo ensanguentado. Zé testemunhou: havia pedaços de carne humana e animal espalhados por uma certa porção do espaço. Os cadáveres humanos – ao menos os que estavam inteiros – já haviam sido arrastados para o canto. Respirando fundo, o rapaz pensou em virar a cabeça e não olhar. Mais do que tudo, temia encontrar sua esposa ou filha entre os corpos. No entanto, o que mais podia fazer? Criando coragem, passou a direcionar sua visão para os cadáveres. Aguçando os olhos, viu homens fardados, cangaceiros e até mesmo a velha Joana Arcanjo. No fim, suspirou aliviado: Maria Beatriz não estava ali, muito menos a pequena Alice.

Foi então que, quando pensou que poderia respirar novamente, seus olhos passaram pela área central do acampamento. Não precisava de muita luz ou proximidade para reconhecê-lo. Aquele tamanho, formato e orelhas indicavam que não podia ser ninguém a não ser Carlinhos. Vendo seu melhor amigo morto, José sentiu o coração ser esmagado. Mais uma vez, impulsos violentos pareciam querer tomar conta de seu corpo, mas o rapaz se controlou. Repetindo o que já havia feito anteriormente, construiu mentalmente a história que havia ocorrido ali: Bia e Diabo devem ter se unido aos cangaceiros após a invasão dos agentes na casa de Gustavo Água-Santa. De alguma forma, os agentes descobriram a nova posição do grupo e atacaram com sucesso quase total. Por sorte, quatro pessoas que José conhecia não estavam entre os mortos: Diabo, Lúcio, Bia e Alice. “Agora só preciso chegar até eles. Como?”, Zé colocava a cabeça para funcionar.

Ele fez as contas: com quatro sobreviventes – ainda que um deles fosse um bebê –, seria necessário utilizar dois cavalos para a fuga. Voltou então a olhar para os corpos dos agentes da lei e, logo em seguida, para os animais mortos ao longo da base dos cangaceiros. “Eles devem ter roubado algum animal dos homens”, refletiu. Então, mantendo-se longe da visão dos soldados, passou a explorar a área que circundava o acampamento. Em algum ponto, ele tinha a certeza de que encontraria os rastros dos cavalos. José era bom naquilo: não só conseguia identificar padrões, como também sabia diferenciar aliados de perseguidores. Além disso, o tempo e o vento também modificavam os rastros, permitindo identificar o que seria mais recente, ou mais antigo.

Dessa forma, não demorou para que o pai de Alice encontrasse aquilo que tanto buscava. Com a Lua cheia lá no céu, a luz que ela refletia ajudou-o a enxergar: dois cavalos haviam partido há algumas horas para o Oeste. Mas essa não era a única informação importante: mais um par de cavalos seguiu na mesma direção, mas com algumas horas de diferença. José tinha consciência: não era certo que encontraria sua família seguindo aquele caminho, mas ele teria que arriscar. Aniquilando o medo em sua alma, o rapaz tirou o revólver da bolsa de couro e seguiu cavalgando com ele em mãos. Podia pressentir que iria usá-lo em breve.

Há alguns quilômetros, Maria Beatriz não tinha a menor ideia de que seu marido estava de volta. Agora, no entanto, ela tinha problemas mais urgentes para resolver. Após a carnificina ocorrida no acampamento do grupo, o quarteto sobrevivente fugiu de forma desesperada. Como se já não fosse difícil o bastante ter um bebê em meio ao caos, a mulher e Lúcio também tiveram que se preocupar com Diabo, que estava com ferimentos terríveis por todo o corpo. Durante todo o caminho de fuga, tinham que se esforçar para mantê-lo acordado, pois um possível desmaio poderia ser fatal. No fim, até que conseguiram um abrigo temporário: uma casinha construída pela metade no meio do nada, provavelmente fruto de um empreendimento que teve que parar no meio do caminho por falta de dinheiro. Não importava: naquele momento de desgraça, aquilo era como um oásis no deserto.

Após descerem dos cavalos, Lúcio serviu de apoio para Diabo, que cambaleava e ameaçava cair a qualquer instante. Ao mesmo tempo, Maria Beatriz tinha que se preocupar com sua filha, que não parava de chorar. Como se não pudesse ficar pior, o líder cangaceiro também tinha seus próprios ferimentos, além de ter que se preocupar com possíveis perseguidores. Ele sabia muito bem: a guerra não havia acabado. Porém, em meio ao caos, até que encontraram um pouco de paz. Ao examinarem os cavalos roubados, encontraram não apenas armas, como também suprimentos médicos. Havia gazes, álcool e outros utilitários. Rapidamente, Lúcio passou a tratar os ferimentos de Diabo, que agradeceu com um aceno de cabeça.

Agora, do lado de dentro da casa parcialmente construída, eles aguardavam algum milagre. Diabo, ainda que não estivesse em perfeito estado, já havia escapado do perigo de morte. Lúcio já havia tratado os próprios ferimentos e, ainda que a tensão estivesse presente, Bia conseguiu acalmar Alice. Era a própria mãe, no entanto, que sofria. Mais uma vez, via-se arrancada de um lar amistoso, sendo obrigada a vagar pelo mundo sem um destino certo. Estava cansada de pensar naquilo, mas como não lembrar? Agora, no entanto, havia um agravante: pessoas estavam ativamente atrás de sua cabeça. O pior, entretanto, não era o risco de morte em si, mas pensar em como sua filhinha poderia sobreviver em um mundo tão hostil como aquele sem a presença da mãe.

— Me dê uma arma — a mãe ordenou.

Lúcio olhou com estranheza, mas Diabo sorriu.

sabe usar uma? — o último cangaceiro indagou.

— Ela sabe sim — o homem com o corpo cheio de cicatrizes testemunhou a favor de Bia.

Sem mais nenhum questionamento, Lúcio Arcanjo pegou um dos revólveres que tinha e entregou para a mulher. Maria Beatriz, sentindo que não podia falhar naquele momento de pura tensão, respirou uma parcela de confiança e rezou. Com Alice segura no braço esquerdo, a mãe utilizava a mão direita para manter a arma firme. Em sua mente, tinha apenas uma certeza: não permitiria que nenhum monstro se aproximasse de sua criança. Foi assim que, atentamente, passou longos minutos olhando pela janela. Ao seu lado, ainda ferido e cansado, ali estava Diabo. Olhando para a direção oposta, Lúcio Arcanjo garantia que ninguém chegasse pelas costas. Eles não eram exatamente um exército, mas teriam que resistir mais algumas horas antes de poder realizar uma fuga completa.

Após alguns instantes, a atenção de Beatriz foi recompensada. Em meio ao horizonte escuro, ela viu dois cavalos com lampiões pendurados se aproximando em alta velocidade.

— Ali! — ela alertou rapidamente. Logo em seguida, o nervosismo bateu. — O que a gente faz?!

Experientes que eram, Lúcio e Diabo mantiveram uma relativa calma. O homem cheio de cicatrizes gesticulou para que a mulher se mantivesse abaixada. Após isso, ele mesmo levantou-se aos poucos, colocando sua cabeça na altura da janela para ver o que Bia havia denunciado. Sem se descuidar, o líder cangaceiro continuava vigiando o lado oposto, de maneira que eles não pudessem ser encurralados.

— É impressão minha — havia surpresa na voz de Diabo — ou num tem ninguém em cima dos cavalo?

De fato, não havia cavaleiro algum. Imediatamente, o coração do ex-cangaceiro disparou: seria aquela mais uma artimanha das forças do estado? Estariam espreitando na escuridão? Debilitado do jeito que estava, ele tinha consciência de que não faria uma boa luta. Passando a olhar para Lúcio, o cangaceiro também não parecia nas melhores condições, principalmente na camada emocional. Por um momento, Diabo pensou que a morte estava mais palpável do que nunca, mas algo o surpreendeu: ao olhar novamente através da janela, uma silhueta sombria se destacou. Era um homem sobre um cavalo ou égua veloz. Cavalgando com um revólver na mão, aquele homem poderia vir a ser uma ameaça, mas algo fez com que o ex-cangaceiro não reagisse de forma precipitada. Aproximando-se dos outros dois cavalos – e, dessa forma, dos lampiões – a silhueta masculina ganhou um rosto e nome: era José de Lima, o pai de Alice. Diabo sorriu e gritou:

— É Zé! O homi voltou!

Ao ouvir aquilo, Maria Beatriz não acreditou. Aquele estava sendo o dia mais estranho, traumático e inesperado da sua vida. Que tipo de surpresa era aquela? Como seria possível seu marido simplesmente aparecer? Foi então que, entrando pela porta principal, o pai de Alice se fez presente. Não era mais a mesma pessoa. Agora, José de Lima tinha algumas cicatrizes em decorrência da surra que levara na cidade, além de uma barba considerável depois dos meses na cadeia sem acesso a uma boa lâmina. Com olhos cansados, mas determinados, ele rapidamente se virou para Beatriz e Alice.

— Meu amor! Minha filha! — Zé mal podia esperar para abraçá-las, e assim o fez.

Apenas assistindo à cena, era impossível que Lúcio Arcanjo não sentisse inveja. O rapaz ainda tinha uma família que o amava e agora ele estava apto para cuidá-la. Mas e o cangaceiro? Já havia perdido uma criança, a mulher havia o abandonado e agora ele se sentia em débito com a própria mãe. Não havia mais para onde voltar, apenas um novo lugar para morrer. Com isso, resolveu virar o rosto e voltar a vigiar o entorno. Sabia: o perigo estava sempre à espreita.

Livre desse tipo de pensamento, José, Bia e Alice tinham um momento puro de amor. Entre abraços, beijos e palavras de afeto, eles preenchiam suas próprias almas, assim como preenchiam as dos outros. Nesse ciclo de amor, pareciam ter feito o impossível e, após tantos perrengues, a família estava unida mais uma vez. Diabo, ainda que estivesse mais afastado, sentia o coração aquecer vendo aquilo, podendo até mesmo ignorar algumas das dores que até então persistiam.

— Como... — a carga emocional era tão forte que fazia com que Bia tivesse dificuldade em transformar suas ideias em palavras. — Como você conseguiu?

— É uma longa história — José parecia transformado até mesmo na voz. Falava com mais seriedade, mas o amor continuava presente. Era ele mesmo, mas com uma nova camada de dores, traumas e, principalmente, aprendizados. — Primeiro, foi o Augusto. Ele deu um jeito de me soltar e eu até imagino que ele já sabia do que tava acontecendo por aqui. Depois eu simplesmente fui com tudo que tinha. Não podia perder ocês.

Zé então olhou para o lado de fora, onde os dois cavalos com os lampiões pareciam perdidos. Bia entendeu: seu “covarde” marido enfrentou dois soldados sozinho e venceu. Com lágrimas nos olhos, ela deu o sorriso mais verdadeiro da sua vida e, logo em seguida, presenteou o seu homem com um longo beijo. Alice, sem entender nada que acontecia, soltou uma risada.

— Tá muito bonito tudo isso — Lúcio interrompeu —, mas acho que a gente num pode ficar parado não, viu? É só questão de tempo pros homi chegar.

— Conhece algum lugar seguro? — Zé indagou.

— Acho que tem um lugar que vai servir.

Tendo combinado as coordenadas, o grupo tomou uma decisão tática: José, Bia e Alice iriam na frente, agindo como se fossem uma pequena família viajando pelo sertão. Mais atrás, a dupla de cangaceiros seguiria o rastro. Na prática, marido e mulher seriam como batedores, avisando aos guerreiros sobre possíveis ameaças no caminho. Seguiram com tranquilidade, sendo testemunhados apenas pelo céu da madrugada. A claridade, no entanto, não veio. A fraca luz do Sol foi encoberta por pesadas nuvens, que agiam como anjos ocultando a localização do quarteto.

O destino? Um antigo lugar amaldiçoado. Lúcio Arcanjo sabia que aquele local poderia ser alvo de novas incursões policiais, mas rezava para que isso não acontecesse tão cedo. Era distante e já havia sido atacado outrora, sendo deixado em um estado lamentável. Além do mais, era um lugar que o próprio líder cangaceiro tinha motivos para nunca mais voltar: era o acampamento onde sua filhinha Carmen havia sido morta. Ele pretendia usar o lugar para definir um plano com o restante do grupo, casos eles estivessem dispostos a encarar uma última missão. Porém, era impossível não se emocionar conforme aproximava-se de seu antigo lar.

— Foi aqui — ele comentou com Diabo, que cavalgava ao lado. — Mataram a Carmen neste lugar.

O ex-cangaceiro sentiu uma pontada odiosa na alma, mas preferiu focar no momento presente. Ainda havia quem estivesse vivo e precisasse ser salvo. No fim das contas, o caminho estava realmente limpo e a chegada do grupo no antigo acampamento se deu com relativa tranquilidade. O lugar parecia um deserto. Além dos ventos ruidosos e a areia que circulavam por todos os lados, havia ainda a ausência de qualquer sinal de vida humana ali. Na verdade, os mais supersticiosos poderiam chegar a dizer que o lugar era mal assombrado. Por sorte, nenhum dos presentes acreditava naquele tipo de coisa.

Descendo dos cavalos, os sobreviventes sentiam os castigos da fadiga acumulada. Participaram de tiroteios, fugas, longas cavalgadas e de um estresse crescente. Finalmente parando de se movimentar, José de Lima começou a sentir uma grande fraqueza tomar conta dos seus membros, assim como o cansaço dominar a sua alma. Foram horas seguidas sem qualquer momento de descanso, uma noite e madrugada atravessadas na dor e na tensão. Agora, no entanto, ele não podia relaxar. Sabia que estava perto de escapar do inferno, mas não podia se dar ao luxo de ser imprudente. O perigo estava sempre à espreita.

— E agora? — Bia perguntou. Sua voz era falha e arrastada, deixando evidente que ela estava usando suas últimas forças. — O que a gente faz?

Ainda com o revólver na mão, Diabo sentou-se e respirou. Olhando para o horizonte, alimentava o vício essencial: vigiava sem parar. Assim como Zé, ele só queria abandonar aquela guerra, mas também tinha ciência de que não podia piscar o olho, ainda mais agora que só tinha um. Lúcio, por outro lado, não pensava assim. Puxando a bolsa de couro do cavalo, ele checava a munição e outros equipamentos necessários para uma incursão violenta. Apesar dos ferimentos visíveis ao longo do corpo do homem, ele parecia motivado para mais caos, mais sangue. Não era que o cansaço não fosse perceptível, porque ele era. O último cangaceiro ofegava e, vez ou outra, parecia tentar recuperar a velocidade padrão de pensamento. No entanto, estava evidente que a guerra não havia acabado para ele.

— Eu num sei vocês — começou a responder o questionamento da mulher —, mas eu vou resolver esse negócio de uma vez por todas.

— O quê?! — Incrédulo, José teve que se apoiar numa singela cerca de madeira para não cair. — vai voltar? Vai fazer o quê? Vai lutar contra todo mundo?

— Todo mundo não — Lúcio parecia desconectado em relação ao resto do grupo. Não olhava nos olhos de seus atuais aliados. Ao invés disso, limpava armas e examinava a munição que viria a ser usada. — Só quem mandou, só quem traiu. E quem ajudou nessa desgraça toda também. O padre, o prefeito, aquele vagabundo do Água-Santa também. Eu errado?

Silêncio. Quem teria coragem de dizer que ele estava cometendo um erro? José não questionava a fúria de um pai. Pensou consigo mesmo: “o que eu seria capaz de fazer caso fizessem mal à minha pequena Alice?”. Tremeu ao imaginar apenas uma parcela da resposta. Ainda assim, aquele não era o caso. Alice seguia bem e Bia estava ao seu lado.

— Eles tão bem protegidos, Lúcio — o rapaz argumentou. — Não tem como você fazer isso sozinho. Eu mesmo num vou ajudar. Tenho minha própria família pra cuidar.

Ocê não — o cangaceiro disse e, logo em seguira, virou-se para Diabo —, mas você vai, não é?

Ferido e cansado, o ex-cangaceiro soltou uma risada jocosa.

— Olhe pra mim, Lúcio — a fraqueza de sua voz assemelhava-se a de Beatriz. — Olhe para nós dois. Acabou. Acabou! Não existe mais isso de cangaço, nós dois já estamos mortos! Isso não é mais pra mim, entendeu? Eu tenho mais o que fazer.

— O quê? — Sentindo-se contrariado, Arcanjo aproximou-se de forma quase ameaçadora de Diabo. — Você está mesmo falando isso? O Diabo do Sertão? Pensei que quisesse vingança tanto quanto eu. Pensei que você fosse um homi de verdade.

— Eu sou! — Cansado de ouvir besteira, o homem cheio de cicatrizes encontrou forças e se levantou. — Acontece que, homi que eu sou, agora posso escolher minhas lutas. Já decidi.

Ao dizer aquilo, Diabo olhou para a pequena família que assistia à calorosa discussão. Ficaram num novo silêncio por longos segundos. Lúcio parecia pensar em alguma resposta ou argumento que virasse o jogo. Tinha consciência de que, indo sozinho para o caos, correria grande risco de ser mal sucedido. Mas como convencer aqueles que, em seu âmago, ele sabia terem razão? No fim, o mais difícil era convencer a si mesmo. Entretanto, antes que pudesse prosseguir com a reflexão – ou com a pura discussão –, teve sua atenção chamada por Maria Beatriz. Olhando para o horizonte, a moça alertou:

— Ali!

Os homens sacaram as armas e observaram. De fato, havia alguém, mas não eram exatamente soldados ou mesmo bandidos. Na verdade, tudo que conseguiam ver era uma carruagem tendo um homem de cabelos brancos como condutor. Mais atrás, conseguiam enxergar duas silhuetas femininas.

— Que desgraça é essa agora? — Lúcio começou a levantar a arma na direção da carruagem, ação que foi percebida por Zé.

— Espere! — O rapaz impediu a conclusão do ato iniciado pelo cangaceiro e, logo em seguida, correu em direção do veículo. Por um breve momento, era como se ele tivesse esquecido das dores e do cansaço. — Aqui! Aqui!

Àquela altura, as mulheres não eram mais silhuetas, mas rostos muito bem conhecidos: Socorro de Deus e Bárbara, a mãe de Bia. O condutor da carruagem era um velhinho de longos cabelos brancos, trajando vestimentas de luxo incomuns de serem vistas naquele ambiente árido. Com o aproximar do veículo, as duas mulheres reconheceram José de Lima, agradeceram ao condutor e, logo em seguida, deixaram o veículo.

— Mãe! — Bia finalmente entendeu a cena e emocionou-se. Com Alice nos braços, correu até a mulher da sua vida.

Mais atrás, Lúcio Arcanjo tinha uma expressão de pura ignorância. Diabo leu isso muito bem e disse:

— Longa história.

Naquele momento, mãe, filha e neta se encontravam e se amavam. O calor de anos de distância finalmente pôde ser trocado. A saudade era imensa e, pela primeira vez em tempos, elas pareciam enfim unidas. Encantada com Alice, Bárbara não cansou de dar beijinhos e dizer milhões de vezes como ela era a neném mais bonita do mundo. E quanto a Socorro? Ela era só sorrisos ao ver que José havia se tornado um homem na mesma proporção em que Beatriz era uma mulher.

— Como cês chegaram aqui? E quem é ele? — José apontou para o condutor.

— Digamos que eu já trabalhei com alguns dos policiais — Bárbara falava com certa timidez na frente da filha. — Juntei-me com Socorro e fomos atrás dos lugares certos. E o condutor? Ah, outra pessoa com quem trabalhei.

Zé soltou uma risada estúpida, enquanto Bia queria esconder-se. Ainda assim, nada podia romper aquele momento de puro amor, e o casal havia ganhado novas forças com aquela surpresa maravilhosa.

— Espera aí — Lúcio interrompeu. — descobriu esse lugar com um dos policiais? Quer dizer que eles tão vindo pra cá?

— Está na lista deles — Bárbara explicou. — É só questão de tempo para eles chegarem.

— Então a gente tem que capar o gato logo — Diabo se manifestou. — Cês duas conhecem algum lugar seguro?

Nós tinha certeza que vocês teriam alguma ideia — Socorro de Deus respondeu com certo desapontamento.

José, Bia e Diabo ficaram pensativos. Voltar para a cidade não seria uma opção. Os acampamentos cangaceiros então? Nem pensar. Para onde poderiam fugir? Foi então que, num momento de benevolência rara, Lúcio surgiu com uma ideia.

— Existe um lugar em que a polícia não vai procurar vocês, mas é longe e não é certo que cês vão ser bem recebidos — o último cangaceiro falou. — Eu mesmo seria expulso de lá em dois segundo. Quanto a vocês? Acho que existe alguma chance.

— Que lugar? — O pai de Alice perguntou com avidez.

— Diabo conhece. É o sítio onde minha mulher... Quer dizer... — Lúcio claramente ainda sentia o peso da separação da família que ele mesmo havia construído. — A Regina, é o sítio onde a Regina mora com meus filho e o pais dela. É um lugar grande, de gente trabalhadora e deve ter espaço pra vocês.

— Até pra mim? — Diabo perguntou com insegurança.

— Você vai ter que descobrir isso por conta própria.

O silêncio, repetitivo que era, ia e vinha. Agora, no entanto, não durou muito. Olhando para o condutor da carruagem, Bárbara disse:

— Vamos logo com isso! Diabo, diga ao homem onde fica esse sítio e vamos dar o fora daqui. Não deve tardar para que os policiais cheguem.

— Esperem! — José de Lima interrompeu as arrumações finais. — Lúcio, você ainda tem filhos, não é? E mulher também! Venha conosco. Esqueça essa desgraça de padre, prefeito e política. Gente como a gente não consegue nada de bom disso.

— Eu só trago a desgraça, José — Arcanjo falava com tanta tristeza que qualquer um poderia se compadecer do homem. — Minha presença matou minha filha e assim foi com minha mãe. Eu não quero fazer isso com o pouco que me resta. Vou acabar como meu pai e vou me vingar dos desgraçados que me fizeram tudo isso. Não vai sobrar nenhum pra contar a história!

E assim, Lúcio Arcanjo separou-se definitivamente do grupo. Olhando na direção de Água Funda, ele já tinha um plano em mente. Quando subiu no cavalo, as primeiras gotas de chuva caíram do céu. Aquele dia entraria para a história.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigado pela leitura!

O fim está MUITO perto. Vai valer a pena ♥



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