O Diabo do Sertão escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 36
O Diabo do Sertão


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Ela segurou com todas as forças, mas não adiantou. Com o cheiro de sangue invadindo as narinas, não tardou para que Maria Beatriz colocasse todo o café da manhã para fora. Enchendo o chão com ainda mais imundice, a mãe de Alice fugiu para o quarto, um dos poucos ambientes em que a morte ainda não pairava. Lá, colocou Alice nos braços e segurou-a com um amor imensurável. Enquanto isso, no epicentro da violência, Diabo não sentia nada demais. Já estava acostumado com a carnificina e nem mesmo o sangue que se espalhava no corpo o incomodava. No entanto, em respeito a Beatriz, o homem foi até o banheiro e lavou-se sem muita pressa.

Agora, após os gritos de ódio e tiros disparados, um silêncio sepulcral tomava conta da residência. Ainda no quarto, Bia sabia que não poderiam ficar mais naquela residência. Era óbvio que, dado o fracasso da missão perpetrada pelos agentes, novas ondas de violência ainda mais intensa surgiriam. Mais uma vez, a moça encontrou-se com a chaga mais comum de sua existência: a separação, o corte de raízes. Sentando-se na cama, ficou parada aguardando que um milagre acontecesse.

— Essa é uma boa hora pro seu pai aparecer — disse a Alice, mas queria mesmo era falar com Deus.

Não apareceu. A mulher ficou ali, sentada, por longos minutos. Enquanto isso, Diabo – que também sabia que deveriam fugir dali o mais rápido possível – se ocupava dos corpos espalhados pela sala. Eram quatro cadáveres malditos, tendo ainda mais um logo na entrada na casa. Arrastou um a um para o lado de fora e os empilhou. Poderia enterrá-los ou até mesmo queimá-los, mas o ex-cangaceiro pensou que eles não eram dignos de tamanha honra. Muito pelo contrário, o homem preferia empilhá-los como se fossem lixo. Dessa forma, quando os próximos algozes se aproximassem, eles poderiam sentir um gostinho do que os aguardava.

Um pouco ofegante, o protetor da mãe deu ainda uma volta pela casa. Aliviou-se ao ver que, do lado de trás, Carlinhos seguia são e salvo. O ex-cangaceiro morria de medo do bichinho ter sido atingido por qualquer bala perdida, mas não, ele seguia saudável e pronto para novas viagens. Ao lado dele, o cavalo de Diabo – ainda sem nome, pois o homem seguia sentindo falta de Dragão – também estava bem, para a felicidade geral da nação. Diabo então conduziu os dois animais para a frente da casa, ajeitando-os para a viagem que viria. Já tinha um lugar em mente, ainda que severas incertezas martelassem sua cabeça. Preferiu não dar ouvido a elas e ter fé no caminho que surgiria.

Do lado de dentro, Bia teve uma surpresa agradável ao se deparar com a sala relativamente limpa. Relativamente, pois o sangue ainda jazia espalhado, além da destruição gerada pelo combate. No entanto, não via nenhum cadáver e isso já era uma grande evolução.

— A gente vai ter que sair daqui, menina — Diabo avisou assim que adentrou a residência.

— Eu sei — ela confirmou. — Mas pra onde?

— Quando eu era cangaceiro, eu vivia andando de um lado pro outro com os homi — ele limpava as armas que coletara do chão enquanto falava. — Acho que tem uma base confiável pra nós ir. Eu sei que Lúcio vai me receber bem, isso se ele estiver lá.

— Ótimo.

Bia sabia que não havia nada de ótimo. Mais uma vez, os ventos do destino sopravam de uma forma que a forçavam a se afastar de qualquer lugar seguro. Mais uma vez, a moça e sua filha seriam levadas para um ambiente suspeito, marcado por memórias de crime e violência. Mas não importava mais: ela não tinha muitas opções. Ou será que tinha? Por um breve momento, ela lembrou-se que o padre a receberia muito bem na cidade. Porém, o mesmo não poderia ser dito sobre Diabo: ele era um homem procurado e, com toda certeza, algumas dezenas de pessoas estariam dispostas a matá-lo. Por isso, Maria Beatriz fez uma escolha consciente: iria para onde o homem fosse.

Foi com esse pensamento que, com velocidade, a mulher conseguiu arrumar as malas. Além de vestimentas e outros utensílios, ela aproveitou ainda para pegar alguns dos suprimentos que estavam na casa desde sua chegada. Diabo fez o mesmo e, em poucos minutos, todos estavam do lado de fora. Com Alice nos braços, a mãe olhou para o horizonte seco do sertão e respirou fundo. Internamente, rezou para que aquela viagem trouxesse mais alegria que desgraça. Quanto a Diabo? Ele só queria ter a certeza de que conseguiria continuar protegendo aquela pequena família.

Com o cavalo, jumento e carroça na estrada, o trio fez uma viagem silenciosa. Eram a única forma de vida perceptível por grande parte do caminho, vendo raramente uma raposa ou um abutre. Quando começaram a enxergar estruturas humanas, Diabo sentiu o calor da nostalgia abraçar seu coração. A alguns metros, podia ver a casa onde dormira várias noites, assim como um antigo bar improvisado por ele e seus antigos amigos de cangaço. Lembrava-se também das brincadeiras com as crianças e como costumava ser chamado de “tio Diabo”. Será que Alice teria o mesmo costume quando aprendesse a arte da fala? Não saberia dizer. Entretanto, essa não era a única questão de ignorância do ex-cangaceiro. Ele também não sabia que, do lugar que antes ele chamava de lar, seus velhos amigos viam a sua aproximação.

Escondida em uma das casas envelhecidas, Amanda contava com uma antiga luneta. Tendo a escuridão e Lúcio como companheiros, a cangaceira alertava o líder sobre qualquer aproximação. No entanto, dessa vez foi diferente: havia alegria em sua voz.

— Diabo! — O sorriso surgiu junto da palavra.

— Deixa eu ver! — Lúcio tomou a luneta da mulher. O sorriso se repetiu. — Finalmente, desgraçado!

Foi com surpresa que Maria Beatriz e Diabo viram os cangaceiros surgindo das diferentes casinhas. No entanto, eles não estavam armados. Mais do que nunca, eles pareciam de braços abertos para receber o pequeno grupo. Estava presente, além de Lúcio e Amanda, o fiel Eduardo Peixeira.

— Eu sabia que uma hora você ia aparecer — Lúcio falou enquanto ajudava Diabo com a bagagem. — E essa neném? Que coisa mais linda, menina.

Ainda que palavras e olhares fossem dotados de carinho, Bia ainda sentia medo. Sabia que eles eram aliados, mas também eram bandidos. Não havia se esquecido que foram essas pessoas que haviam matado Antônio, assim como torturado João Cego meses atrás. Porém, ela percebeu que Diabo parecia tranquilo. Ao invés da expressão carrancuda de sempre, ele até mesmo sorria e cumprimentava seus antigos companheiros. De longe, ela via que ele trocava ideias com Lúcio, até que Amanda apareceu para oferecer ajuda.

— A mamãe precisa de um bom quarto pra cuidar da fia, né não? — ela foi mais gentil do que Beatriz esperava.

Respondendo com um sorriso, a mulher segurava sua filha com força enquanto era auxiliada a descer da carroça. Amanda pegou os mantimentos e, com delicadeza incomum, guiou Maria Beatriz pelo seu novo lar. Estava muito longe do luxo de outrora, mas certamente havia mais proteção. Sem largar Alice por um segundo sequer, ela rezava para que as coisas realmente pudessem funcionar.

Mais distante, Diabo ouvia tudo aquilo que queria: Levy fora devidamente punido. Com certa raiva e decepção na voz, Lúcio Arcanjo contava sobre como descobrira a respeito do traidor, assim como as ações haviam se sucedido após a eleição de Breno Farias. Evidentemente, o ex-cangaceiro contou a seu antigo líder sobre o ataque de agentes da lei, fato que deixou Lúcio com uma pulga atrás da orelha: seria o novo prefeito tão sujo quanto o antigo?

— Mas então, cadê a dona Joana? — Diabo sentia falta da matriarca do grupo. — Não me diga que ela...

— Não — Lúcio espantou qualquer possibilidade de a mulher ter morrido. — Mãe viva, mas não muito bem. Tá fechada num desses quartos. Ela já andava com umas tosses estranhas, sabe? Mas parece que piorou. Eu tenho medo, Diabo.

O líder fez silêncio e, compreendendo a dor vivida pelo amigo, Diabo calou-se. Logo em seguida, criou coragem e lhe deu um tenro abraço. “Vai ficar tudo bem” foram as palavras não-verbalizadas que ficaram no ar. Após tal momento de fragilidade, Lúcio retomou a postura anterior e disse:

— Mas então, vai ficar parado? Temo um monte de coisa pra ajeitar aqui!

Há alguns quilômetros dali, Breno Farias tinha tanta coisa para ajeitar quanto os cangaceiros. Trancado em sua sala na prefeitura, o homem parecia se dar conta das dores que envolviam comandar uma cidade. Água Funda não era exatamente um paraíso: havia criminalidade além dos cangaceiros, assim como uma pobreza crescente e, para piorar, a ausência de chuva só intensificava os problemas da seca. Ainda que contasse com o apoio de Gustavo Água-Santa e tivesse acesso aos poços d’água, o volume do líquido divino mostrava-se insuficiente perto das necessidades do povo.

Encarando uma pilha de papel, o prefeito fechou os olhos. “Quem dera fosse só isso”, pensou com pesar. A situação era muito pior. Além de ter que encarar o papel morto, o homem ainda tinha que se reunir com outras pessoas ou – como ele gostava de se referir – pedintes. Malditos mendigos! Por que precisavam do prefeito para tudo? Eram empresários, médicos e, vez ou outra, o próprio Padre Miguel que apareciam com pedidos esdrúxulos para tentar consertar a cidade. Infelizmente, tais pessoas pareciam ignorar os fatos: o caixa da prefeitura estava vazio e Breno Farias estava, de fato, dependendo da boa vontade do governador.

Cheio de raiva, o prefeito deu um soco no birô, sendo logo em seguida surpreendido com o bater da porta.

— Entre — ordenou com impaciência.

A porta se abriu e Padre Miguel apareceu. Caminhando com calma, o religioso foi até a cadeira na frente do birô, puxou-a e se sentou. Sua feição contrastava diretamente com o estado de espírito do político, chegando num nível que só fazia intensificar a irritação de Breno.

— Diga logo o que você quer — o prefeito não queria perder tempo.

— O que eu quero? Pergunte pro povo — Miguel fez uma pausa enquanto observava a inação de Breno. — Eu queria saber o que estamos fazendo aqui nesta prefeitura. Às vezes, eu tenho a impressão de que Marcondes Maia foi reeleito. Diga-me, Breno: o que mudou?

“Velho petulante e estúpido” era a resposta que o prefeito queria dar. Ao invés disso, conteve-se. Seu olhar, no entanto, era letal. Padre Miguel parecia ter se convertido em um inimigo. Breno acreditava que ele seria de grande ajuda e, por isso mesmo, fez o sacrifício de colocá-lo como vice-prefeito. Agora, entretanto, o poder parecia ter subido a cabeça do religioso. Queria aparecer mais que o prefeito, atuar mais que o prefeito. “Mas o prefeito sou eu”, Breno concluiu.

— Nada mudou — a voz de Farias havia se transformado. Enquanto o olhar ainda transparecia raiva, suas palavras saíam com uma calma quase assustadora. — Marcondes Maia nos deixou uma herança maldita: uma prefeitura suntuosa, mas quebrada. As contas não batem, Miguel. Então estou fazendo o meu melhor: conseguindo acordos, conversando com as pessoas que fazem as engrenagens da cidade mexerem. Inclusive, até consegui uma proposta interessante. Mas antes disso, diga-me você: o que anda fazendo?

Aquela era uma provocação baixa e o padre sabia disso. Ele tinha plena consciência que havia sido transformado em um vice puramente decorativo. Dessa forma, que ações poderia tomar? Restava-lhe pouca coisa além de conversar com a parte mais pobre da população.

— Eu converso diretamente com quem lhe elegeu — respondeu com severidade.

Breno Farias soltou uma risada irônica. Não podia acreditar: seu trabalho político mal tinha começado, mas já parecia descer ralo abaixo. Porém, a situação ainda podia piorar. Abrindo a porta sem nenhuma educação, Gustavo Água-Santa apareceu para os dois políticos mais importantes da cidade. Ofegante, o homem parecia uma mistura maléfica de medo e ódio.

— O que foi dessa vez?! — O prefeito não escondia a irritação.

Olhando para os lados, Gustavo parecia procurar por qualquer coisa ou pessoa que lhe oferecesse risco. Andou de um lado para o outro, encarou o padre com desconfiança e, finalmente, resolveu responder à pergunta do prefeito.

— A minha casa, Breno! — Ele deu uma longa pausa para recuperar a respiração. — Você viu o que aconteceu?!

Entendendo apenas metade da história, Padre Miguel começou a ser contagiado pelo nervosismo. Ele mesmo tinha pedido aquela casa para ajudar José de Lima e Maria Beatriz. Que tipo de tragédia poderia envolver aquele singelo lugar?

— O que aconteceu? — Miguel perguntou com astúcia. Olhando para Breno, pôde perceber que o prefeito o encarava com desconfiança. — Vamos, desembucha!

Gustavo olhou para Breno como se buscasse aprovação. Não obteve resposta, então calou-se. Por outro lado, o prefeito resolveu assumir o protagonismo e, após breves segundos de reflexão, começou a falar:

— O governador me fez uma proposta, padre: ele me pediu a cabeça dos cangaceiros em troca de verbas para auxiliar a administração da cidade. Citou um nome em especial: Diabo. Como nós sabemos, Bia e o marido dela tiveram uma certa relação com o homi. Então eu mandei alguns homens da guarda estadual para conversarem com ela. Talvez ela pudesse dar alguma pista para fazer cumprir a lei, entende?

Em silêncio, Miguel jogou fora qualquer expressão de serenidade. Seu rosto se redesenhou em raiva e, sem qualquer pingo de dúvida, Breno sabia que agora estava diante de mais um conflito. Porém, o religioso decidiu que não diria uma palavra sequer até ter toda a história muito bem contada. Olhando para o magnata da água, disse:

— Continue. Quero saber como essa história acabou.

Gustavo olhou mais uma vez para o prefeito, que simplesmente gesticulou para que o homem contasse logo tudo que sabia.

— Bem, por onde começar? Primeiro, vi cinco corpos empilhados do lado de fora — o horror era perceptível nos olhos do velho. — Quando fui adentrar aquela desgraça, percebi que a porta de entrada estava toda furada! Do lado de dentro, pra piorar, tinha sangue pra todo lado!

— E Bia? — Miguel temia o pior.

— A menina? — Gustavo pensou por um instante. — Nem sinal dela! Acho que bateu o pé da casa.

Aliviado, o padre suspirou. Ainda assim, a raiva não havia fugido de sua alma. Olhando para Água-Santa, ordenou:

— Agora saia daqui! Tenho assuntos a tratar com o prefeito.

Breno até pensou em reagir. Quem Miguel achava que era para dar ordens naquele local? Porém, optou pelo silêncio. Cabisbaixo, Gustavo Água-Santa deixou a sala enquanto rezava para se livrar das imagens horríveis que vira. Sua mente já estava colecionando cadáveres, e o homem não gostava nada disso.

— Eu nem sei por onde começar, Breno — o religioso começou a falar logo após trancar a porta. — Matar os cangaceiros, nossos aliados? Interrogar uma esperanceira? O que é que você quer?!

— Respostas podem vir de qualquer lugar, Miguel. Eu acreditava que a menina podia saber de alguma coisa e você vai ter que admitir que eu estava certo. Diabo com certeza estava com ela e agora eles desapareceram mais uma vez. E outra, você tem que admitir também que esses cangaceiros são um risco — o político respondeu. — São homens que tiram o sustento do roubo e da morte. Até quando você, um homem de Deus, vai aceitar algo assim?

— Nós não somos traidores! — Miguel quase gritou, mas se conteve. — Eu não sou! Eles nos ajudaram por muito tempo e não nos cabe fazer esse tipo de coisa. Deve haver alternativas.

— Alternativas, padre? Olhe isto — o prefeito entregou um documento mostrando as contas da prefeitura. — Estamos sem caixa, eu já disse. E agora as pessoas estão morrendo de fome e sede. Não temos dinheiro para novos poços e é o povo mais pobre que sofre. Na política, é assim: você tem que fazer trocas, concessões. Tem que escolher quem vai morrer e quem vai viver. E o povo pobre que você tanto defende está morrendo! Mas a gente pode mudar isso: o governador garantiu que irá nos ajudar caso acabemos de vez com o cangaço. Lembre-se que esses bandidos já mataram muitos do nosso povo. Será que você não enxerga, Miguel?

Com o papel em mãos, o religioso refletia. Conseguia enxergar uma parcela de verdade nas palavras de Breno, ainda que lhe pesasse a consciência a simples ideia de eliminar aqueles que já foram amigos.

— Caso tenha alternativas, ficarei extremamente feliz em ouvi-las — o político prosseguiu. — Mas até onde sei, não há outra opção. O tempo de pessoas como eles finalmente chegou ao fim. Água Funda é uma terra pra gente civilizada, padre.

“Gente civilizada”. A expressão ficou matutando na cabeça do religioso de maneira incessante. Sem dizer uma palavra, retirou-se da prefeitura enquanto refletia sobre o que seria moralmente correto. Deveria ver seu povo morrer de fome em nome da fidelidade, ou o sacrifício de antigos aliados valeria a pena? Ele não teria uma resposta fácil, então decidiu consultar antigos poderes: foi à igreja falar com Deus.

No meio do caminho, teve a chance de presenciar a miséria que Água Funda vivia. Não é que seus olhos estivessem fechados anteriormente, mas agora eles estavam mais atentos do que nunca. De fato, as pobres crianças pareciam mais magras que antes, de maneira que era possível contar suas costelas que se destacavam em meio a pele ressecada. Quanto às suas mães, elas faziam um esforço hercúleo para lavar roupas e executar outras tarefas domésticas com o mínimo de água possível. Ao mesmo tempo, os bares não pareciam ter a mesma movimentação de antes, e o religioso chegou a ver um conhecido que ficara desempregado. Era real: a cidade sangrava.

Doía ainda mais perceber que ele não era mais tão amado. Se antes, na posição exclusiva de padre, Miguel era reverenciado por onde passava, agora ele era só mais um político que parecia não se esforçar o suficiente. Onde estava o amor? Ele agora se questionava sobre como Marcondes Maia fazia para ter a legião de fãs que tinha. Será que era realmente necessário se enveredar pelo lamaçal da política tradicional para encontrar algum tipo de recompensa? Temendo a resposta, o religioso resolveu tentar calar a mente e forcar em seu destino: a igreja.

Ela, no entanto, não parecia mais tão bonita quanto antes. Era óbvio que o padre seguia com as missas e trabalhos de limpeza do templo. Porém, a dedicação não era mais exclusiva: também havia uma cidade para cuidar, ainda que sua influência fosse mínima. Agora, o templo de Deus parecia abandonado pelos anjos, restando a Miguel apenas a poeira e as traças. Não lhe impressionava o fato de quase ninguém mais aparecer para se confessar ou mesmo ter uma conversa casual. Que tipo de segredo conseguiriam guardar com o vice-prefeito, um político?

Foi então, com esse pensamento, que Miguel teve uma grande surpresa ao adentrar a igreja. Do lado de dentro, uma mulher trajando um luxuoso vestido olhava para o Cristo na cruz. Ajoelhada, era evidente que ela rezava com fé e intensidade, de maneira que nem mesmo percebeu a aproximação do religioso. Quando notou, era tarde: Miguel já havia reconhecido que ela era ninguém menos que Bárbara, a mãe de Beatriz.

— Meu Deus! — O homem passava por uma verdadeira montanha-russa emocional, de forma que não escondeu o susto ao se deparar novamente com a mulher. — Bárbara?!

Serena, a mulher reagiu com calma. Olhou nos olhos do padre e encontrou incredulidade e surpresa, mas nem por isso se apressou em contar sua história. Olhando para o Cristo mais uma vez, fez o sinal da cruz e, finalmente, levantou-se. Virada para o padre, respondeu com calma:

— Sou eu, sim.

Automaticamente, o religioso lembrou-se da conversa que acabara de ter com o prefeito. Refletiu sobre o misterioso paradeiro de Bia e assombrou-se com o reencontro com a mãe da moça. Parecia que, de alguma forma, o destino estava lhe pregando uma peça.

— Eu quero encontrar minha filha — Bárbara havia aguardado longos segundos, mas como o padre preservou o silêncio, ela tomou a iniciativa. — Deixei que você cuidasse dela há muitos anos, lembra?

“Lembro sim”, Miguel pensou, mas não verbalizou. Ao invés de falar, refletia sobre como o buraco ficava cada vez mais fundo. Resolveu desconversar.

— O que houve com o Francês? Então José realmente conseguiu te salvar? — indagou.

— O meu genro? Sim — ela deixou que um sorriso de gratidão escapasse. — Você que o enviou?

— Sim — Miguel tentava manter a serenidade, mas esse parecia ser um dever difícil. — O que se deu com o Francês?

— Ele morreu — havia orgulho na voz de Bárbara. — José o matou.

Miguel não sabia o que sentir. Por um lado, alegrava-se pela mulher ter sido salva. Por outro, sentia-se um verdadeiro cumplice do assassinato do Francês. Não é que o homem não merecesse, pois ele merecia. A questão é que o religioso sabia que não lhe cabia esse tipo de decisão, muito menos a José.

— E aonde José está? — questionou.

— Preso — a voz da mulher agora não escondia a tristeza. — Tentou fugir, mas a polícia o pegou.

Mais uma vez, a culpa se deitou na consciência do padre trazendo todo seu peso mortal e esmagando sua alma. Entretanto, ele a reprimiu. O que podia fazer? José de Lima era um homem adulto, um pai de família e era dono das suas decisões. Ao religioso, só lhe restava o mérito por ter auxiliado no salvamento de Bárbara. Com tal pensamento, Miguel conseguiu se acalmar, mas a paz durou muito pouco. Logo em seguida, a mãe de Beatriz voltou com o questionamento mais doloroso de todos:

— Cadê a minha filha, Miguel?

— Ela resolveu seguir o próprio caminho, Bárbara — o padre enrolou. — Eu a havia cedido uma ótima residência, mas parece que ela se mudou.

— “Parece”? — Com raiva, a mulher se aproximou de forma ameaçadora do religioso, que recuou em claro sinal de covardia. — Não sabia que minha filha estava em posição tão boa a ponto de poder escolher “se mudar”. Conte a verdade!

Engolindo em seco, Miguel sabia que não tinha mais espaço para fugir. Tinha que encarar a dura verdade e, mais do que isso, tinha que encará-la na frente de uma mãe furiosa. “Que Deus me ajude”, pensou antes de falar:

— De fato, eu cedi uma residência para Bia. Acontece que o prefeito mandou alguns soldados conversarem com ela, pois era sabido seu contato com os cangaceiros. Então... — o padre fez uma pausa, pois os olhos raivosos de Bárbara conseguiam intensificar o medo e a pequenez da alma do religioso. Ele respirou fundo e, enfim, continuou. — Aparentemente, ela estava com um dos homens. No caso, Diabo. Todos os soldados foram encontrados mortos, com seus corpos empilhados. Não tivemos nem sinal de Bia, então é evidente que ela está bem.

— “Soldados”? — Bárbara repetiu com revolta. Em seguida, acertou um forte tapa no rosto do religioso, que não reagiu. — O seu maior aliado manda homens armados pra casa onde minha filha mora, e é isso que você diz? É isso que você faz? Eu confiei em você pra cuidar dela! Sacrifiquei anos da minha vida com ela para que Bia pudesse ter uma vida digna, vida essa que eu não tive. E então você se alia com um assassinato, traidor e bandido da pior estirpe?

— Não é tão simples, Bárbara!

— É sim! Você relativiza o que for necessário pra tentar se adequar ao seu joguinho de poder — ela queria espancá-lo, mas teve consideração pelo local sagrado. — Você não é nada mais que o diabo do sertão, uma praga! Eu mesma vou encontrar minha filha!

E, saindo de rompante, Bárbara abandonou Miguel com o rosto e a alma marcados.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigado pela leitura! O fim está próximo :D



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