Entre vírgulas escrita por Heloísa Bernardelli


Capítulo 9
Capítulo 8




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― Mena?

― Desculpa, eu tô muito apertada ― Marlena despejou rapidamente. ― Finja que não estou aqui.

Ele até gostaria de fingir, pensou, mas era um pouco difícil enquanto a ouvia logo do outro lado do box de vidro fosco. Não era a primeira vez, mas costumavam ser um casal em todas as anteriores.

― Como foi na escola hoje? ― ela quis saber.

― Ahn... Tudo bem, eu acho ― balbuciou. Não conseguiu enxaguar o cabelo, nem começou a se ensaboar. Ficou ali, olhando a parede em tom acinzentado de branco, enquanto a água escorria por suas costas.

― O bar está de pé?

― Sim.

― O cara irlandês também vai?

― Combinamos de nos encontrar no centro até oito e meia.

― Você tem certeza de que eu não vou atrapalhar? ― ela perguntou enquanto se aproximava, e Lucjan precisou se apressar para segurar fechada a porta do box.

― Eu tô tomando banho! ― protestou, impedindo que ela a abrisse. ― E não tem nada entre ele e eu, Mena, já disse.

― Eu já vi você no banho antes ― ela fez resmungar. ― E pode começar a ter.

― Não pode. Não tem nada a ver.

― Ok, se você diz.

Lucjan decidiu não responder mais, e talvez assim ela decidisse sair. Percebeu-a por lá mais um tempo, mexendo no armário suspenso na parede logo acima da pia, escondido atrás do espelho, onde ela costumava guardar alguns hidratantes e cosméticos. Eventualmente, Marlena o deixou sozinho. Pensou em ir trancar a porta antes que ela voltasse, mas não queria molhar todo o banheiro que tinha lavado naquela mesma manhã, então desistiu.

Aquela era Marlena. Aquela havia sido Marlena desde a primeira lembrança que Lucjan tinha dela. Nada em sua espontaneidade e despreocupação tinha o incomodado antes. Não costumava existir desconforto, mesmo quando ela tomava decisões inconvenientes - como entrar para fazer xixi no banheiro onde ele estava tomando banho. A liberdade que alimentaram uma vida inteira ainda estava ali para ela, e isso ficava muito claro em situações como aquela. Para Lucjan a coisa toda já não funcionava da mesma maneira.

Sentia-se invasivo todas as vezes que Marlena saía do banho, vestindo quase nada, e atravessava o apartamento em direção ao quarto. Sentia-se invadido, por sua vez, quando ela entrava em seu quarto sem bater ou perguntar se podia. Não conseguia relaxar nos braços dela, e definitivamente não entendia como é que ela se acomodava nos seus com tamanha naturalidade. A admirava por isso, mas também se pegava irritado às vezes. Fingia que era com Marlena, com a dificuldade que encontrava em respeitar seu espaço. Na verdade, era consigo mesmo. Com a incapacidade de achar meios para lidar com aquela situação nova e estranha.

Se nunca tivessem sido um casal, Lucjan ponderava, de certo que Marlena não ficaria à vontade em vê-lo despido, ou despir-se perto dele, ainda que tivessem sido melhores amigos todos aqueles anos. E se, por outro lado, ainda fossem noivos, ele é que não se importaria nem um pouco com situações aleatórias como essa. Provavelmente passariam desapercebidas entre as tantas outras do cotidiano. Acontecia que estavam exatamente no meio disso, e, Deus, o meio disso era a maior confusão.

Tentou fazer com que os conflitos escorressem ralo abaixo antes de sair do banho. Não queria que Marlena percebesse. Imaginava que seria difícil entender como ele se sentia quando ela própria se sentia tão diferente sobre isso. Por ora, Lucjan decidiu, era melhor deixar para lá.

Arrumou rapidamente o cabelo antes de sair do banheiro e voltar para o quarto, onde tinha separado um jeans e uma camisa cinza de linho, que, junto com o casaco preto que estava pendurado no encosto da cadeira, seria o suficiente para protegê-lo dos primeiros dias de frio, que chegaram junto com outubro.

Esperou na sala enquanto Marlena ia e voltava pelo apartamento, cantarolando o mesmo pedaço da mesma música, até finalmente ter todas as peças de roupa vestidas e um pouco de maquiagem no rosto. Eram oito em ponto quando entraram no bonde que os levaria até o centro e, logo que saltaram do transporte, Lucjan reconheceu a figura desajeitada de Fionn na esquina da rua Ruska. Escorado na haste de ferro de uma placa, tinha as duas mãos nos bolsos do jeans.

― Faz tempo que chegou? ― Lucjan perguntou assim que atravessaram a rua em direção a ele.

― Não. Acabei de chegar ― Fionn disse, endireitando a postura. ― Dobry wieczór ― saudou, claramente orgulhoso de sua pronúncia.

― Boa noite ― Marlena respondeu em inglês. ― Você é ruivo!

Lucjan deixou os olhos caírem sobre ela, que estendia a mão alegremente na direção de seu amigo.

― Eu sou ruivo ― Fionn concordou com um sorriso, cumprimentando-a. ― Você é Marlena?

― Sim, muito prazer.

Caminharam juntos para dentro do emaranhado de ruas do centro. Marlena, com o braço enroscado no de Lucjan, avaliava com entusiasmo todos os bares e restaurantes da região, mesmo que já tivessem escolhido exatamente para onde iam.

Assim como os outros estabelecimentos, o Papa Bar oferecia uma tenda junto à calçada, com algumas mesas disponíveis para quem quisesse se sentar do lado de fora da loja. Até parecia uma boa para dias quentes, o que não era o caso daquela sexta-feira. Em contraste com o pouco movimento ali, o lado de dentro estava cheio, e eles precisaram se encaixar em um espaço pequeno no balcão que margeava o bar, sentados quase em um círculo disforme em que se esbarravam o tempo todo.

― Logo começa a esvaziar ― Marlena garantiu. ― O pessoal vem pra cá depois da faculdade, ou do expediente, mas não fica até muito tarde.

Depois de bons dez minutos conseguiram suas primeiras bebidas. Apesar das tentativas da moça de convencê-los a escolher um dos drinques, que ela jurou por todas as coisas que eram os melhores da cidade, os dois rapazes se mantiveram firmes na escolha da cerveja artesanal. Ainda estavam tentando se recuperar do porre de Tanqueray que tomaram em um pub de jazz, onde tinham ido no fim de semana anterior.

Dois meses ficaram para trás desde que Lucjan e Fionn se conheceram. Tal como tinham imaginado, voltaram a se encontrar na escola de idiomas com alguma frequência, embora Lucjan só aparecesse lá para as aulas que substituía, e que não eram muitas. Fionn, que não parava de reclamar sobre a dificuldade de acompanhar o resto de sua turma, o persuadiu a algumas aulas particulares em troca de um pouco de dinheiro e cappuccinos no café mais próximo. Somente algumas semanas depois da quinta-feira em que trocaram as primeiras palavras, combinaram de sair em um sábado à tarde.

Andaram pela cidade por horas, aproveitando os últimos dias de calor para conhecer os pontos turísticos que nenhum dos dois tinha visitado antes. Terminaram o passeio em um pub ruim, onde encontraram alguns dos colegas de pensão de Fionn; um rapaz e três garotas que vinham da Noruega e estavam fazendo um mochilão pela Europa. A Polônia era o terceiro país por onde passavam, depois da Alemanha e Luxemburgo, e antes da Suíça, que seria o último destino.

Depois disso, Lucjan e Fionn começaram a combinar programas aleatórios de meio de tarde ou fim de noite. Se davam bem, e Lucjan havia sentido falta de ter um amigo para além de Marlena. Houve situações em que chegara a pensar que estava interessado em Fionn e, embora a sensação se parecesse com a que tinha quando começara a se aproximar de Damian, achava que quando se sentisse atraído por alguém outra vez iria querer beijar a pessoa, certo? Ele definitivamente não queria beijar Fionn.

― Não está acontecendo. ― Ouviu o amigo dizer a Marlena. ― Anos atrás acreditavam que todo esse pessoal em situação de rua era basicamente homens mais velhos, viciados em qualquer coisa, que tinham perdido tudo por conta de droga e bebida. No ano passado saiu uma pesquisa, e são famílias inteiras. Famílias inteiras na rua, e nada acontece. Já fui em protestos em que só estávamos em meia dúzia, ninguém tá nem aí.

Lucjan deu um gole em sua cerveja, sem qualquer intenção de entrar no assunto dos outros dois, que tinha começado quando Marlena contara que estava no quarto semestre de ciência política. Em vez disso, os observou e assistiu ao crescer lento, mas contínuo, do que quer que fosse aquela energia entre eles. Havia proximidade, um calor novo, algo de preciso e excitante. Estavam corados, animados. Mesmo Fionn, que não costumava falar muito, não tinha parado um segundo de argumentar, elogiar, criticar. Lucjan soube o que aconteceria quando, em algum momento, Marlena encostou a testa no ombro do rapaz para gargalhar, e Fionn não estranhou sua presença. Nem mesmo um pouco.

Talvez devesse ter dito a ele que eram ex-namorados, mas agora parecia tarde demais para isso.

― Lout ― Marlena chamou quando Fionn saiu para ir ao banheiro e os dois ficaram sozinhos. ― Tá tudo bem?

― Sim, por quê?

― Você parece entediado pra caramba.

Lucjan negou com a cabeça e tentou um sorriso, que não a convenceria nem em um milhão de anos, e ele sabia disso.

― O que tá acontecendo?

― Nada, Mena ― ele murmurou. ― Eu estou cansado, só isso.

Pensou em dizer a ela. Pensou em falar que Fionn não sabia que já tinham sido noivos, e que não ficava confortável com a ideia de vê-los juntos, mas por que achava que tinha esse direito? Todos os três ali eram solteiros. Inclusive, tinha sido o primeiro a saltar daquele barco, e não da maneira mais justa que poderia. Para Marlena parecia tudo muito bem, e Fionn mal desconfiava da confusão onde havia se metido. Então Lucjan recuou. Quem achava que era para de repente soltar seu coração angustiado naquele balcão e deixar que os outros dois lidassem com isso?

Ora, ele que o fizesse.

― Será que agora já consigo persuadir vocês à margarita do Tommy?

Ela conseguiu. E ao fim do copo, Lucjan se sentiu menos preocupado. Talvez porque tivessem começado a conversar sobre coisas nas quais ele também conseguia opinar, ou porque o bar estava de fato ficando mais vazio, fazendo com que começasse a se sentir menos sufocado pelo público. E tinha aquele rapaz, que não tinha notado até Marlena cochichar em seu ouvido, sentado junto de um grupo de pessoas em uma mesa do canto, o observando não tão discretamente. Lucjan não tinha qualquer intenção de ir até lá, e torceu para que ele não viesse até ali, mas se divertiu com a cócega no estômago toda vez que seus olhares se cruzaram a meio caminho um do outro.

Logo o cara foi embora, e o barman não demorou para vir avisá-los de que também precisavam ir, mas deixou que terminassem seu terceiro copo de margarita enquanto fechava as portas e erguia as cadeiras. Subiram de volta até o ponto do bonde e Lucjan não teve certeza sobre quem tinha convidado Fionn para estender a noite em seu apartamento - nem sequer se ele tinha sido convidado -, mas pegaram o mesmo transporte e chegaram em casa.

Tudo o que tinham para beber era um vinho branco que usavam para cozinhar, mas que naquele momento, para a condição em que estavam, pareceu ótimo. Sentados na sacada, Lucjan ouvia Marlena falar sobre o rio Oder para Fionn - onde ficavam suas pontas e as cidades que atravessava. Avisou que ia ao banheiro e, muito antes de voltar o caminho todo, ele soube. Não precisou ver, nem ouvir. Estava no meio da sala, a bons passos da porta da sacada, mas podia sentir. Experimentou o despontar de sentimentos novos e atípicos, e o retornar de alguns com os quais já estava acostumado. Odiou os dois, odiou a si mesmo, odiou a ironia com que a vida movia todas as peças. Por outro lado, e essa era a parte inusitada, gostou de saber que era Fionn ali com Marlena. E que era Marlena ali com Fionn.

Parecia mais certo do que errado, no fim das contas.

—--

Quando Lucjan acordou, estava suando frio. Com o vômito na garganta, rolou o corpo indisposto para fora da cama e se apressou até o banheiro. Não estava surpreso, só arrependido. Sua cabeça parecia pesar duas vezes mais e, mesmo depois de escovar os dentes duas vezes, sentia o gosto amargo da bile em sua língua.

Ainda estava escuro, mas, com a chegada do outono, poderia ser até sete horas da manhã e o sol ainda estaria só cogitando a possibilidade de se espreguiçar e aparecer. Arrastou-se pelo corredor até a cozinha, torcendo para que um copo de água bem gelada aliviasse o mal-estar.

Já tinha se servido e escorado o corpo na bancada do armário quando notou, nas sombras da sala de TV, a cabeça de Fionn se erguer do sofá. Com os sentidos confusos, não conseguiu externalizar o susto, mas pôde sentir o coração disparado no peito.

― Lucjan ― o ouviu chamar, rouco pelas horas de sono, enquanto se levantava para vir em sua direção. ― Por que não disse nada sobre você e Marlena?

Lucjan o observou, emudecido pela falta de palavras. Depois chacoalhou a cabeça de um jeito que, reconheceu, não queria dizer nada.

― Eu nunca teria... Eu nunca teria ― Fionn continuou, os olhos urgentes e o corpo encolhido em um cruzar firme de braços, como se a camisa de flanela fosse insuficiente para o frio que fazia naquela madrugada.

― Tá tudo bem ­― Lucjan falou, sua voz escapando junto com um suspiro. ― Já faz mais de um ano que nós terminamos.

― E isso é absolutamente nada para quem namorou por dez.

Lucjan engoliu o resto da água que tinha no copo, apenas porque esperava que soubesse o que dizer quando terminasse. Não soube.

― Agora que esclarecemos, não vai acontecer de novo ― Fionn prometeu.

― Não quero que façam isso por causa de mim ― disse, quase interrompendo a frase do amigo pela metade. ― Marlena e eu, o término, é definitivo, Fionn. Não é como se eventualmente fôssemos voltar. Não vai acontecer. E seria no mínimo muito estúpido que eu decidisse interferir na vida dela agora.

― Você não interferiu ― Fionn lembrou. ― Não foi uma decisão sua.

― Não diretamente. ― E, depois de respirar fundo, Lucjan se concentrou no rosto do outro. ― Ela te contou o que aconteceu?

― Não. Ela só me disse que, ehm, não achava legal ficarmos juntos sem antes falar com você ― o rapaz relatou, apoiando o próprio corpo contra a geladeira. ― Eu até achei que você fosse a fim dela ou algo assim, mas aí ela, ehm, explicou.

Lucjan tinha quase certeza absoluta de que Marlena ficaria furiosa se soubesse que Fionn contara a ele sobre isso.

― Eu conheci um cara há uns três anos ― empurrou para fora de uma só vez. A informação foi seguida de um silêncio que significava espera; Lucjan pela reação de Fionn, Fionn pelo resto da história. ― Eu ainda estava com a Mena e, você sabe, eu pisei na bola.

― Nossa, cara ― Fionn lamentou baixinho.

― Você entende que ela poderia transar com você na minha cama, e ainda assim eu não teria direito nenhum de me opor?

― Lucjan, eu entendo, mas, ehm, não concordo. ― E, como se para combinar com sua falta de jeito, encolheu os ombros um poucos mais. ― Existem coisas que, quando olhamos pra trás, nós, ehm, nós só não entendemos como, ehm, como deixamos acontecer. ― Fionn pausou e respirou fundo duas vezes, como se não tivesse planejado o restante do que iria dizer. ― Isso porque parece tão absurdo, e ficamos tão concentrados só no arrependimento, que nós não, ehm, não conseguimos nem pensar no que estávamos sentindo na hora, você sabe? No momento em que aconteceu. Às vezes o que estamos sentindo só, ehm, só... Sei lá, não dá espaço para grandes raciocínios lógicos e lições de moral. Acontece.

Lucjan se esforçou para pelo menos concordar com a cabeça e mostrar a Fionn que estava ouvindo. Tentou absorver o máximo de tudo o que ele dizia, engolindo uma palavra atrás da outra como se elas fossem desobstruir o caminho que o remorso tinha bloqueado.

― Traições são uma merda ― Fionn acrescentou depois de um tempo. ― Mas você já deve ter se desculpado com ela, e Marlena não estaria aqui se não tivesse te perdoado por isso. Ou estaria, mas transaria comigo na sua cama.

Lucjan soltou um riso inesperado.

― Obrigado, Fionn.

O outro apenas agitou a cabeça, como se dissesse que não cabia ali nenhum agradecimento. Lucjan ofereceu um chá, que ele aceitou imediatamente. Se sentaram na sacada, lado a lado nos pufes cor de rosa, para assistir ao desenrolar do amanhecer de outono, que era sempre muito penoso, como se o sol precisasse se esforçar para iluminar todo o céu por trás do cinza consistente das nuvens.

― Você e o cara. Não deu certo? ― Fionn quis saber.

― Ele tinha outra pessoa também ― revelou, baixinho e sem pressa.

― Que merda.

― É. Mas tudo bem, eu não me arrependo do que aconteceu. Não dessa maneira. Por causa de Marlena, sim. Mas não por causa de mim, ou dele ― Lucjan falou. Depois da psicóloga do abrigo, com quem conversara algumas vezes durante sua estada, Fionn fora a única pessoa para quem confessara aquilo. ― Eu precisava que alguém fizesse isso por mim, você sabe? Abrir a porta do meu armário. Talvez eu nunca descobrisse sozinho que havia mais do lado de fora.

― Viu só? Tem coisas que precisam acontecer ― Fionn pontuou. ― Mesmo que de um jeito meio torto.

E Fionn não falava aquilo como se só quisesse amenizar seu desconforto, Lucjan apostou. Falava com a convicção e facilidade de quem acredita nas próprias palavras, pronto para argumentar a favor delas, defendê-las contra qualquer teoria que se opusesse. E assim ficava muito mais fácil para Lucjan confiar no que ele dizia, embora parte sua, severa e incompreensiva, continuasse alimentando sua culpa um pouquinho por dia, todos os dias.

—--

― Tá acordado?

Lucjan virou o corpo de frente para a porta, agora entreaberta, dando espaço para os olhos acuados de Marlena.

― Sim, vem cá.

Ela passou o corpo para dentro. Ainda estava de pijama, mesmo que fossem seis da tarde. Não se lembrava de uma única vez, desde que chegara, que Marlena tivesse demonstrado tanta indeterminação em se deitar ao seu lado.

― Lout, sobre ontem. ― E ele pensou em interrompê-la já ali, antes do começo, mas depois achou que seria grosseiro fazer isso. ― Eu não tava pensando direito. Eu sei que você disse que tá tudo bem eu ficar com outros caras, mas ele é seu amigo, eu sinto que cruzei uma linha que não deveria.

― Mena ― ele chamou e sentiu quando o rosto dela se moveu no travesseiro que dividiam, virando para encontrar o seu. ― Se vamos ter essa conversa, acho que deveria ser com suflê de chocolate.

― Vou vestir minha melhor roupa!

Meia hora depois estavam adentrando pelas portas do Splendido, um restaurante do centro onde costumavam ir para comemorar qualquer feito - aprovação de Marlena em alguma matéria que ela odiava, ou Lucjan ter conseguido passar uma semana sem estralar o pescoço. Era claro que tudo era uma desculpa, e os dois sabiam disso. O suflê de chocolate era o único motivo pelo qual ainda tinham coragem de dispor de tanto dinheiro em um único jantar, que, para piorar, vinha em porções surpreendentemente pequenas.

Pegaram uma mesa para dois, em um canto quieto e aquecido, e adiantaram logo o pedido da entrada, porque queriam mesmo era chegar na sobremesa. Marlena falava sobre uma colega de classe, que estava sentada logo ao lado, mas que nunca cumprimentava quem quer que fosse fora da universidade, e Lucjan só conseguia se perguntar quando e como começariam a conversar sobre eles. O que havia acontecido com Fionn, Lucjan notou entre um gole e outro de sua água, era o de menos.

― Você está odiando morar comigo?

Ele ergueu a cabeça de uma vez. A colher parou no ar com um tranco, derrubando toda a sopa de cogumelos de volta em sua tigela. Marlena o olhava paciente, destemida, como se estivesse pronta para qualquer que fosse a resposta.

― É claro que não. De onde você tirou isso?

― Lout, você nem parece o mesmo ― ela falou, calma e cuidadosa, como se quisesse o amansar, mostrar que havia outros tons para aquela conversa além do que ele tinha usado e que, talvez pela surpresa, soara tão contrariado. ― Eu sei que você passou por muita coisa, talvez mais até do que eu saiba ou consiga imaginar, e que esse é o tipo de coisa que muda as pessoas pelo resto da vida. Eu só quero saber até que ponto tem a ver com morar comigo.

Lucjan estava com tudo na ponta da língua. Diria que ela não podia estar falando sério, que não tinha e nunca teria nada a ver com ela, que só estava vivendo um período confuso e problemático desde que tudo viera à tona. Ainda estava se recuperando e descobrindo o que fazer com o caos. Nada disso era mentira, considerou. Mas também não era toda a verdade.

Com um suspiro que dizia muito sobre como estava prestes a ceder, procurou pelos olhos de Marlena.

― Eu não odeio morar com você ― começou, porque achou que devia a ela aquela resposta. ― E eu sei que eu não pareço o mesmo, mas, Mena, nada mais é como antes. Não sou só eu. Tá tudo diferente, e eu ainda não sei direito o que fazer com isso.

― Falar comigo?

― Eu sei ― Lucjan soltou o corpo contra o encosto da cadeira, os ombros caindo ao fim do suspiro pesado. ― Eu sei, mas eu não fazia ideia de como. É difícil encontrar um jeito de dizer isso. Eu não queria que você achasse que eu tô sendo mal agradecido, ou que eu odeio morar com você, o que você já acha de qualquer maneira.

― Lucjan, tirando meus pais, você é a pessoa que eu conheço há mais tempo no mundo inteiro ― Marlena pontuou lentamente. ― Eu ouço tudo o que você não me diz.

― Que bom, assim não precisamos mais dessas conversas ― murmurou, com um sorriso provocativo que fez Marlena revirar os olhos. ― Mena, só é estranho, ok? Nós namoramos por dez anos, é difícil só... me adequar a esse novo cenário. Eu não consigo, algumas situações são esquisitas, é como se... Me incomoda. É isso. Existem algumas coisas que me incomodam.

― Certo, então você precisa me falar quais são elas.

― Não. É esse o problema. ― Lucjan endireitou a postura e se inclinou para mais perto da mesa. ― Eu não quero que você tenha que se policiar, porque isso ia deixar tudo mais estranho ainda. Sou eu quem precisa lidar com essas coisas, Mena, e foi por isso que eu não falei com você antes.

― Ok ― Marlena concordou, mas, pela expressão que sustentava no rosto, Lucjan sabia que havia sido engolida pelos próprios pensamentos. Levou um tempo até que ela se manifestasse outra vez. ― E isso não tem nada a ver com o Fionn, certo? Digo, não é de ontem pra hoje.

― Não ― ele confessou. ― Sobre isso, também é um pouco esquisito, mas ao mesmo tempo é meio... é meio, eu não sei, certo? Parece certo. Fionn é boa gente, e você é a melhor de todas. Vocês ficariam bem juntos.

Os olhos de Marlena cintilavam, pacientemente pousados nos seus. Ela sorriu o melhor dos sorrisos, depois negou com a cabeça, se debruçando sobre a mesa apenas para conseguir dar um beijo em sua têmpora, lento e carinhoso, antes de se afastar outra vez.

Lucjan respirou fundo, indiscutivelmente aliviado quando ela trouxe outro assunto à mesa, encerrando aquela conversa de uma vez. Pelo menos por ora. Talvez tivesse mesmo sido uma boa ideia, ele admitiu. Já até começava a se sentir menos desconfortável, percebeu mais tarde, enquanto caminhavam de volta para casa, de braços enroscados e corações tranquilos.

― Você tem falado com Damian? ― Marlena perguntou enquanto ia saltando de um canal para outro na TV da sala, a cabeça apoiada na barriga de Lucjan. Ele não se moveu. Em silêncio, percorreu todas as conversas que tinham tido na época em que contara que havia ficado com um cara. Estava certo de que nunca dissera quem era ele.

― Não ― respondeu por fim, tentando soar tão casual quanto ela. ― Por quê?

― Não sei. ― Marlena chacoalhou os ombros. ― Ele é uma graça.

Lucjan não conseguiu desfazer os olhos de choque a tempo. Os dela vieram e o flagraram em sua surpresa.

― Como você sabe?

― Oh, por favor, Lout! ― ela protestou, a atenção correndo de volta para a TV. ― Agora você tá subestimando minha percepção. Vocês estavam sempre juntos naquele ano, e eu via como ele olhava pra você. Além do mais, uma sereia seria menos atraente que o Damian.

Lucjan riu espontaneamente da comparação boba.

― Ele quem me passou o endereço do abrigo.

E riso nenhum sobreviveu àquela novidade. Lucjan a encarou até que ela finalmente colocasse os olhos nos seus.

― Eu não sabia mais para quem pedir ― Marlena explicou. ― Eu já tinha discutido com todo mundo do serviço social àquela altura, então...

― Você foi e perguntou pra ele.

― Uhum. Ele estava preocupado porque você desapareceu do trabalho, e ninguém mais soube de você. Contou até que teve um dia que ficou a tarde inteira sentado na esquina da sua casa, pra ver se via você sair ou entrar, o que é assustador, mas um pouco fofo também.

Os dois gargalharam. Parecia estranho, mas deveria ser um bom sinal que agora estivessem rindo de coisas como aquelas, que envolviam Damian e todo o resto.

― E como ele sabia do abrigo?

― Não sei, não perguntei. Só disse que você estava em um abrigo, perguntei se ele por acaso tinha o endereço, e ele disse que achava que sim.

Lucjan concordou com a cabeça, depois voltou a alisar o cabelo de Marlena, que devolveu a atenção para os canais que nunca pareciam bons o suficiente.

― Você tem razão sobre ele ser atraente ― comentou com ela. ― E ele sabe disso, então, você deve imaginar, é um problema. Ele tá sempre muito preocupado em ser atraente, mas não sabe o que fazer com quem ele atrai.

― Eu tinha certeza! Ninguém pode ser tão bonito e não usar isso para o mal. Seria um desperdício.

Lucjan se desmanchou em uma risada alta.

― O show de Truman ou Fargo? ― ela quis saber, saltando de um filme para outro no guia de programação.

― Truman ― Lucjan escolheu, logo antes de um bocejo.

― Não vale dormir, Lout.

― Não vou.

Ele iria.


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Notas finais do capítulo

Boa tarde, pessoas!
Semana passada passou e eu nem vi, mas recompensa seja dada, disponibilizei dois capítulos nessa.
Espero que, quem está acompanhando, esteja curtindo a história, o Lout, e todo o resto.

Me contem por favor o que estão achando, é importante pra mim ter essa troca com os leitores, e me faria muito feliz.

Xx
Lô Bernardelli



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