Missão Apollo escrita por Camélia Bardon


Capítulo 1
Não é fácil controlar algo que você planejou


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente! Tudo bem com vocês? Primeiramente, peço desculpas pela extensão do texto. Tive sete semanas para escrever e metralhei o teclado faltando dois dias pra acabar o prazo do concurso *risos nervosos*

Segundamente (que?) essa é uma songfic. O nome tem mais a ver com ela do que com a história em si, como vocês poderão reparar ao longo do texto. A música, cuja qual deu base à história, chama-se "Missão Apollo", e pertence à banda Zimbra. Caso queiram ouvir para dar mais emoção ao texto, deixo aqui o link: https://www.youtube.com/watch?v=Nv0QOyPXxmY

Vou deixar um pouco mais sobre o que é realidade e o que eu inventei nas notinhas finais. Boa leitura e até lá!



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A mãe de Barb sempre dissera a ela que as pessoas nunca dão valor às coisas que têm até perdê-las. No entanto, Barb era um tanto cética quanto a frases feitas e clichês no geral. Por exemplo, sua mãe também dizia que só poderia ser uma obra do destino Kentin não ter sido convocado para o conflito na Armênia no meio do ano de 1921.

Para entender melhor essa história, deve-se voltar alguns anos outrora, quando ambos eram jovens demais para entender o valor do tempo.

 

Desde que se entendia por gente, Barbara Lucas e Kentin Leclercq estavam juntos a qualquer momento. Ambas as mães engravidaram em períodos semelhantes, brincaram juntos na infância e estudaram inglês juntos na escola secundária. Ambos também jogavam fubeca ⎻ por mais que permanecessem escondidos do olhar recriminador da mãe de Barb, que era da opinião de que aquilo era deveras inadequado para uma menina. No entanto, tanto Barb quanto Ken ignoravam tal censura, pois tão-somente tinham um ao outro.

Barb era isolada por si só, preferindo a companhia da natureza dos belos mercados de queijo e frutas ⎻ que marcava presença a cada esquina de Riquewihr ⎻ e do gato, Eclair, a eventos sociais. Já Kentin, que também tinha um animal com nome de comida ⎻ o pastor alemão Cookie ⎻, era um tanto diferente.

Desde criança, Kentin tinha um problema sério na vista, e fora forçado a utilizar óculos de fundo de garrafa, que cobriam seus brilhantes olhos verdes. Kentin era vítima de piadas pejorativas por conta disso, menos de Barb, é claro. Ken, como todos o chamavam na época, aguentava tudo calado, por mais que Barb o aconselhasse do contrário, até que completaram seus dezesseis anos, em meio à Grande Guerra.

⏤ Você não pode deixar que te intimidem assim, Ken  ⏤ pediu ela, pela última vez.

⏤ Está bem. E o que você quer que eu faça, confronte-os assim, sem mais nem menos?

⏤ Há outro tipo de confronto? ⏤ ela ergueu uma sobrancelha.

⏤ Eu… ainda estou averiguando as chances de descobrir.

Barb revirou os olhos amendoados e riu com uma pontada de ironia.

⏤ Ken, seja mais espec…

⏤ Eu vou me voluntariar para o Exército, Barb ⏤ disse ele, numa cartada só.

O baque da revelação foi como um tapa para Barbara. Ela apoiou-se na parede mais próxima, e encarou o amigo inexpressiva. Kentin parou junto a ela, puxando os óculos para cima.

⏤ De todas as maneiras para lidar com a intimidação, foi essa a maneira que encontrou, Leclercq? Voluntariando-se para o Exército? Em plena Grande Guerra? Vão deixar um moleque entrar nas trincheiras?

⏤ Eu já pensei em tudo, minha cara ⏤ Kentin tentou acalmá-la, numa vã tentativa de parecer maduro. ⏤ Lembra-se daquele garoto, Evan, que morava na rua Mandle?

⏤ Ora, como não lembrar? A esta altura, é bem capaz de a França inteira pensar nele como má influência. Que tem Evan?

Kentin trocou o peso dos pés, suspirando.

⏤ Há algum tempo venho me correspondendo com ele. Evan contou-me de que não há apenas as trincheiras a necessitarem de soldados. Estão necessitados de… ⏤ ele baixou o tom de voz. ⏤ Pessoas para a inteligência, entende? Pilotos. Espiões. Evan irá ensinar-me a pilotar um avião, com a mínima probabilidade de…

Ele não precisou terminar a frase. Barb completou, com um muxoxo:

⏤ De morrer em combate.

Kentin assentiu com a cabeça. Não aguentando ficar mais em pé, Barbara rumou para o banco mais próximo, sentando-se com o apoio de sua sombrinha. Ergueu as saias dramaticamente e molhou os lábios, mas não conseguia pensar em nada mais. Kentin acompanhou-a, retirou os óculos e fitou-a com os intensos olhos verdes.

⏤ Eu não confio em Evan, Ken ⏤ Barbara sussurrou. ⏤  Temos dezesseis agora. E sabe-se lá Deus quando este inferno vai terminar… pode ser amanhã, pode ser daqui dez anos. Como será a minha vida se eu for obrigada a passar dez anos sem você, Leclercq?

⏤ M-mas… eu pensei que você ficaria orgulhosa por eu ter tomado uma atitude…

Barbara posicionou uma mão em seu ombro, segurando a emoção que tentava lhe escapar. Não demonstrava-na com facilidade, no entanto, quando o fazia, era irônico que tudo lhe quisesse sair como a uma torrente de si.

⏤ Não desta forma, Kentin. Não assim.

Num movimento súbito, Barbara puxou-o para um abraço, ignorando todas as convenções sociais. Seu coração encontrava-se acelerado por conta da adrenalina que percorria o seu corpo.

⏤ Eu sei que não há nenhuma forma de eu fazê-lo mudar de ideia, pois você é tão teimoso ⏤ ela sussurrava, tentando não perder as estribeiras. ⏤ Então, por favor, prometa que vai se manter seguro. Prometa que vai voltar, não importa o quanto demore.

Kentin parecia transtornado. Suspirou e apartou o abraço, para voltar a fitá-la nos olhos.

⏤ É uma promessa.

⏤ Promessa é dívida.

Ele riu, fraquejando. Levantaram-se e tentaram por um momento ignorar suas desavenças. Kentin tomou a mão de Barbara e ali aplicou um beijo delicado ⎻ cujo qual ela lamentou não senti-lo em sua pele por conta das luvas. Ela suspirou, juntando forças para sorrir.

⏤ Quando partirá?

⏤ No sábado, à noite.

Simples assim. Numa noite de verão, ela acompanhou-o até o trem que levaria-o até Paris, e então tudo tornar-se-ia confidencial. Parecia um sonho ruim, que Barbara desejava urgentemente acordar.

Mesmo à noite, o brilho dos olhos de Kentin não ofuscava por um segundo sequer. Foi a vez de Barbara erguer-se na ponta dos pés para beijá-lo na testa. Antes de deixá-lo partir, entretanto, depositou em sua mão um pequeno objeto de prata.

 

 

⏤ Abra-o se sentir-se sozinho em demasia.

Antes que pudesse continuar, o maquinista indicou sua saída, e Barbara nada mais pode fazer senão afastar-se e observar seu melhor amigo partir junto ao trem. Mal percebeu que lágrimas acumulavam-se, teimosas. Enxugou-as com violência, e tomou o rumo de volta para casa.

Aos dezesseis anos, Barbara decidiu que nunca abaixaria a cabeça para o destino; se é que ele existia, bateria de frente, dignamente.

 

✈️✈️✈️

 

Kentin Leclercq poupou as forças para o dia seguinte. Esperava que pudesse ser recompensado por suas ações mas, após as inúmeras incertezas de Barbara, hesitou por um momento. Já estava feito, de qualquer maneira, então recostou a cabeça no batente da janela e tentou cochilar, mesmo com os chacoalhões ao longo do percurso.

Ao raiar do dia, acordou resmungando. Seu primeiro instinto foi o de buscar o presente de Barbara no bolso do paletó. Encontrou o metal contraditoriamente gelado em meio a quentura do corpo, então retirou-o do bolso.

Tratava-se de um pequeno medalhão, com uma fotografia cortada em dois, cuja qual retratava ambos com seus treze anos. Barbara, com seu novo vestido de festa cor creme e azul, comemorava sua entrada na sociedade após tornar-se mulher. E ele, com o cabelo cortado à escovinha e gravata-borboleta, junto aos óculos grossos.

Ridículo, como sempre.

Quando teria a coragem de contar a ela o amor que nutria desde… bem, desde que se entendia por gente? Isto é, se voltasse com vida da Grande Guerra.

E então, notou algo inédito. Do medalhão, um pedaço de papel rasgado escondia-se atrás da fotografia de Barbara. Kentin desdobrou-o e leu a curta mensagem na caligrafia delicada de Barbara: Esperarei você pelo tempo que for necessário, aonde quer que vá. Para sempre juntos.

Kentin mordeu o lábio inferior, e sorriu ao levar o medalhão junto ao coração, de onde fluíam seus sentimentos mais belos.

O chiado da locomotiva despertou-o do torpor, fazendo-o levantar-se desajeitadamente em busca das malas no banco à frente. Haviam poucos passageiros no trem noturno, no entanto a mesma expressão melancólica assombrava seus rostos. Kentin seguiu o caminho indicado pelo maquinista ao longo da Estação Gare du Nord. Há anos não via Evan, mas supunha que um par de olhos lilases fossem fáceis de serem reconhecidos.

E, de fato, foram.

Recostado sobre uma coluna, encontrava-se a familiar face de Evan da rua Mandle. Permanecia, ao menos na aparência, como Kentin recordava-se: expressão corporal exalando rebeldia, cabelos negros e curiosos olhos. Quando o viu, fingiu um bocejo e saltou para frente. Kentin perguntou-se como alguém, em sã consciência, poderia estar animado àquela hora do dia.

⏤ Leclercq! Ora só, mas vejam se o jovem Ken agora não é um homem formado ⏤ entoou ele, dando um tapa em suas costas numa tentativa de ser amigável. ⏤ Se bem que ainda lhe faltam alguns músculos, mas nada que uns bons ovos crus e umas flexões não ajudem, correto?

Kentin murmurou uma resposta qualquer, que Evan aceitou a contragosto.

Dentro de algumas horas, Kentin e Evan transitaram de Gare du Nord até o centro de treinamento do Exército francês. Quando aproximaram-se do destino final, Evan enfim iniciou o esclarecimento da situação:

⏤ Deve estar se perguntando o porquê de começarmos na aviação, Leclercq ⏤ ele andava com firmeza, parando vez ou outra para cumprimentar algum colega. ⏤ Imagino que estivesse com medo de o colocarmos diretamente nas trincheiras, não?

⏤ Confesso que sim ⏤ era a primeira vez que a voz de Kentin era escutada com clareza.

⏤ Se me permite ser sincero, apenas os fracos e moribundos estão sendo designados às trincheiras a esta altura do campeonato. Já a aviação é para um grupo seleto de soldados; isto porque aquele maldito von Richthofen está montando uma equipe de esquadrão de caça aérea. Precisamos estar à altura antes que nos surpreendam com um bombardeio aéreo.

Kentin sentiu uma pontada de incômodo ao escutar Evan classificar seres humanos como dispensáveis e úteis. Ele sabia que a guerra afetava diretamente os sentimentos dos homens, no entanto.... Kentin achava aquilo um tanto frio de se dizer. Evan tratava soldados como… como gado.

⏤ Bem ⏤ retomou ele, unindo as mãos e esfregando-as uma na outra. ⏤ De qualquer maneira, você, meu amigo, passará por outros dois treinamentos: um para aprender a se virar com uma arma na mão e o outro para aprender o básico de espionagem.

Kentin buscou o medalhão no bolso e apertou-o como se a vida dependesse daquilo. Ele não viu outra opção além de afirmar com a cabeça e prosseguir o caminho.

E, ao que tudo indicava, ele seria longo.

 

Em pouco mais de três meses, Kentin aprendera a manusear uma espingarda com o cabo Castiel (que Kentin preferia evitar sempre que possível, por tratar-se de um sujeito um tanto descortês). Também dividia seu tempo entre desenvolver técnicas de voo a com o líder do esquadrão aéreo, Nathaniel ⎻ este, frequentemente visto em seu esporádico tempo livre com os óculos de aviação pendendo pelo pescoço enquanto lia algum romance policial ⎻, e com Armin, um soldado da inteligência que não aparentava ter a função que tinha. Encontrava-se sempre em um estado abobalhado.

Até o momento em que aprendia a voar, tudo corria bem na medida do possível. Após a terrível ofensiva franco-britânica que durara cerca de uma semana, vários motins ergueram-se por diversas divisões do Exército. O próprio Kentin era testemunha viva do motivo da revolta: já passara por situações de combustível limitado e de danos na fuselagem. Alguns diziam que era a época certeira para desertar e voltar para suas mulheres, no entanto Kentin e os amigos preferiram abster-se de qualquer revolta. Ao invés disso, resolveu relatar à Barbara a situação.

⏤ Francamente, isto é uma grande bobagem ⏤ Castiel protestou, em meio ao refeitório improvisado nos escombros do que há dias fora uma padaria. ⏤ Por que não estamos participando ativamente? Bem que eu adoraria enfiar uma bala na cabeça daqueles cretinos.

⏤ Não participamos porque não queremos uma bala nas nossas cabeças ⏤ Nathaniel resmungou, como se falasse como uma criança. Castiel revirou os olhos em resposta.

⏤ Não fariam isso, fariam? ⏤ Armin ergueu uma sobrancelha, visivelmente transtornado. ⏤ Seria burrice executar soldados em plena guerra.

⏤ Até parece que alguém nesse inferno pensa em algo além de morte e miséria ⏤ Kentin acrescentou num murmúrio, ainda concentrado na carta à Barbara.

Castiel riu, erguendo uma sobrancelha.

⏤ O novato enfim entendeu como funcionam as coisas por aqui.

Antes que pudesse responder, Armin interrompeu-os com um pigarro. Os três restantes olharam na direção em que o moreno indicava com a cabeça, vendo que Evan aproximava-se.

Kentin demorou um período considerável a descobrir que Evan e Armin eram irmãos. Kentin não lembrava dos dois juntos na rua Mandle, mas Armin dizia que passava seu tempo entretido com livros sobre criptogramas. Raramente frequentava a escola, ao passo que seu irmão procurara uma militar logo após completar quatorze anos. Ambos evitavam-se, desde então.

O mais velho dos irmãos sentou-se no chão de concreto junto aos demais, ignorando o fato de que não era bem-vindo pela maioria.

⏤ Suponho que estejam falando sobre as arruaças de nossos companheiros ⏤ Evan começou, num tom presunçoso. ⏤ Não estão pensando em juntar-se a eles, estão?

Arruaças? ⏤ Kentin ergueu uma sobrancelha. ⏤ Por que chama os motins de tal maneira?

⏤ Implicaria que os motivos pelos quais estão protestando, Leclercq, estão supostamente corretos. E não estão. Nossos comandantes e oficiais não alcançaram seus postos jogando pôquer, e sim com louvor. Ao menos, a maioria ⏤ disse ele com um olhar sugestivo para Castiel.

Castiel, por sua vez, suspirou calmamente e pronunciou com seu melhor tom mordaz:

⏤ Espero que esteja ciente de quem é a autoridade maior aqui, Evan. Até onde sabemos, você não passa de um subalterno.

Kentin espiou pelo canto dos olhos o momento em que Armin ergueu um sorriso, como quem finalmente presencia justiça. Nathaniel permaneceu quieto, não admitindo que concordava com Castiel. Já Evan, pigarreou e voltou-se para Kentin, preferindo fingir que nada tinha ouvido.

⏤ Está escrevendo uma carta para Barbara? Dê oi por mim.

Um silêncio irrompeu o ambiente, apenas interrompido pelo ruído do lápis e pelos resmungos costumeiros de Castiel.

 

✈️✈️✈️

 

Com a guerra, também surgiu a necessidade de empregarem-se mulheres em trabalhos nomeados masculinos. Barbara não poderia ficar de fora da nova onda modernista, já que a mãe era viúva e a pensão do governo só duraria até seus 21 anos. Portanto, tratou de tornar-se a carteira de Riquewihr. Todos as semanas, pegava o trem até Colmar. Lá, o chefe dos Correios, o excêntrico Lysandre ⎻ dono de assustadoramente belos olhos bicolores, pele pálida e cabelo platinado ⎻ sempre a cumprimentava com um singelo bom dia e uma chávena de chá.

Numa bela manhã, no início de maio do ano de 1917, ao entregar o bolo de cartas semanal, Barbara deparou-se com uma carta para si.

Leu o remetente. Não se tratava de uma carta qualquer, mas uma carta de Kentin. Seu coração correu veloz como um potro, e teve de apoiar-se no balcão de serviços.

⏤ Srta. Lucas? ⏤ preocupou-se Lysandre. Veio em seu auxílio rapidamente. ⏤ Está se sentindo bem?

⏤ Estou, estou ⏤ ela repetia mais para si do que para ele. ⏤ Meu caro amigo, pode servir-me uma chávena a mais hoje? Creio que será necessário.

Lysandre fez o que Barbara lhe pedira, enquanto ela rasgava o envelope sem gentileza. Barbara desdobrou o papel de carta e correu os olhos pelo conteúdo dela com avidez.

 

“Minha querida Barbara,

Peço perdão por não ter entrado em contato desde que nos vimos pela última vez.  Estes oito meses têm sido os mais longos desta minha vida. Logo completarei dezessete anos ⎻  bem como você ⎻ e, por mais que eu sempre quis saber como era estar um pouco longe de você (cresci assim, não mudei), admito que aqui não é o melhor lugar para devaneios. Após tanto tempo de “exílio”, por assim dizer, sinto sua falta dia após dia.

Temo que também não possa fornecer minha localização no momento, no entanto saiba que até o presente momento estou bem e seguro. Porém… algo me diz que as coisas começarão a ficar turbulentas por aqui. Minha intuição, junto aos burburinhos que correm entre os homens, apitam para uma desordem iminente.

Apesar de toda a violência que me cerca, mantenho você (assim como mamãe e Cookie, para não ser injusto) nos pensamentos, e agarro-me a essa doce recordação. E o medalhão… ah, se pudesse ver, minha cara…!

Estou fazendo progressos como aviador júnior, e E. manda-lhe lembranças.

Do seu melhor amigo teimoso, K. L.

P.S.: Pretendo continuar vivo e bem, custe o que custar. Eu fiz uma promessa, não? Um dia vou te alcançar. Só não espere acordada!”

 

Barbara não conseguiu decidir-se entre chorar de alegria ou melancolia. Ao tempo que lia a carta, Lysandre retornou com o chá. Entregou-o a Barbara e aguardou alguma reação, pacientemente.

⏤ Quer conversar sobre o que está acontecendo, Barb?

⏤ Eu… quero. Mas, antes, posso lhe fazer uma pergunta pessoal?

Ele assentiu, apoiando a cabeça na palma das mãos. Barbara soltou um longo suspiro antes de pronunciar cada palavra com lentidão. Ela provavelmente se arrependeria de dizer em voz alta, porém, enquanto isso não acontecia…

⏤ Lysandre, já… amou alguém e só foi aperceber-se disso quando já não podia mais estar com a tal pessoa?

Seu semblante sorridente tornou-se sombrio em dois segundos.

⏤ Surpreender-se-ia se eu dissesse que já, srta. Lucas?

⏤ De modo algum ⏤ murmurou ela.

E então, como se conhecessem um ao outro há tempos, abriram o coração e partilharam a gentileza, quando parecia ser impossível ter sequer um lampejo de esperança.

 

✈️✈️✈️

 

Em seu segundo verão não tendo Barbara como companhia, Kentin entendeu que não era fácil controlar algo planejado.

Havia planejado aprender a voar. Planejou também voar para longe da Grande Guerra, pois tinha esperanças de que ela fosse cessar em breve. Ao invés disso, a cada dia que passava observando as mortes violentas dos colegas entendia porque o Deus para quem rezavam tanto volta e meia se escondia por aí. Kentin acreditava que nem Ele gostava de ver as atrocidades de Sua Criação.

Após a conturbação que fora 1917, 1918 aproximou-se com a tão receada Ofensiva de Primavera. Quase ao findar de abril, as forças inglesas, francesas, canadenses e australianas uniram-se em um contra-ataque aéreo e terrestre sob o rio Somme. Evan e Kentin sairiam num biplano em sentido ao Canal da Mancha, de onde “metralharemos aqueles filhos da…” (palavras de Evan, não dele) quando menos esperassem.

Em meio à correria e aos gritos para que andassem logo ou “eu mesmo farei o favor de corrigir a incompetência de vocês com um tiro cada” (palavras de Castiel, não dele), Evan pegou o uniforme de Kentin ao invés do seu. Entretanto, ambos fizeram pouco caso da situação. Afivelaram os cintos, calçaram as luvas e tomaram seu rumo.

⏤ O Barão está aí hoje ⏤ Evan gritou por cima da ventania, indicando o triplano escarlate decorado com a característica cruz preta, seguido de outros dois biplanos alemães. ⏤ Parece que um inglês está com problemas!

⏤ Nathaniel nos mandou apenas rondar o perímetro ⏤ replicou Kentin, incomodado. ⏤ Tem certeza de que é uma boa ideia?

⏤ Não estamos sozinhos! Temos australianos e canadenses aqui atrás. Se não fomos nós, serão eles.

Kentin ajustou o espelho refletor e constatou que o Evan dizia era verdade. Suspirou, ainda pessimista, mas inclinou o manche para a direita e para baixo em direção à copa das árvores. Ouviu Evan engatilhar a metralhadora e um frio correu por sua espinha. Evan geralmente não errava os tiros, mas Kentin nunca havia enfrentado o Barão tão de perto. No entanto, se havia algo que os soldados aprendiam é que toda vida valia a pena ⎻ cada baixa equivalia a um marido, um pai, um filho, um tio ou um primo perdidos.

Voaram rente às árvores, acompanhados dos aliados. Kentin contornou-os com um aceno de cabeça e indicou que a partir dali seguiria pela esquerda. Um australiano divergiu para o lado oposto, com a intenção de cercar o triplano.

Ao passo que as mãos de Kentin suavam devido ao esforço, Evan esgueirava-se para fora do avião na tentativa de acertar um dos estabilizadores. Dois disparos foram efetuados, sem sucesso. Um dos alemães que acompanhavam o Barão irritou-se com a perseguição repentina e contornou seu biplano em direção dos inimigos.

⏤ Merda… ⏤ Kentin murmurou, sendo obrigado a dar uma guinada brusca para desviar dos disparos.

Mal teve tempo de registrar o que ocorreu em seguida. Ao mesmo tempo em que o australiano atirou e abateu o Barão ao explodir seu motor, o alemão que o acompanhava disparou contra Evan e Kentin.

Por instinto, Kentin encolheu-se no assento, mas a bala passou direto e atingiu o peito de Evan com um baque surdo. Este, por sua vez, gritou de dor, assustando Kentin a tal ponto que o fez perder o controle do manche. O biplano pendeu em direção às árvores, indo colidir com uma delas, quebrando a asa esquerda. Evan, que estava sem o cinto de segurança por conta da mobilidade, foi arremessado para fora.

Kentin, em puro terror e com lágrimas brotando violentamente, desafivelou o cinto com uma mão e com a outra manejou o manche desajeitadamente em direção ao Rio Somme. As chances eram mínimas, mas não poderia deixar de tentar.

Tomado pela adrenalina e com apenas uma asa em funcionamento, guiou o biplano até um moinho de vento às margens do rio. Calculou com pressa quando deveria saltar, e o fez. Abandonando o biplano que o havia acolhido por dois anos, Kentin chocou-se contra o solo duro. O avião, por sua vez, foi de encontro ao moinho de vento, irrompendo em chamas.

Kentin rolou até que ouviu uma crepitação. O uniforme jazia em frangalhos e o rosto ardia de inúmeros arranhões. O óculos ou-lhe o nariz, o que o fez fechar os olhos força e só abri-los ao constatar que ainda estava vivo.

Sua primeira reação foi a euforia. Preparou-se para levantar, mas uma dor inesperada proveniente de sua perna o fez gemer com o incômodo. Era impressão sua ou ela estava um tanto… torta?

Junto com o enjoo e a tontura, sua última reação foi o desmaio, em choque.

 

Quando recobrou os sentidos, a primeira coisa que Kentin escutou foram os tiros ao longe. Piscou diversas vezes, até que uma nova figura encaminhou-se a ele. Sem os óculos, presumiu que fosse uma garota. A figura usava cabelos curtos e era dona de cabelos castanhos. Falou algo em inglês ⎻ “definitivamente, uma garota”, pensou Kentin ⎻, mas ao reparar que ele havia franzido o cenho deu uma risada fraca.

⏤ Eu devia ter suposto que era francês, pelo uniforme ⏤ sua voz era tão baixa e delicada, mesmo com o sotaque carregado, que Kentin teve de aproximar-se para escutar melhor. ⏤ Ah! Por favor, evite se mover, sim?

⏤ Onde…? ⏤ Kentin tentou formular uma frase coerente, mas sua boca encontrava-se dormente. Fez uma careta, em resposta.

⏤ Seguro. Você está seguro aqui, sr. Evan. Eu me chamo Violette. Faço parte da enfermaria inglesa, que é onde você está agora. Demos algumas aspirinas a você enquanto estava inconsciente, por isso você deve estar se sentindo um pouco perdido.

⏤ Evan? ⏤ Kentin balbuciou. Sentia-se uma criança. ⏤ Não, não. Uniforme… errado. Kentin.

Violette sorriu, apesar da timidez palpável. Ela reajustou-se no chão, e Kentin observou até onde possível os detalhes do ambiente. Vários outros soldados encontravam-se igualmente no chão. A perna de Kentin, enfaixada e alçada com o auxílio de uma pilha de livros.

Subitamente, lembrou-se de Evan, despencando no meio do nada, em total desespero. Não o via ali, e tinham caído em regiões semelhantes, o que significava que não havia possibilidade de ele ter se salvado da queda. Kentin sequer queria imaginar o que teria ocorrido com seu corpo. Com um muxoxo, ele voltou-se para Violette novamente.

⏤ Muito bem, Kentin. Vamos com calma. Foi um milagre que tenha chegado aqui com vida.

A enfermeira lhe explicara que Kentin fora encontrado próximo às margens do Rio Somme por alguns canadenses que passavam pela região ⎻ possivelmente, os mesmos que lhe acompanhavam na emboscada contra o Barão. De lá, ele fora levado para a enfermaria com ferimentos médios e uma fratura. Desde então, passaram-se três dias de delírio, então não era extraordinário que Kentin não se lembrasse de ter sido carregado até a base inglesa. Ficaria de repouso por um mês, podendo passar para a base em Paris em seguida.

Dando-lhe tempo para assimilar tudo que lhe fora e agradecer silenciosamente a qualquer força existente no Universo, Violette retirou-se para ir triturar mais ervas para os medicamentos. Kentin recostou a cabeça na parede de pedra e engoliu em seco.

Desejou estar com seu medalhão, mas este partira junto com o biplano.

Seriam tempos solitários.

 

✈️✈️✈️

 

A incerteza e a decepção consumiram Barbara pelo restante da primavera. Outro verão iniciou-se e, com ele, um telegrama do Exército para os moradores de Riquewihr. Vencida pela apatia, não quis o abrir. Quem o fez foi Lysandre, percebendo o estado em que a colega de trabalho estava.

⏤ Aqui diz que, em Riquewihr, tivemos 28 baixas e 7 desaparecimentos ⏤ ele lia tudo com muita paciência, analisando cada detalhe do documento. ⏤ Os oficiais virão nas Festas para entregar os pertences ⏤ ele fez uma pausa, mordendo o lábio inferior. ⏤ Kentin… está nos desaparecidos.

Barbara soltou o ar que não sabia que estava prendendo. Estava farta de chorar pela situação que a cercava, então apenas assentiu com a cabeça e desviou o olhar para um canto qualquer.

⏤ As cartas de lá demoram a chegar, a lista pode ter sido atualizada nesse meio tempo ⏤ Lysandre tentou consolá-la, abrindo o leque de opções. ⏤ Não perca as esperanças, Barb. Tem sido tão forte até agora, aguente um pouco mais. Algo me diz que estamos bem próximos do fim.

De fato. Barbara escutara no rádio da mãe de Kentin que as tropas inimigas tinham iniciado a evacuação das terras aliadas com a chegada dos americanos. Entretanto, isso não mudava a possibilidade de Kentin não retornar.

⏤ Talvez você tenha razão ⏤ Barbara se deu por vencida. Ajustou suas calças e pegou o bolo de cartas semanal para tomar o trem de volta ao seu vilarejo. ⏤ Nos vemos na próxima semana.

Lysandre assentiu com a cabeça, compreendendo a reação da amiga. Acompanhou-a até a estação de trem, e Barbara seguiu a viagem cabisbaixa, encarando o nome de quem amava na coluna de desaparecidos. Mal deu atenção para a coluna de baixas, teria de fixar a lista na prefeitura de qualquer maneira.

Barbara percorreu o trajeto em cerca de meia hora, pregou a lista com um pino que trazia no bolso da calça e apanhou sua bicicleta no estacionamento da prefeitura. Riquewihr era pequena, então Barbara entregou as cartas semanais em mais meia hora antes de retornar para casa. Suas pernas bambeavam. Já anoitecia ⎻ a última noite do verão de 1918.  Eclair, que já sabia de seus horários, viera recepcioná-la na porta de casa, entrelaçando-se entre suas pernas. O gato caolho voltou para dentro, convocando-a para segui-lo. Barbara guardou a bicicleta e espreguiçou-se.

Sua mãe, no entanto, brotara na entrada da casa, chocando-se com ela.

⏤ Temos visitas! ⏤ disse ela, ainda mais animada do que de costume.

⏤ Mamãe, se for novamente o sr. Lake querendo convencê-la a dar a minha mão em casamento, eu mesma o expulsarei desta vez.

A sra. Lucas apenas puxou-a sem qualquer decoro e fechou a porta. Barbara ergueu uma sobrancelha e seu coração alarmou-a. Então escutou um latido vindo dos fundos. Alguém emitiu um shhh sem sucesso, pois Cookie veio correndo ao seu encontro. O pastor alemão, já bem grande, pulou nela em um abraço canino.

⏤ Ei, garoto! ⏤ ela o afagou carinhosamente. ⏤ Já passeamos essa semana, o que está fazendo aqui?

⏤ Creio que ele tenha vindo comigo ⏤ uma voz familiar respondeu.

Barbara sobressaltou-se, seguindo a voz com o olhar. Voz essa que correspondia ao rosto de Kentin Leclercq. Ela não acreditou nos próprios olhos. Não podia ser. Não, ela deveria estar muito cansada e sua mente estava pregando-lhe peças.

Ela levantou-se cuidadosamente. Se era um sonho, por que ele estava tão diferente? Seu nariz ostentava um curativo por debaixo da nova armação de óculos, e sua perna estava acompanhada de uma tala para ampará-la. O cabelo estava mais curto e sério, e uma barba rala crescia. Seus olhos verdes a encaravam, curiosos com a reação. E, céus…! Estava mais alto. E, o que detestava admitir, mais bonito. Barbara corou com a própria consciência.

Barbara caminhou até ele, como se pisasse em cacos. O coração disparou, e Barbara temeu que ele poderia estar sendo escutado. Ficaram frente a frente, incrédulos.

⏤ Você voltou? ⏤ ela pronunciou, quase inaudível.

Ele assentiu com a cabeça, fazendo-a sorrir.

⏤ E você cortou o cabelo. E… usando calças! Está ainda mais bela desde que…

Kentin não pode terminar a frase, porquanto que Barbara aplicara-lhe um soco no braço. Com um “ai” de protesto, ele esfregou o braço dolorido.

⏤ Três anos, Leclercq! ⏤ e em seguida, Barbara o abraçou com uma força exagerada. Todas as pedaladas serviram-lhe para algo, enfim. Lágrimas de alegria molharam a camisa de Kentin. ⏤ Nunca mais, nunca mais eu vou permitir que me deixe sozinha pensando todos os dias que tivesse morrido.

Ela o encarava seriamente. Poderia se arrepender do que faria a seguir, mas talvez não teria a chance novamente. Três anos foram perdidos em puro remorso, e Barbara sufocara muitos sentimentos desde então.

Barbara desvencilhou-se poucos centímetros e ergueu-se na ponta dos pés, puxando Kentin para baixo pela camisa. A última coisa que reparou antes de fechar os olhos foram os dele arregalados em conjunto à pele corada. Então, Barbara beijou-o como sonhara há tanto.

Kentin pareceu suspirar e correspondeu de imediato. Barbara ouviu sua bengala cair no chão, e ela própria teve de sustentá-lo pela cintura para que não despencasse também. Kentin segurou seu rosto com uma gentileza e voracidade que pareciam contraditórias. Permaneceram assim por mais algum tempo, até que os corpos de ambos tivessem se cansado do esforço súbito.

Sem desgrudarem suas testas, Barbara sussurrou para ele:

⏤ Fique. Para sempre. S-se desejar, é claro.

Kentin riu em resposta.

⏤ Daqui, só sairei expulso.

Ambos riram. Barbara enxugou as lágrimas e auxiliou Kentin a sentar-se, para enfim passarem a primeira última noite de verão juntos, após tanto tumulto dos dois lados. Tinham muito a contar um ao outro, mas também todo o clichê que a sra. Lucas apreciava: “todo o tempo do mundo”.


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Notas finais do capítulo

Uau, tem alguém vivo por aqui ainda? xD Vamos às referências históricas:

1. Não preciso nem dizer sobre Barb e Ken, não? HAHAHAHAHAH
2. Riquewihr é uma das cidades que fazem parte da Rota dos Vinhos da Alsácia. Apesar de real, não existe linha do trem por lá. Isso foi fictício da minha parte para condizer com a história. Já a estação Gare du Nord existe, inclusive, fun fact: é A estação onde se passa a história "A Invenção de Hugo Cabret" ♡
3. Existiram, de fato, diversos motins do exército francês em 1917. Muitos soldados foram condenados à execução e uma boa parte desertou.
4. O Barão? Sim, é O Barão Vermelho, apelido de Manfred von Richthofen. A cena da perseguição aérea ocorreu no mesmo dia de seu abate, 21 de abril de 1918.

EDIT: VOCÊS VIRAM ESSE DESENHO MARAVILHOSO? Pois bem. Essa belezinha pegou o segundo lugar no concurso, e de prêmio ganhou um desenho LINDÍSSIMO ♥ Meu obrigada pra Dan Young pelo talento e pelo carinho das adms ♥

Eu acredito que isso seja tudo. Caso algo tenha ficado mal-esclarecido, por favor: me contatem nos comentários. Digam-me suas opiniões, prometo que sou um amor HEHEH se chegou até aqui, já deixo o meu muito obrigada. Até uma próxima o/



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