O Voador escrita por Gabriel Gorski


Capítulo 22
A Arena




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Continuaram andando até alcançarem a vila, onde alguns etros brincavam com seus etys. Um dos garotos estava de pé à beira do telhado, de braços esticados para se equilibrar. Seu etys, um turul grande como um lobo icane, pairava no ar, próximo à ele. Inesperadamente, o garoto saltou de encontro ao animal, que o agarrou com as patas. O garoto então saltou para o chão, rindo. Seus amigos gritavam como crianças comumente fazem. Eram uns cinco, todos etros.

— Queria ser um etro. – Divagou Nthaír consigo mesmo, mas Agnes o ignorou para perguntar.

— Posso ir com vocês?

— Que? – Perguntou Yearnan, absurdamente chocado. – De modo algum.

— Por quê? – Replicou.

— Porque você atrapalharia.

— Por favor, eu faço qualquer coisa! – Insistiu.

Yearnan não perdeu a oportunidade.

— De quem são essas moedas no seu bolso?

— Minhas. – Respondeu, prontamente. Um segundo de silêncio, porém, foi suficiente para que Agnes entendesse o que ele queria. Nthaír observava os etros sem prestar atenção ao que diziam.

— Agnes fica.

Agnes se retorcia por dentro. Queria poder bater nele, mas acabou por concordar com os próprios pensamentos de que mudar de ideia seria a melhor escolha.

— Tá. São suas.

— Não. – Disse Yearnan, corrigindo-a. – São nossas.

Yearnan não queria que Agnes fosse. Dentro de si, ouvia a própria razão repreendendo-o, aconselhando que era melhor que a abandonassem durante a noite. O instinto lhe dizia o contrário. Dando ouvido à razão por tanto tempo pela vida quase lhe rendeu uma morte certa anos antes. Esse foi o principal motivo para mudar de ideia.

Ao olhar para o sorriso de Agnes e vê-la feliz, Yearnan lembrou-se de Miêmia e de sua irmã, Avyin. Eu vou voltar.

O dia já entardecera há muito quando Nthaír tropeçou no escuro que era o quarto de ambos.

— Pra que apagou a vela? – Perguntou Yearnan.

— Ela caiu! – Lièspe gritou um sussurro.

Agnes logo bateu à porta, três e dois toques, como haviam combinado. Ao invés de esperar para que abrissem, ela mesma abriu a porta e adentrou o quarto.

— Porque aqui está tão escuro? – Perguntou.

— Lièspe, tão imprestável quanto um alerião. – Respondeu Yearnan, sentado à beira da cama.

Conforme planejaram durante a tarde, Agnes os visitaria durante a noite, apenas depois que estivesse certa de que seu pai e seu irmão já dormiam. Eles pegariam uma das carroças do pai para se esgueirarem pela noite até a Prisão e Go’ov. Os três aproveitaram o resto da tarde para tirar um cochilo. Seria de grande ajuda, já que passariam mais uma noite viajando.

— E os cavalos? – Perguntou Nthaír, acomodando-se no chão, onde já estava.

— Meu pai enviou o meu irmão hoje mais cedo, antes do eda se pôr, à fortaleza de Miltal. Só temos um cavalo.

— Sem problemas. – Yearnan se pôs de pé e pegou o livro e a bolsa com o pergaminho que Ecco deixou para trás antes de desaparecer, três noites antes. – Já podemos ir.

— Certo. – Concordaram.

Agnes abriu a porta devagar e permitiu que os dois saíssem. Nthaír acendeu a lamparina que tinha em outra que estava sobre uma mesa no corredor. Os três desceram as escadas e saíram da estalagem. La fora, o frio sobrevinha, devagar.

— Odeio frio. – Disse Yearnan.

— Frio é bom. – Disse Agnes. – Principalmente quando se está quentinho.

— Ué.

Contornaram a estalagem para encontrarem um cavalo bem descansado no estábulo. O cavalariço dormia no meio do caminho com a boca aberta, babando. Agnes foi escolhida para ir até lá, porque o cavalo já a conhecia. Enquanto ela cumpria a própria função, Nthaír e Yearnan levaram uma carroça vazia de quatro rodas para a rua. Seu estilo era diferente e incomum. Provavelmente do Novo Mundo.

Logo Agnes apareceu, trazendo o cavalo pelas rédeas.

— Pegaram comida?

— Achei que você fosse pegar. – Yearnan arrazoou.

— Eu faço tudo? – Rebateu.

— Eu pego. – Nthaír ponderou, evitando uma discussão frívola. Foi até a dispensa da estalagem e encheu uma pequena cesta com tudo que julgou necessário.

— Pronto. – Disse ao retornar.

Yearnan se acomodou do lado de dentro da carroça, enrolado numa coberta que pegara no quarto. Agnes e Nthaír sentaram-se no banco da frente após prender a carroça ao arreio. Agnes fez estalar as rédeas e o cavalo logo trotava, a caminho do sul, para procurarem por Ecco.

Ah, Ecco, pensou Lièspe, onde você se enfiou?

* * *

O palácio real era surpreendentemente excêntrico. Não havendo muralhas, largas estradas determinavam os limites do castelo, feito de granito negro, refletindo a luz do eda em tons roxos e azuis escuros. A quantidade de canos, engrenagens, barras de ferro e tantas outras engenharias visíveis a olho nu era espetacular, saindo e entrando em janelas, atravessando interiores e contornando os tijolos. Seis altas torres hexagonais, dispostas aleatoriamente dentro de uma colossal área circular, faziam os papéis de pilares fundamentais da estrutura, construída durante o grande império vecadiano para ser a habitação de finghars por éons. Em cada uma das seis pontas de cada torre, gárgulas de pedra negra se erguiam como furiosos monstros. Estavam tão altas que Ecco mal conseguia vê-las. O castelo, como um todo, era tão incomensurável e tão extraordinariamente anômalo que Ochantgar se assemelhava a um mísero filhote de dragão, atrofiado, incapaz de crescer.

Plantas cresciam ao redor, nas grades das praças onde homens vendiam armas, armaduras e indumentárias; nas colunas em ruínas que já não sustentavam mais nada; nas paredes do castelo até os andares mais altos; entre ruelas, becos e avenidas ao redor da Turquesa de Mrasth, como era conhecido o castelo. Árvores de diferentes cores se espalhavam pela paisagem, cobrindo as pedras do chão de folhas verdes e vermelhas, alaranjadas e amarronzadas.

— Como é possível? – Perguntou Ecco, contemplando o vislumbre à frente.

Ochantgar estava pequeno como um adulto somneir. Seu rosto se afinara e alisara, assim como suas orelhas. O cabelo agora tinha tons louros e estava claro que ele se transformara num ersni. Ecco gostava de ver a mutação do corpo dele, o processo de encolher e se agigantar, de se transformar noutras raças.

— Eu vi este castelo sendo construído, a mando de Sasgro I. – Comentou. – Ele queria um castelo tão grande que pudesse ultrapassar em altura as nuvens, mas nunca terminou de construir.

— Que ironia. – Disse Ecco, rindo.

— Por quê?

— Como assim? – Devolveu.

— Ora, ele já é mais alto que as nuvens.

— Verdade? – Ochantgar parecia intrigado. – Como?

— Turale está em meio às nuvens. – Ecco respondeu o óbvio.

— O que é Turale?

Estas foram as palavras essenciais para que Ecco abrisse os olhos.

— Em que ano lhe aprisionaram?

— No décimo segundo milênio, bem no início da guerra.

Eita. O mundo era um palco de guerras há mais de mil anos, mas Ochantgar só conhecia uma: A Guerra de Lastrak, quatro anos de completo terror e abominação sobre a terra.

— Por quanto tempo esteve preso? – Indagou, impressionado.

— Não sei. – Respondeu. – Em que ano estamos?

— Mil duzentos e quarenta e um.

— Então mil duzentos e quarenta e cinco. – Raciocinou. – Eu soube que a guerra durou quatro anos. Tive informantes até alguns meses depois do fim.

— Sim, quatro anos. – Concordou. – Turale é o nome de todos os reinos desde Lastrak até Manaris e além, e de Thorayn à Condaga.

— Já não conheço os reinos. – Replicou, consternado. – Quando os finghars reinavam, do Promontório dos Medallon até Trintastello, tudo era Uzos.

— Achei que fosse Vecádia. – Disse Ecco.

— Este é o nome da língua dos somneir. – Ochantgar explicou, jubilando. – Todos se referem à eterna Uzos!

Alguns mercadores que o ouviram responderam com gritos e risadas.

— Viva o titã! – Debochavam.

— Vão se ferrar! – Ochantgar devolveu.

Ecco tentou manter o assunto.

— Ignore-os e se calam.

— Vamos entrar, temos duas coisas para resolver aqui.

À medida que se aproximavam de uma das entradas, Ecco percebeu que pessoas trabalhavam no exterior do castelo, instalando tubulações e restaurando detalhes mínimos. O portão exterior, alto como Ochantgar, tinha duas colunas esculpidas, uma de cada lado da entrada. No sopé da coluna à direita, um ersni rabiscava pergaminhos e papéis numa velha mesa de madeira e ferro.

— Bem-vindos. – Disse o ersni ao perceber que os dois se aproximavam. – O que buscam?

Ecco olhou para Ochantgar, esperando que falasse algo. Ochantgar fez um sinal com o cotovelo e inclinou a cabeça para indicar que ele deveria falar.

— Queremos ir à arena. – Falou.

— Oh, sim, o anfiteatro. Claro, podem entrar. – Respondeu o ersni, animado. – Se me permitem uma opinião, eu apostaria no novato.

— Qual é o nome dele? – Ochantgar indagou.

— O Desconhecido de Mrasth.


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