O Voador escrita por Gabriel Gorski
Já caminhavam haviam horas em completo silêncio. Ecco foi o primeiro a quebrar o desconforto quando decidiu desenrolar um assunto.
— Vix entrizh drezh. – Disse em seu enferrujadíssimo arcaico. Na língua arcaica, aquele era o modo de se dirigir ao Rei de Todos os Sangues.
— Não sou rei de povo ou sangue algum. – Retrucou. – Chame-me pelo meu nome, mesmo que seja desconfortável.
— Prometeu que me ajudaria em minha missão.
— Sim, eu me recordo.
— Nem mesmo mencionei uma missão. – Disse Ecco.
— Eu sei das coisas. – Respondeu. Uma rajada de vento frio atingiu os dois, partindo logo em seguida, momentânea como um sonho bom. – Mas não sei como sei.
— Diga-me outra coisa que sabes. – Pediu. Outra rajada de vento.
— Sei que estás desmaiado há muito tempo. Por ter perdido muito sangue, tu acabaste desfalecendo.
— Como assim? – Perguntou Ecco, em meio a uma ventania que agora parecia constante. Sentiu que estavam correndo.
— Isto é um sonho. – Replicou Ochantgar. – Eu estou dentro de sua mente.
O céu estrelado pareceu ficar maior, enchendo-se de estrelas. Árvores surgiram e desapareceram como se décadas passassem em segundos diante dos olhos de Ecco. Num piscar de olhos, viu-se nas costas de Ochantgar, grande novamente, caminhando para o leste. Viu no céu baleais e revoadas indo e vindo, cruzando os ares e perfurando nuvens que se assemelhavam a grandes cabeças de lobos e cães. Na terra, cruzaram com centenas de castelos dos mais variados contornos e formatos, tantos que Ecco mal conseguia memorizá-los.
— Há quanto tempo estou dormindo? – Gritou para ser ouvido.
— Há quase dois dias. Você estava cansado, mas logo estaremos em Go’ov e poderás acordar descansado.
— Onde estão Nthaír e Yearnan?
— Não os conheço. – Retrucou.
— Você está na minha mente! – Se enfureceu. – Por que não foi à vila?
— Eu estou aqui para falar com sua mente, não posso invadi-la. – Ochantgar contestou. – Nem mencionaste uma palavra sequer sobre a vila.
— Também não mencionei uma missão, algo que tu já sabias. – o perceber que seria ignorado, Ecco perguntou. – Podemos voltar?
— Não mais. Já consigo ver a capital no mundo real.
Ecco sentia-se furioso e culpado consigo. Saíra no meio da noite para desmascarar um farsante e acabou libertando um ser tão antigo quanto o mundo, sobre o qual não sabia nada. Pior do que isso, era saber que estava em um sonho e que não lembraria de nada ao acordar.
* * *
Longe dali, a uns dois dias de caminhada, Nthaír e Yearnan procuravam um meio de conseguir dinheiro. Agnes, a menina da estalagem, tentara ajudá-los falando com o pai, mas não havia muito serviço para ser feito ali, e o pai dela logo os dispensou, isentando-os das moedas que deveriam pagar diariamente para dormir lá por uma vintena.
O eda estava alto no céu, quando os três saíram de uma taverna, sem sucesso.
— Ainda falta o lado de lá. – Disse Agnes.
— Uma pena que você tem um irmão pra te ajudar na estalagem. – Disse Yearnan.
— Ele nem mesmo gosta de trabalhar. – Reclamou Agnes.
— O que tem do outro lado? – Perguntou Nthaír.
— Os campos. – Respondeu. – Tenho certeza que vão conseguir alguma lá. Sempre há o que ser colhido.
Caminharam por poucos minutos e logo chegaram aos campos, vastas plantações de frutas e plantas. Celeiros e depósitos estavam dispostos no decorrer de muitas direções. Entre as árvores e safras prontas para serem colhidas, pessoas trabalhavam, carregando cestas que eram enchidas gradativamente. Ao longe, um castelo de tamanho mediado se assentava sobre uma colina.
— Qual senhor é o dono desta terra? – Perguntou Yearnan a um homem magrelo e alto, de feições simples e simpatia estampada.
— Senhor Miltal, a quem tenho a honra de servir. – Ele respondeu.
— É que procuramos trabalho. – Disse Nthaír se aproximando.
— Ora, para isso não precisam falar com o Senhor Miltal. – Disse o homem. – Vão até o celeiro e peçam um saco ou uma cesta. Os dois irmãos vão ajudar vocês.
— Agradecemos. – E saíram em direção ao depósito.
O celeiro era muito maior de perto, construído com madeira polida. Dentro, feno e lã ocupavam a maior parte do espaço. Lá dentro, dois irmãos conversavam enquanto tosquiavam as ovelhas e carneiros. Nthaír tomou a palavra.
— Onde podemos pegar sacos?
— Ali. – Apontou um deles.
Pegaram três grandes sacos numa pilha cheia deles e voltaram ao campo. Escolheram um bom lugar e começaram a colher cimélias, uma frutinha deliciosa, comercializada no mundo inteiro.
— Essa aqui está muito boa. – Disse Yearnan ao morder uma.
— Não é pra comer, idiota. – Disse Agnes. – Nos darão mais moedas se tivermos sacos mais cheios.
— É só uma. – Replicou.
Logo terminaram de encher os sacões e levaram de volta ao celeiro. Camponeses entravam e saíam para entregar os frutos pelos quais eram responsáveis. Os dois homens que antes tosavam as ovelhas agora supervisionavam os sacos, dando moedas a cada um. Uma fila tomava forma e eles logo chegariam aos dois.
— Quanto será que vamos receber?
— Umas cinco moedas, eu acho. – Disse Agnes, que então empurrou Yearnan. – Vai, é sua vez.
— Onde está o que as três crianças colheram? – Perguntou um dos dois.
Os sacos foram exibidos, abertos e examinados. O segundo irmão os carregou e despejou as frutas em uma das carroças ao fundo.
— Colheram bem. – Disse o primeiro, enfiando a mão num grande pote e retirando um punhado de moedas e as distribuiu entre os três, uma a uma. As que sobraram ele devolveu ao pote. – Dez moedas para cada um. Podem pegar uma cimélia, se quiserem. Estão dispensados.
— Podemos voltar amanhã? – Perguntou Nthaír enquanto Yearnan e Agnes enfiavam algumas cimélias nos bolsos.
— Não vejo problema. – Respondeu o segundo. – Elas crescem todo dia.
Saíram dali eufóricos, rindo e planejando o que fazer com as moedas.
— Se Ecco estivesse aqui, teríamos quarenta moedas. – Falou Yearnan. – Daria pra comprar as passagens de volta pra Ilha.
— Meu dinheiro não é de vocês. – Contestou Agnes, enfiando as moedas no bolso do vestido que usava.
— Onde será que Ecco está? – Perguntou Nthaír.
— Vocês vão atrás dele? – Perguntou Agnes.
— Vamos para a Prisão de Ochantgar. – Disse Yearnan.
— E se ele não estiver lá? – Agnes indagou.
— Vamos a Go’ov sem ele.
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