O Voador escrita por Gabriel Gorski


Capítulo 1
O Medo de Yearnan




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Chega de histórias! – Gritou Orann, rindo das caras assustadas ao ouvirem-no bater seu copo na mesa de madeira. Logo todos o acompanharam em descontração.

— A noite está só começando! – Comemorou um homem que estava próximo a eles, estendendo seu copo, a cerveja se esparramando sobre a mesa. O seu companheiro imitou o gesto e então ambos deram um gole profundo. Mal limparam suas bocas e barbas com a manga de suas camisas quando ouviram alguém perguntar.

— Quem consegue beber mais? – Era Orann, desafiando os dois forasteiros. O primeiro riu e se levantou, caminhando até os barris empilhados rentes à parede. Abriu a torneira e encheu o copo até o topo, então entornou o conteúdo garganta adentro. Os aplausos foram suficientes para fazê-lo encher outro copo.

— Eu quero saber quem vai pagar por isso. – Intrometeu-se o senhor Barowells, o taverneiro.

O homem e seu amigo arregalaram os olhos. Não tinham dinheiro, pensou Ecco ao ver suas expressões. O homem correu para a saída, mas alguns clientes o seguraram quando Barowells pediu que o impedissem. Caído, ele se debateu até perceber que já estava bêbado demais para lutar.

Os rapazes riram, comentando asneiras entre si. No dia seguinte não recordariam metade do que disseram. Ecco sorria com preocupações. Estava pensando no que faria no dia seguinte enquanto tomava goles de uma cidra terrível. Tinha combinado com Yearnan acerca de passarem perto do rio. O senhor Othens não se importaria se eles pegassem algumas frutas no seu pomar, desde que não fossem vistos. As servas que ele tinha ficavam sempre em alerta aos sábados, desde que Yearnan caiu ao saltar para um galho que não resistiu há umas semanas. A queda foi feia e o senhor Othens logo apareceu em sua porta, esbravejando os mais horríveis xingamentos que Ecco conhecia.

Três semanas já haviam se passado e os dois não conseguiram mais passar despercebidos. Por esse motivo pretendiam ir numa terça-feira. Quem sabe elas não estivessem desavisadas. Não poderiam ser vistos de forma alguma.

— Aposto que não me vence em uma partida de guerra dos reinos! – Garold interrompeu os pensamentos de Ecco. Era magro como um beco estreito de Forgspeek.

— Aqui não! – O senhor Barowells, além de dono da taverna, era pai de Garold. Inteligente e cheio de vida, mas pouco estudado, passava a maior parte dos seus dias atrás de um balcão, servindo a todos que quisessem beber uma boa cerveja com um pedaço de torta ou pão duro com queijo, exceto pelas manhãs, quando os filhos Gadriel e Garold se tornavam encarregados de servir, cozinhar e limpar as mesas e o chão. – Já fiz demais deixando vocês beberem.

— Dê-me mais um naco de pão, ao menos. – Implorou Yearnan. Ecco percebeu que o senhor Barowells haveria de dar um naco a cada um deles e sorriu com a esperteza do amigo.

— Tomem. – Ele puxou um saco cheio de pães de debaixo do balcão e ergueu para Yearnan. – Tenho pães sobrando hoje. Eu jogaria aos cães, mas não vejo por que não dar a vocês. Agora vão procurar os seus lugares de sempre.

Yearnan, Orann e Ecco arregalaram os olhos, felizes e agradecidos. Agora poderiam comer por três dias. Avyin com certeza se alegraria.

Barowells sentia-se contorcendo de dor e piedade ao ver a tamanha euforia de alguns garotos de rua quando viram os pães. Às vezes até sonhava que ajeitaria um cantinho na própria casa no dia seguinte para acolhê-los, mas lembrava-se da sua condição ao acordar, incapaz de ajudar. Então balançava a cabeça como se tentasse esquecer aquela ideia antes de iniciar sua rotina diária de caçar alguns patos para preparar as tortas de pato assado que todos da cidade faziam questão de elogiar. Mas não esquecia.

Ecco encarou o senhor Barowells por meio segundo. Era mera impressão ou ele teria se condoído com a situação deles? Concluiu que estava pensando frivolidades quando voltou seu olhar para a própria roupa, dando tapinhas para derrubar as migalhas. Ao pensar sobre condolências, imaginou-se morando em algum castelo por mais dois anos ou menos, antes de completar dezenove. Fizera dezessete há algumas quinzenas, mas ainda era o menor em tamanho.

Orann, com enormes cabelos loiros – um emaranhado de imundice, na verdade – tinha dezesseis, mas sua barba já buscava aparecer por sobre sua pele, tão suja de ferrugem que se ele pulasse em um rio, continuaria imundo. Era bom para eles, que os ferreiros arranjassem serviços simples e pagassem algumas moedas só porque tinham bom coração. Assim podiam comer quase todo dia. Uma vez Ecco e Orann até conseguiram comprar uma roupa nova pra Avyin, que tinha se cortado numa árvore, fugindo com maçãs na camisa surrada.

 

Avyin e Yearnan já estavam pertos de fazer dezesseis, mas pareciam mais velhos e responsáveis. Com certeza por causa da altura e do olhar, olhos dourados e penetrantes, intensos como uma guerra em ebulição, trazendo o peso de uma vida nas ruas, sempre em alerta, cheios de medo, mas ainda indomáveis. Não havia uma só pessoa que não se remexesse em seu lugar se eles os olhassem demais. Yearnan parecia não compreender a própria capacidade de intimidar alguém ou de se passar por nobre, mas sua irmã sim, e fazia bom uso disso. Por incontáveis vezes, enquanto Avyin distraía qualquer pessoa indesejável, Ecco, Orann e o irmão realizavam furtos com maestria e discrição.

Yearnan tinha cabelos mais escuros nas raízes que nas pontas, mas Avyin tinha o cabelo todo castanho; desgrenhado e de certa forma atraente. Yearnan tinha uma postura invejável, com olhares altivos e sorrisos confiantes. Avyin evitava ser vista em público, sempre sorrateira e silenciosa como um gato perante uma pequena ave, observando a melhor hora de avançar. Ainda assim, eram irmãos bem próximos e aproveitavam bastante a companhia do outro.

Garold, o filho do taverneiro, o único com sobrenome entre eles, era o mais novo, com quinze anos, quase tão alto quanto o pai e o irmão, que tinham dois metros cada um. Um bom companheiro, divertido e fanfarrão, que não sabia matar um iol sequer. O senhor Barowells, seu pai, tinha ainda esperanças de ver o filho aprendendo a preparar sua receita de família da torta de pato selvagem.

Ecco flutuava em ideias inúteis e pequenos risos, como fazia toda vez que bebia, procurando não ultrapassar os próprios limites. Viu o pai de Garold pegar um pano e limpar o balcão com movimentos circulares, e então receber o dinheiro de alguns clientes que já se despediam entre palavras murmuradas e ameaças de desequilíbrio. A taverna estava prestes a fechar, ninguém mais entraria.

— Vamos. Quero dormir. – Disse, apressando os companheiros.

Orann e Yearnan o seguiram, despedindo-se com pedidos de agradecimento. Ao atravessarem a porta de madeira, viram Avyin encostada à parede do outro lado da rua, de pernas e braços cruzados e olhos fechados. Se não a conhecessem, os três provavelmente ameaçariam acordá-la, fingindo esmurrá-la ou ao menos empurrar o seu ombro; riam muito com essas brincadeiras. Mas a conheciam, e sabiam como ela costumava reagir.

Quando seus passos fizeram soar o som de pedrinhas sendo esmagadas abaixo das suas botas velhas, Ecco já encarava Avyin, esperando que abrisse os olhos. E mais uma vez ela não o decepcionou, já diretamente encarando-o, um misto de fúria e impaciência.

— Por que demoraram tanto? – Questionou ao aproximar-se.

— Chegamos, é o que importa. – Os quatro se puseram a andar.

Avyin talvez quisesse fazer mais perguntas, mas Yearnan ergueu um saco de papelão e entregou à irmã.

Curiosa, Avyin não hesitou em abrir o saco. Sorriu, arrancou um pedaço e devolveu ao irmão o pacote, contendo comentários sobre estar morrendo de fome. Saboreou o pequeno naco que comeu e então indagou.

— E cadê o Garold? Achei que ele viria.

Ecco, enquanto caminhava pela margem da rua, lembrou-se de uma noite referente à semana anterior. Naquela vez, Garold disse que os levaria a um lugar que tinha descoberto sozinho ao caminhar pela floresta um dia antes. Avyin provavelmente foi a mais curiosa dos quatro, cobrando a palavra de Garold. Ela o fizera jurar que os levaria lá o mais cedo possível.

— Não deu. – Yearnan respondeu. Era essencial que ele, e não Orann ou Ecco, desse alguma desculpa, pois assim ela não se irritaria. – O senhor Barowells não o deixa sair tão tarde.

Avyin resmungou alguma coisa e levantou pedra e poeira ao chutar o chão.

— Avyin, amanhã vamos falar com ele. – Sugeriu Ecco, tentando encerrar a questão.

— Eu queria saber logo o que ele tem pra mostrar.

— Se quiser, eu posso te mostrar uma coisa interessante.

Todos ergueram os olhos para Ecco.

— O que é? – Avyin.

— Vamos pra floresta ou para os becos? – Interrompeu Yearnan, todos pararam de andar para decidir se teriam que voltar ou se continuariam.

— O Rato foi para os becos hoje, eu o ouvi conversando com alguém. - Orann replicou. – Tanto que demoramos mais só pra não dar de cara com eles.

Eles já tinham decidido aquilo, Ecco recordou. Yearnan costumava se esquecer de algumas coisas quando bebia demais e isso deixava o seu amigo impaciente, como naquele momento.

— É verdade. – Concordou Ecco para fazer Yearnan lembrar. Pela expressão facial dele, não ajudou muito. – E do beco não dá pra ver o que eu vou mostrar pra vocês.

Yearnan mexeu no próprio cabelo após abrir a boca num gesto de recordação, usando os dedos como pente para jogar suas mechas para trás, mesmo que elas simplesmente voltassem à posição de sempre.

Voltaram a caminhar. Ecco reparou em Yearnan. De repente, estava apreensivo e apressou o passo quando seguiram pela direita na praça principal, onde ficava o Forte do Povo, como se tivesse medo de que alguém os visse por ali. Ecco sorriu, mas não fez nada e tanto ele quanto Avyin o acompanharam. Mas Orann ficou por ali.

— Pra que tanta pressa, Yearnan? – Indagou em um claro tom de implicância.

Yearnan se virou e afundou as sobrancelhas em claro nervosismo.

— Anda logo, Orann.

Orann coçou o queixo e girou o pescoço para observar o Forte do Povo por dois ou três segundos antes de sorrir para o amigo.

— Está com medo, Yearnan?

— Claro que não. – Respondeu de imediato.

— Então vamos entrar lá. – Desafiou.

Ecco se divertia com aquela situação quase corriqueira, intrigado com a reação que Yearnan demonstraria dessa vez. Olhou para Avyin, indiferente, antes de repetir as palavras de Orann.

— É, vamos entrar lá. – Instigou.

Yearnan sentiu-se pressionado. Odiava a sensação de acovardar-se e eles sabiam disso. Se estivesse sóbrio, simplesmente os ignoraria como já fazia há alguns dias. Entretanto, no calor do momento, e sob o efeito da bebida, Yearnan se viu tomado por uma forte vontade de provar a Orann que conseguiria entrar no Forte do Povo sem se assustar.

Por cinco vezes seguidas em que tentaram entrar no local, Orann e Ecco o pegaram desprevenido, era o que ele dizia a si mesmo. Yearnan sabia que ninguém morava no forte e que não havia nada de valor guardado dentro de suas muralhas de rochas escuras como a noite, mas ele havia chegado a um impasse que ia muito além de procurar algo de valor ali dentro. Precisava provar, não apenas a Orann, mas a si mesmo que era capaz de invadir um forte sem surtar de pânico. Era vergonhoso ver seus amigos rindo do seu medo aparentemente banal, mas ele não conseguia explicar ou se livrar . Inspirou fundo e soltou o ar antes de responder.

— Vamos embora. – Havia desistido.


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