O Diário da Sereia escrita por Mermaid Queen


Capítulo 2
Paixão de Cristo




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Essa é a história de como eu levei um bolo de dois mil anos. E contando…

Foi tudo culpa de Dagda para falar a verdade, e eu caí naquele papo de troll:

— Vamos passar as férias no Mediterrâneo! Há muitas espécies de algas nessa época do ano, e ouvi falar de uma tal de Circe que conhece as melhores receitas. Temos que experimentar. Acho que ela é uma bruxa ou algo assim.

Eu ainda não tinha aprendido no que dava se meter com bruxas, então achei uma ótima ideia.

— Isso sem contar os peixes da estação fria – ele continuou, mexendo os dedos verdes no ar com desejo. – Serão as melhores férias de todas.

— Que nojo, Dagda – resmunguei. Quando todo mundo vai entender que comer peixe é grotesco?

— Ah, sinto muito. Enfim, podemos ficar em Creta por um tempo se gostarmos de lá.

Dei de ombros. Se o lugar tivesse comida e não me arranjasse problemas, eu estaria lá.

Foi uma péssima ideia.

Circe tentou envenenar a gente, afinal. Jogou uma maldição estúpida em Dagda, falou umas baboseiras sobre pedras e nós tivemos que sair correndo daquela ilha antes de ela se zangar mais ainda. Tudo isso por causa de um exagero ridículo daquela mulher.

Eu só disse que a comida dela era nojenta. Mas ela me serviu peixe! Ela se achava a sabe-tudo, então deveria saber que não se serve peixe a uma sereia.

Aparentemente, ela não sabia. Eu a “ofendi”, se é que a ofensa não partiu dela, então Circe teve uma reação bem infantil de tentar usar os venenos dela, nós fugimos e ela amaldiçoou Dagda.

Achei que não tinha sido nada demais, pra ser sincera. Aquela doida não conseguia nem preparar uma refeição decente, quem dirá lançar um feitiço.

De qualquer forma, deixamos aquela bruxa ridícula para trás e fomos dar um tempo no fundo do mar, para variar. O mediterrâneo ficava mesmo bonito naquela época do ano, e realmente havia várias algas diferentes e coloridas para comer. Muitos peixes também.

Pena que todo mundo gosta de peixe. Principalmente os tubarões.

Não vi o tubarão se aproximando, e também não entendi o que aconteceu. Quando vi a nuvem de sangue e os berros abafados de Dagda, nadei o mais rápido que pude para longe. Normalmente, sempre tento diálogo com tubarões. Mas depois que o sangue foi espirrado, é melhor fugir.

Não me preocupei, porque Dagda sempre reencarna. Só não faz sentido que ele tenha sido atacado. Afinal, quem se parece com um peixe sou eu.

Depois de o monstro branco gigantesco ir embora, saí do meu esconderijo a tempo de ver o corpo destruído de Dagda desaparecer. Mas não era nada daquilo. Ele se transformou em uma…

Pedra?


Maldita seja Circe.

Nadei com aquela pedra na mão até chegar à primeira costa que encontrei. As coisas estavam bem chatas, repletas de tubarão e sem melhor amigo, então achei de bom gosto ir me divertir com os humanos.

Fiz a cauda sumir para parecer humana e tentei roubar as roupas de um bêbado na praia. Foi mais difícil do que eu pensei que seria.

— Sai daqui, Madalena – ele berrou quando agarrei o pano da roupa dele. Cravou as unhas no meu braço. – Maria nojenta!

Cantei algumas notas que o hipnotizaram. Terminei de despi-lo e lavei as roupas no mar antes de colocá-las. Pensando bem, eu deveria tê-lo hipnotizado antes de me aproximar. Não teria sido atacada, pelo menos.

— Você vai ver só quem é nojenta – rosnei quando passei por ele. – Você só não vai ser o jantar porque está fedendo muito.

Ele nem olhou para mim. Rolou pela areia, nu, enquanto entoava uma canção arrastada.

Caminhei, descalça e explodindo de irritação, até chegar ao que parecia ser uma cidade. Era barulhenta e movimentada, cheia de mercadores. Mas meus olhos se fixaram em um único ponto na multidão.

Ele tinha os cabelos aparador e uma barba meio farta, e estava cercado por uma multidão que o vaiava. As pessoas começaram a se dispersar e o deixaram ali, com os belos ombros morenos caídos e o olhar perdido. Ele estava segurando dois peixes frescos. Suspirei. Não dá pra agradar todo mundo.

Andei na direção dele, cruzei os braços e murmurei:

— Eca.

Ele ergueu os olhos escuros para mim.

— Não come peixe?

— De jeito nenhum – respondi com as sobrancelhas erguidas.

— Não sei como sobrevive por aqui, então – ele rebateu. Então balançou a cabeça. – Acabei de fazer um peixe virar dois, tudo isso só para alimentar essas pessoas. E sabe o que elas fizeram? Deram as costas para mim. Disseram que é um truque barato.

Balancei a cabeça.

— Por que não bate nelas com os peixes?

Ele me olhou como se estivesse cansado.

— É preciso ter compaixão.

Abri um sorriso. Palavra engraçada.

— Mas e esse truque dos peixes? – perguntei, tentando puxar conversa. – Você é feiticeiro?

— Não, moça. Sou filho de Deus.

Dei de ombros.

— Não conheço. O que mais você faz?

Ele finalmente sorriu.

— Sei curar doenças e transformo água em vinho.

— Então esse Deus é dos bons! – exclamei, rindo. – Eu só sei fazer umas hipnoses e me meter em confusão. Qual é o seu nome?

— Sou Jesus de Nazaré. E você?

Estendi a mão livre para cumprimentá-lo, e com a outra mão continuei segurando Dagda. Falei o primeiro nome que me veio à cabeça.

— Maria Madalena.

Pelo menos aquele bêbado serviu para alguma coisa. Sempre bom usar nomes locais para não atrair atenção indesejada. Apesar de que a atenção desse Jesus era bem desejada. Mas a cara que ele fez ao ouvir o nome não pareceu nada boa.

— Eu tive uma… conheci uma mulher com esse nome. Que coincidência, não?

Recolhi a mão porque vi que ele não apertaria, de tão desconcertado que ficou. Revirei os olhos.

— Acabamos de nos conhecer e já está falando da ex? – brinquei, tentando descontrair. Vendo que o rosto dele ficou ainda mais vermelho, recuei um pouco. — Acho que vou andar por aí. Vê se não me esquece.

Jesus balançou a cabeça. Parecia querer dizer alguma coisa, mas ficou quieto. Dei de ombros e saí andando.

Comecei a ficar preocupada com Dagda. Ele reencarnava em outros formatos às vezes, mas para reencarnar ele precisava morrer. Como se mata uma pedra? Talvez Jesus pudesse ajudar. Filho de Deus ou não, ele tinha uns dons de feiticeiro. Mas depois.

Agora eu estava com fome.

Pulei um muro baixo e encontrei um belo jardim, que contava com um pomar enorme e uma horta farta, além das plantas decorativas e flores coloridas. Colhi figos, romãs e uvas, e encontrei tâmaras mais à frente.

Conforme apanhava as frutas, não ouvi os passos no gramado. Mas senti a pedra que jogaram na minha cabeça.

Cheia de ódio, virei rapidamente para encarar o agressor. Eram dois, na verdade, com vestes engraçadas. Usavam saia, camisa e uma mini vassoura na cabeça, todas vermelhas. Talvez eles estivessem de vestido. Não dava para saber por causa da armadura prateada e lustrosa.

Mas pude perceber que eles jogariam mais pedras em mim.

— Você está roubando do jardim de Pôncio Pilatos, mulher – um deles gritou.

— Não sei quem é esse Pôncio Escroto – retruquei. – Mas você está na minha frente. Não precisa gritar.

O outro jogou a pedra que tinha na mão e acertou minha testa. Berrei e cambaleei para trás, sentindo o sangue escorrer.

— Você será presa e julgada – o primeiro continuou gritando.

Revirei os olhos. Dois idiotas.

Eu deveria matar os dois, deixar as vassourinhas no jardim de presente para o tal de Pôncio e levá-los para a água, onde seriam meu jantar. Mas era preciso ter compaixão, não era? Foi o que Jesus me falou. Que droga.

Ou então eu poderia matar os dois e chamar Jesus para jantá-los comigo. Não, péssima ideia. Talvez jogar Dagda neles. Péssimo, a pedra era grande demais. Mas e se…

Outra pedrada no ombro interrompeu meus pensamentos. Já chega.

Comecei a entoar uma antiga canção grega e os soldados se puseram a balançar no ritmo. Um deles estava babando. Uma câmera fotográfica cairia bem nesse momento. Vocês, humanos, deveriam ter inventado isso antes.

Terminei de recolher as minhas frutas, ainda cantando porque já tinha levado pedradas o suficiente, e saí correndo dali. Os dois levariam um tempo para acordar e entender o que tinha acontecido.

Voltei para a praia, de onde não deveria ter saído, e por sorte o bêbado não estava mais lá. Eu realmente não estava pronta para mais uma. Fiquei por ali, sentada em uma pedra e com os pés na água, comendo figos. E as tâmaras? Divinas. Esse Pôncio Pilates mandava bem na jardinagem.

De repente, vi uma turma se aproximando. Não de mim, mas da praia. Umas vinte pessoas, pelo menos, e Jesus vinha na frente. Já comecei a ficar atenta.

Ele estava gesticulando bastante, e a multidão parecia bem insatisfeita.

— Não é um truque barato, eu juro! – exclamou Jesus. – Venham, e eu mostrarei.

Até parei de comer. Não sei o que ele ia mostrar, mas eu tinha interesse.

Jesus entrou no mar e começou a andar na direção do horizonte. Não vi nada de mais, a princípio. Só a túnica dele começando a ficar encharcada. Mas a multidão começou a murmurar, assustada, e eu resolvi chegar mais perto.

Só então eu vi que ele estava caminhando sobre a água. Sem pisar na areia. Eu sei fazer isso.

Será que Jesus era uma sereia também? Nossa, ele era tudo de bom.

Pena que a multidão não achou tão legal assim. Começaram a xingá-lo e a jogar coisas nele. Ouvi chamarem-no de “bruxo” e “feiticeiro”. Se as pessoas soubessem o quanto os feiticeiros eram encrenca, não estariam chamando assim aquele cara que tentou dar peixe de graça para elas.

Suspirei. Não sei se foi o cabelo comprido, a barba ou a pele morena que me convenceram a fazer aquilo, mas fui lá defendê-lo. Mas também queria impressioná-lo, então fui andando sobre a água até chegar na multidão. Funcionou.

— Eu nunca vi alguém com esse dom! – exclamou Jesus. – Você também é filha de Deus?

— Pode parar com essa conversa – resmunguei, cruzando os braços. – Não somos irmãos nem aqui, nem na China.

Jesus perguntou o que era China, mas eu não soube responder. Acho que inventei uma palavra nova sem querer.

— De qualquer forma, olha só nós dois andando sobre a água – falei. – Acho que fomos feitos um para o…

Não consegui terminar de falar, porque algo atingiu a minha cabeça. Quando olhei na direção da praia, vi os caras que estavam jogando pedras em mim, mais cedo, no jardim. E estavam jogando mais pedras.

— Ladra! – berravam eles. – Feiticeira!

Ergui um dedo no ar.

— Vou matar os dois – falei para Jesus, em tom de aviso. – Sem essa de compaixão.

— Não – Jesus retrucou. Ele se voltou para os homens na praia. – Já chega! Quantos de nós já não roubamos por fome? Quantos de nós já não tivemos pecados? Aquele que não tem pecados que atire a primeira pedra!

Primeiro, jogaram outra pedra na minha cara. E depois, voltaram a gritar.

— Jesus é ladrão! Jesus é ladrão!

Limpei o sangue do rosto com as costas da mão. O corte cicatrizaria em minutos, mas a dor era de matar.

— Entregue-se, Jesus de Nazaré, para que seja preso e julgado! – gritou o homem das pedras.

— Você não vai, né? – perguntei.

Jesus encolheu os ombros e começou a andar em direção à praia.

— Jesus! – insisti. – Você não é ladrão! Não se entrega! Vai até lá e dá uma surra neles, pelo menos.

— Não, Maria – respondeu ele, calmamente. – Se alguém bater em sua face, ofereça a ele a outra face.

— Já ofereci as duas – respondi, apontando para o meu rosto. – Mas está na hora de eles oferecerem as duas faces para mim.

Jesus virou as costas, o que me deixou bem irritada, e continuou andando para a praia. Quando chegou lá, os homens de saia vermelha o jogaram no chão de joelhos e prenderam suas mãos com grilhões. Levaram-no para longe e a multidão se dispersou.

Fui para a praia bem desanimada. Primeiro, Dagda me abandonou. E agora isso.

Dagda, inclusive, estava começando a me preocupar. A pedra, que era ele, estava ficando cada vez maior. Só percebi quando comecei a ter dificuldade de fechar a mão em volta dela. E eu ainda não havia pensado em como matar uma pedra para fazê-la renascer como troll.

Não tive muito tempo para me preocupar com Dagda, no entanto. Na cidade, as pessoas começaram a formar uma multidão em uma praça. No centro, estavam Jesus, um homem gordo e… o bêbado da praia?

Essa eu precisava ver.

Um dos conhecidos homens de saia, próximo de Jesus, deu um passo à frente e anunciou:

— Pôncio Pilatos convoca o povo!

O povo se aproximou mais, e o homem gordo se empertigou para falar. Finalmente eu estava conhecendo o Pilatos.

— Vocês têm como costume que eu solte um prisioneiro na época da páscoa – disse ele. — Aqui estão Jesus de Nazaré e Barrabás. Barrabás está preso por atentado ao pudor. Foi encontrado nu na praia, e xingava a todos quando foi detido.

Quem mandou Barrabás ser tão esquentadinho?

— E Jesus já é conhecido do povo por suas magias irritantes e truques baratos. Hoje, defendeu uma ladra de fama duvidosa, e se declarou culpado de roubo. Quem vocês querem que eu solte?

O povo gritou, em uníssono: “Barrabás!”

— E Jesus, o que devo fazer com ele?

E o povo entoou: “Que seja crucificado!”

Jesus baixou a cabeça.

Certo, preciso admitir que aquilo doeu. Talvez eu me apaixone um pouquinho rápido demais, e ainda tenha o azar dos meus namorados sempre acabarem mortos. Talvez eu esteja sendo dramática, porque eu sou imortal. Todo mundo que eu conheço acaba morto, menos eu.

Infelizmente, não se mexe no modo como um povo faz justiça. As sereias matam homens só para puni-los por terem nascido. É, e quando estamos com fome também.

Voltei para a praia arrastando os pés. E me vi presa naquele lugar, porque não havia como nadar carregando Dagda (que estava se tornando uma pedra enorme), e sem chance de largá-lo para trás.

Quando anoiteceu, comecei a ouvir os gritos do povo, provavelmente comemorando a crucificação. Resolvi me afastar e andei até uma das extremidades da praia, onde encontrei uma caverna.

Parecia que ninguém ia lá, então deixei a pedra-Dagda na entrada, porque ele estava grande demais. Dormi no mar, como já andava fazendo nos últimos dias.

Acordei com gritos abafados vindos da caverna. Saí da água e me aproximei.

Dagda havia crescido tanto que já tampava toda a entrada. Alguém devia ter se enfiado ali para passar a noite, e agora estava preso lá dentro.

Mover a pedra não era uma opção. Bem, eu não estava exatamente preocupada com a pessoa presa dentro da caverna. Parte de mim até estava torcendo para que fosse Barrabás, para ele ter o que merecia já que Jesus morreu no lugar dele.  Velho folgado.

Mas eu havia acabado de ter uma ideia.

Se eu cantasse na mesma frequência da pedra, talvez ela rachasse e Dagda ressuscitaria como Dagda, e não mais como pedra. E nós empatamos, Circe.

Como se acha a frequência de uma pedra?

Passei a manhã toda cantando, berrando e entoando, e nada. Confesso que estava fora de forma, também. Acho que fazia uns dez anos que eu só cantava na mesma frequência, a frequência dos homens. Muito fácil de encontrar.

A pedra vibrou pela primeira vez por volta do meio dia, quando o sol já queimava minhas costas. Fiquei otimista e continuei cantando, e a pedra vibrou até surgirem rachaduras, que foram aumentando e aumentando.

Quando finalmente a pedra rachou e se partiu ao meio, nem eu mesma aguentava mais minha própria voz. E eu soube que funcionou quando a rocha desapareceu, o que significava que Dagda logo reencarnaria novamente.

Meu alívio se transformou em confusão quando a pedra sumiu e pude ver dentro da caverna, onde Jesus cobria os ouvidos com as mãos e fazia uma careta de dor.

— Jesus? – perguntei, erguendo as sobrancelhas. – Você voltou?

Ele abriu os olhos e tirou as mãos das orelhas. Parecia surpreso.

— A rocha sumiu?

— É complicado – respondi. – Você não morreu?

Ele encolheu os ombros.

— É complicado.

Revirei os olhos.

— Tá, que seja – resmunguei. – Você está a fim de fazer alguma coisa um dia desses? Quer dizer, já que você está vivo e tal. A gente podia comemorar, sei lá.

Jesus sorriu.

— É que eu vou ficar fora por um tempo. Vou embora daqui a pouco, na verdade.

— Entendi – respondi, sem acreditar muito naquela conversinha. – E você vai voltar?

— É claro que eu vou voltar – ele falou, como se fosse óbvio.

— Me avisa, então – disse eu, meio que me despedindo.

Ele concordou com a cabeça, e começou a andar para o outro lado da praia.

Fiquei lá, observando as pegadas dele na areia, até Dagda reaparecer como troll e nós irmos embora.

Não sei para onde ele foi, mas já se passaram dois mil anos, e Jesus não me deu nem sinal de que vai voltar.


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