O Diário da Sereia escrita por Mermaid Queen


Capítulo 1
Deus me livre das Cruzadas


Notas iniciais do capítulo

ela nasceu há dez mil anos atrás



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Esta é uma história sobre uma sereia, que era a melhor amiga de um troll, e devia a uma bruxa, que tinha capangas duendes imbatíveis. E também sobre algum tipo de briga entre religiosos.

Sabe, eu não queria mesmo envenenar aquela garota. Tipo, foi quase um acidente. Faltava bem pouco para ser considerado um acidente. Então pode-se relevar a minha culpa na coisa toda.

Naquela tarde, lembro-me de estar tremendo de frio. Levara duas surras que não serviram nem para me esquentar. E como eu ia saber que aquele velhinho tinha uma mão pesada daquelas? Tudo o que fiz foi ouvir a maldita dica daquele troll, apanhar, voltar para casa e apanhar de novo. E lá estava eu. Aparentemente humana e sendo... arrastada?

Abri os olhos. A pele doía e minha visão estava bloqueada em algumas partes. Provavelmente por causa dos olhos inchados. Ai, pedra. Pedra de novo.

— Por que estão me arrastando? — gritei, passando por cima da terceira pedra. — Ei!

Um homem me arrastava pelas pernas. Outro andava ao meu lado carregando um saco de pele enorme. Mais um andava um pouco à minha frente. Todos estavam de costas para mim, mas, quando falei, viraram para me olhar.

— Ela acordou — comentou o que estava ao meu lado, bem corpulento e ruivo.

— Gênio - comentei. Tentei revirar os olhos e senti uma dor absurda. Contraí o corpo.

O que estava me arrastando parou. Inclinei a cabeça para trás e respirei fundo com certo alívio.

— Moça, não sabemos quem você é. Nem o que você é. Mas vamos matar você antes que você nos mate.

— O quê? - Coloquei-me sentada com um pulo, surpresa. 

Infelizmente, o homem que arrasta mulheres pela floresta também se surpreendeu e deu um chute em meu peito, a fim de me afastar dele. Minha cabeça bateu no chão com força, e a dor irradiou profundamente pelo corpo todo. Meu peito ardeu e fiquei sem ar. 

Ouvi o rapaz ruivo protestar, e o outro também se manifestou contra o homem que chutou, mas todos pareceram distantes. Minha cabeça pendeu para a esquerda e senti um gosto metálico. Mais sangue.

Respirei superficialmente algumas vezes e minha visão se desembaçou lentamente. Ergui o braço e limpei com as costas da mão o fio de sangue que escorria da minha boca.

— Já acabou? — murmurei, vacilante.

O rapaz que antes caminhava à minha frente começou a rir. Era loiro e tinha olhos claros, que destoavam de suas feições rudes.

— Entendi por que você andou apanhando tanto — disse ele. — Não consegue manter a maldita língua dentro da boca.

— Ei, Barba Ruiva — chamei, ignorando o outro homem. — Importa-se de me emprestar um casaco?

Ele pareceu indeciso por alguns segundos tensos para mim. Finalmente, depois de me analisar por um tempo, o loiro se manifestou novamente.

— Dê um casaco a ela. Seus lábios estão azuis.

— Não dê o casaco! - gritou o homem que me arrastara. Era bonito e loiro também, mas tinha uma aparência fria e cicatrizes. — Não vamos ajudá-la. Estão pedindo para serem mortos?

Suspirei.

— Não consigo nem ficar em pé - respondi, a voz ainda fraca e vacilante. — Como você acha que vou matar os três brutamontes?

— Ela tem razão, Edgar — admitiu o outro rapaz loiro, dando de ombros.

Barba Ruiva observava com o casaco estendido para mim. Casaco que tirara do saco de pele que carregava. Peguei-o e sorri. Provavelmente, um dos sorrisos mais feios que ele já recebera, de dentes sujos de sangue e lábios machucados.

O tal Edgar olhou para cima e bufou.

— Vamos armar acampamento aqui — disse ele. — Já está escurecendo e não sei quando vamos encontrar outra clareira próxima de um rio.

Rio?

Não consegui virar a cabeça para ver o rio, e tudo que consegui enxergar foi o céu, parcialmente bloqueado pelas copas densas das árvores.

— Você vai me contar tudo sobre quem e o que é — disse Edgar, apontando ameaçadoramente para mim. Assenti e mantive a boca fechada. Chega de surras por hoje, não?

Fiquei deitada no mesmo lugar enquanto os três armavam o acampamento à minha volta. Meus olhos desincharam e os cortes mais superficiais cicatrizaram. O fato de meu corpo se curar mais rápido provavelmente me proporcionaria mais um soco no nariz e uma joelhada, mas tudo o que eu poderia fazer naquele momento era ficar quieta e esperar que eles não percebessem.

Sentei no chão de terra e folhas e abracei os joelhos. Observei os três homens terminando de armar três tendas, o que me deixava com duas opções. Opção não é a palavra correta porque eu não poderia escolher. Seria mais uma imposição. Ou passaria a noite com um deles, ou do lado de fora congelando. Ambas desagradáveis.

E por que eu estava ali, submetendo-me a essas possíveis situações de espancamento e abuso? 
Infelizmente, aqueles caras eram minha chance de sobreviver. Se eu ficasse na floresta, os duendes iriam me matar ou me levar para que a chefe deles me matasse, o que seria pior ainda. Mas eles não atacariam um acampamento de humanos, então por ora eu estaria segura. A menos que os huma...

— Menina - Edgar falou autoritariamente. —, você vai começar a falar.

Olhei para ele devagar, irritada por ter interrompido minha linha de pensamentos. Abri a boca para respondê-lo grosseiramente, mas fechei-a quando vi o tamanho da espada apontada para minha garganta. Tornei a abrir a boca.

— Por onde eu começo? — perguntei, abrindo um sorriso amarelo.

Ele encostou a ponta da adaga em minha pele. 

— Certo, vamos com calma — falei, querendo enrolar. — Por que eu estou toda machucada, vocês querem saber?

— Por que seus machucados estão sarando tão rápido? — Edgar apertou a espada. Engoli em seco. — O que você é?

Respirei fundo.

— Eu juro que não quero nem vou matar nenhum de vocês — disse eu, quase com voz de choro. Por favor, não enfie a espada em mim. Por favor, não enfie a espada em mim. — Sereia.

Joguei o corpo para trás no momento em que seus olhos se arregalaram e ele começou a descer a lâmina, que teria afundado em minha garganta se eu tivesse me mantido no lugar. Levei uma mão ao pescoço e encontrei um corte superficial, que sujou as pontas dos meus dedos com sangue.

— Eu posso explicar! — gritei, tentando me levantar quando vi que Edgar estava se recuperando da investida contra o nada e logo partiria para cima de mim de novo. — Eu juro que não vou fazer nada para prejudicá-los! Eu preciso de vocês!

Olhei para Barba Ruiva e fiz cara de choro. Torci para que funcionasse. Edgar já estava em pé e andava com a espada empunhada. Andei tropegamente em volta da fogueira, colocando-a entre nós dois.

— Edgar! - Barba Ruiva interviu. Suspirei de alívio. — Acho que devemos ouvi-la.

— Quer ouvi-la cantar também, Eusébio? — sibilou Edgar, rodeando a fogueira. Acompanhei o movimento, não querendo deixá-lo se aproximar. — E você, Melchior? Por que está só olhando? Por que não me ajuda a matá-la antes que ela mate todos nós?

Certo, Eusébio era Barba Ruiva e Melchior era o loiro. Entendi. Agora só precisava convencê-los a me ajudar oferecendo o que todos os homens buscam.

— Se me ajudarem - falei, antes que Melchior e Eusébio mudassem de ideia sobre me escutar. —, prometo a vocês muito dinheiro. Sei onde está e preciso de ajuda para pegá-lo.

— E se estiver mentindo? — indagou Edgar. — Como sei que posso confiar em você?

Respirei fundo para não perder o controle. Que homem irritante. Que vontade de usar o crânio dele como taça e enchê-la com seu sangue.

— Sugiro, cavalheiros, que, em tempos como esses, vocês não confiem em ninguém — falei, piscando com um olho para deixá-lo irritado.

Edgar ainda rodeava a fogueira e eu andava para o outro lado, atenta aos seus movimentos.

— Preciso da ajuda de vocês — supliquei, parando de brincar antes que a resposta definitiva fosse negativa. — Minha vida depende disso!

Edgar apresentou uma expressão de incredulidade, enquanto Eusébio e Melchior assistiam com interesse.

— Você não planejava nos encontrar! — exclamou Edgar, franzindo o cenho. — Nós a encontramos inconsciente e machucada, e Eusébio me convenceu a trazê-la conosco. Você mente, sereia.

Ele dizia sereia como se cuspisse a palavra. Não o culpei. As sereias não são a raça mais boazinha do mundo.

— Por favor — pedi, cansada de andar. Meu corpo todo estava fadigado e cheio de hematomas. — Vou explicar a vocês o contexto de eu me encontrar nessa situação. Só não me machuquem mais.

Admito que a cara de choro não era realmente verdade. Mais algumas horas e estaria forte o suficiente para cantar e matar os três. Mas realmente precisava deles, e fiz a cara de choro para atingir Melchior e Eusébio.

Sentei-me no chão, como se estivesse me dando por vencida. Pareceu funcionar. Edgar parou de andar e se sentou também. E assim fizeram Eusébio e Melchior, todos em volta da fogueira, como se formássemos os quatro pontos cardeais.

— Tive um problema com uma bruxa — comecei. — Agora devo dinheiro a ela, e ela está começando a se irritar com a demora. Então ela manda os duendes dela para cobrar a dívida, e, se eu não tiver o dinheiro, levo uma surra como aviso para a próxima vez. Mas não acho que terei próxima vez. Ela vai me matar quando me encontrar.

— E daí? — disse Edgar, impaciente.

— E aí entra um troll chamado Dagda, que conhece a vila dos humanos melhor que eu e a maioria dos habitantes da floresta.

— Esses humanos... são os muçulmanos? - perguntou Eusébio, ansioso.

Dei de ombros.

— Não sei o que é um muzulmano e acho que não me interessa o que os humanos são. Por que isso importa? Vocês não são daqui?

— Somos europeus, sereia, não percebe? - gritou Edgar.

Olhei para ele com descaso.

— Não sei se isso deveria significar alguma coisa para mim, mas não, não percebo — falei, sem dar muita atenção. — O que fazem aqui, então?

— Estamos lutando uma guerra — explicou-me Melchior. — As Cruzadas. É uma guerra entre cristãos e muçulmanos. São religiões. Você não conhece religiões?
Pensei.

— Conheci alguns celtas, sei do que vocês estão falando. Mas eles não guerreavam entre si. Não entendo.

— O que os celtas têm a ver com isso? — perguntou Eusébio.

— São um povo que veio de lá, das terras de Anatolya — apontei na mesma direção dos supostos muçulmanos. — e então foram para onde vocês chamam de Europa, mas nós dizemos Damnubio. E se misturaram. Por que, agora, estão lutando em uma guerra se suas origens são iguais?

— Uma mente inferior como a sua não seria capaz de compreender a vida humana — desdenhou Edgar. — Somos um povo muito mais desenvolvido. Nós já passamos pela fase de habitar florestas e viver comendo peixes há muito tempo.

Cuspi no chão.

— Comer peixes! — exclamei, indignada. — O dia em que eu me alimentar de um peixe será o dia em que me darei por vencida! E nós somos inferiores, enquanto vocês matam uns aos outros motivados por idiotices!

— Não se envolva em assuntos que não te cabem — retrucou Edgar. — Continue, o que há na vila de muçulmanos?

Engoli em seco e endireitei o corpo, sentindo raiva de Edgar.

— Dagda me contou sobre uma habitação modesta que pertence a um velho. Ele me disse que esse senhor guarda uma quantidade enorme de ouro e que eu poderia usá-lo para pagar a bruxa.

— E qual é o problema? — perguntou Melchior. — Por que precisa de nós?

— Acontece que aquele velho não gostou que eu tentasse roubá-lo e resolveu me bater até eu não conseguir mais distinguir duendes de gnomos. Então ele me jogou para fora e disse algo como "se você voltar, não terá a sorte de sair viva e blábláblá" — resmunguei, imitando a voz do velho. — Então eu voltei para a floresta, os duendes me encontraram e me deram outra surra.

— Por que você não o matou? — perguntou Eusébio, entretido com a história. 

A princípio, não o matei porque não me parecia justo matar um senhor de idade indefeso. Depois, não o matei porque não tinha mais forças.

Dei de ombros e balancei a cabeça negativamente.

— O plano é o seguinte: vocês saqueiam a casa dele e nós dividimos o ouro.

Edgar vai me contrariar, pensei. Se ele me contrariar, eu juro que eu...

— Por que dividiríamos com você? — Edgar questionou.

Cerrei os punhos. Lembrei-me de por que ele não estava morto ainda. Edgar é sua única esperança.

— Porque somente eu sei onde ele mora — repliquei, cruzando os braços e esperando ele se dar por vencido. E quando isso aconteceu, coloquei-me em pé. — Ótimo, o que temos para o jantar?

Eusébio alcançou o saco de pele que carregava e puxou uma bolsa de couro com o que mais tarde eu descobriria ser carne defumada. Nós comemos às voltas da fogueira, e então os três começaram a se recolher para dormir. Acabei indo parar na barraca de Melchior, a pedido dele para Edgar. E não tive outra opção a não ser aceitar.

Adentrei a tenda depois dele. Não era muito espaçosa, mas havia espaço considerável entre o meu corpo e o dele, e isso já foi suficiente para que eu relaxasse. Observei que Melchior dormiria com uma faca sob o amontoado de peles sobre o qual apoiaria a cabeça durante o sono. Fiquei em dúvida se era para mim ou para a floresta.

— Não vai precisar da adaga, Melchior — falei, deitando sobre as peles. — Não vou atacá-lo, e conheço a floresta como conheço a mim mesma. Esta noite você dormirá seguro.

Aquilo pareceu tranquilizá-lo, embora ainda não confiasse totalmente em mim.

— Por que pediu para que Edgar deixasse eu dormir na sua tenda?

Melchior olhou para mim e hesitou. Por fim, suas feições se tranquilizaram.

— Passar uma noite ao lado de Edgar seria o inferno — falou ele com a voz baixa. — Ele a ameaçaria, talvez abusasse de você. E a machucaria se gritasse. E Eusébio e eu não poderíamos fazer nada, porque Edgar é mais forte que nós. Nós precisamos dele.

Pensei sobre o que ele disse e sorri.

— Obrigada por isso, Melchior. Não ia feri-lo antes, e agora irei protegê-lo, como me protegeu. Boa noite.

Melchior olhou para mim com o olhar penetrante. As luzes de uma vela que ele acendera brincavam com suas feições. Melchior estendeu os dedos calejados e pôs fim à chama bruxuleante.

Na escuridão total, ouvindo apenas os sons da floresta, virei-me de lado e dormi.

A claridade machucou meus olhos. Abri-os devagar e olhei em volta, confusa. Aos poucos, lembrei-me da noite anterior. Mas Melchior não estava ali e eu estava sozinha na tenda.

Minha garganta estava seca. 

O rio.

Eu deveria ir ao rio antes de descobrir o que eles estavam pretendendo. Saí da tenda e notei que ainda era alvorecer. Não vi nenhum dos três e suspirei aliviada.

Mesmo não sabendo onde estava o rio, podia senti-lo. É coisa de sereia, sabe? Nosso corpo faz uma brincadeira de quente-frio e acabamos sendo levadas até o corpo d'água qualquer que estamos sentindo. E esse rio em particular não foi difícil. Tinha uma correnteza forte. Uma presença marcante.

Pulei na água e ouvi um grito atrás de mim durante o salto. Pensei em virar-me para olhar, mas fui tomada pela sensação explosiva da água em minha pele. Toda a energia que haviam me tirado estava sendo devolvida. Passei a mão pelas escamas de minha cauda, de meus braços, pescoço e costas. Até as costas das mãos possuíam escamas. Quando tirei a cabeça da água, lembrei-me do grito que naquele momento parecia tão distante.

Encontrei Melchior e Eusébio, ambos me observando com certa distância da margem.

— O que foi? - perguntei. — Qual de vocês gritou?

— Nós nos escondemos nos arbustos quando ouvimos você se aproximar. Não sabíamos o que era — explicou Eusébio. — Quando a vi pular no rio, gritei para avisar sobre a correnteza. Mas você... parece nem senti-la.

Eusébio não entendia e Melchior o acompanhava. A água, naquela velocidade e volume, deveria me arrastar. 

— A correnteza não tem efeito sobre mim se eu não quiser que tenha – contei. — Mas posso pegar carona com ela, se quiser. O que vocês estão fazendo aqui?

— Viemos pegar água – disse Melchior, dando de ombros. – Vamos seguir viagem em breve.

Senti-me animada com a viagem porque só conseguia me imaginar nadando no sangue do velho. E fazendo um banquete com a carne de Edgar. Ao mesmo tempo.

— Ótimo – respondi, saindo da água.

Andei atrás deles até o acampamento. Edgar já desmontara as tendas, jogara água nas cinzas da fogueira e guardara tudo no saco de pele que Eusébio carregava. Quando me viu, estreitou os olhos.

— Não saia da minha vista novamente, sereia.

— Você que não estava aqui vigiando – retruquei.

Com um passo, ele cobriu a distância entre nós e bateu com força em meu ouvido direito. Ouvi Melchior e Eusébio grunhirem segundos antes, mas depois do tapa só havia um zumbido. Tombei no chão com a mão sobre a orelha, fervilhando de dor e ódio.

— Aprenda a ficar calada – sibilou Edgar.

Ele aprenderia a ficar calado quando eu arrancasse a língua de sua boca asquerosa e colocasse merda no lugar.

Baixei a cabeça para não olhá-lo nos olhos. Ele fechou o punho em torno do meu braço e me puxou para cima bruscamente, forçando-me a ficar em pé. O braço ficou vermelho imediatamente.

Recomeçamos a andar pela floresta. Fui dizendo direções e fazendo o grupo andar em círculos, a fim de que se perdessem no caso improvável de conseguirem fugir de mim após o assalto. Eu olhava em volta à procura dos duendes, sabendo que não se aproximariam caso me avistassem.

Eu sabia que não deveria ficar me envolvendo com humanos. Toda vez resultava em problema, e eu quase sempre levava uma surra. Com Geoffrey não fora diferente.

Ele aparecia na floresta para me ver, eu não o matava porque me divertia com ele. Até ele descobrir que eu era uma sereia e que a cabana em que eu morava pertencera a um homem que Dagda devorara por acidente. Não foi um grande trauma para mim quando Geoffrey deixou de aparecer, Dagda e eu superamos o término assustando caçadores de recompensa e assando algas.

E então resolvemos voltar à cabana, só por curiosidade. Dagda achava que havia alguém morando na cabana. Não gostamos muito da ideia porque ela se tornara nossa, e fomos lá conferir e possivelmente comer o Senhor Invasor.

Dagda ficou ofendidíssimo quando chegou lá e descobriu que realmente havia alguém na cabana. Mas a briga se tornou minha quando espiamos e flagramos Geoffrey com uma garota lá dentro.

Fui até a bruxa e comprei veneno. Umedeci toda a palha da cama com ele, onde a garota deitaria as costas nuas, onde o cabelo loiro se espalharia e então seria tarde demais. Dagda aprovou o plano, porém desagradou-o que não pudesse comer ninguém.

A garota morreu, e eu estava lá para assistir. Geoffrey me viu e começou a gritar comigo enquanto se vestia, alegando que ela era uma princesa.

Como aquele idiota conquistara uma princesa?

A casa caiu. Investigadores reais ligaram o veneno à bruxa. Ela se ofereceu para pagar uma indenização em vez de ir para a fogueira, e sabemos como são homens. As moedas de ouro consolaram o rei enlutado.

E foi assim que acabei apanhando dos duendes pela primeira vez. É claro que a bruxa me faria pagar pela indenização. Não era justo. Se eu soubesse que a garota era importante, eu tentaria matar só Geoffrey.

Mas sem problemas quanto a isso. O rei o matou por achar que ele usara o veneno. Bem feito para Geoffrey.

— Sereia – alguém chamou atrás de mim. Era Edgar. Revirei os olhos e olhei para trás. – Estou vendo luzes. Estamos nos aproximando?

O tom rude de sempre. Como se estivesse no comando.

— Sim, estamos nos aproximando.

Expliquei o plano. Esperaríamos o anoitecer. Entraríamos no vilarejo como viajantes, e eu, como prisioneira deles. Invadiríamos, eles pela porta da frente, eu pela janela do quarto. Pedi para não matarem o velho, atrairia atenção negativa. Eles cuidavam do homem, eu encontraria o baú no quarto e eles o carregariam.

Eles pareceram gostar do plano. No entanto, Edgar estava com uma expressão que eu conhecia. Ele achava que levaria vantagem. Pretendia me matar e ficar com o dinheiro. Talvez matasse até Melchior e Eusébio.

Torci para que aquelas fossem as intenções dele. Eu estaria lá para ver sua cara quando seu plano fosse todo por água abaixo.0

Anoiteceu rapidamente. Entramos na vila. Edgar me conduzia, empurrando, batendo e xingando. Minhas mãos estavam amarradas às minhas costas. Ninguém parou para olhar.

Os três, por outro lado, olhavam para todos os cantos. Pareciam assustados e fascinados.

— Estão prontos? – perguntei, erguendo a cabeça. As ruas esvaziavam. – Estamos chegando.

Edgar cortou as cordas que atavam meus pulsos.

Chegamos à casa.

Confiando que seguiriam o plano, fui diretamente até a janela e pulei. Ingênua, sem dúvida.

O velho me recebeu com um soco. Voei pelo cômodo e bati na parece no momento em que a porta da frente se escancarou. Vi Edgar e Eusébio, apenas.

O olho atingido não me permitiu enxergar o que acontecia, e balancei a cabeça de um lado para o outro, desnorteada. Perguntei-me por que ele não me matara ainda. E então o olho bom viu Melchior se atracando com o velho. 

Levantei-me com o auxílio da parede e comecei a procurar pelo baú. Desviei do velho e de Melchior, e Eusébio entrou no cômodo. Começou também a procurar. Edgar chegou e se lançou sobre o velho.
Finalmente, Eusébio encontrou o baú. Estava escondido sob montes de palha. A gritaria cessou por um segundo quando o velho notou. Ele lutava bravamente conta aqueles dois homens, mas só porque eu pedira que nenhum dos dois o matasse.

Quando Eusébio arrastou o baú, o velho pulou sobre ele com uma adaga. E então eu intervi.

Comecei a cantar. Todos se viraram para mim imediatamente. O canto doce de uma sereia faz com que qualquer humano a obedeça e a venere.

Ainda cantava quando atravessei a garganta do velho com a espada de Edgar. Ele caiu no chão, sorrindo enquanto se esvaía em sangue.

Apontei para o baú, e Edgar e Melchior o carregaram imediatamente. Era enorme e havia muito dinheiro lá.

Antes de sair da casa, parei para observar aqueles olhares. Olhares parados, distantes, e, apesar de estarem virados para mim, desfocados. Sorrisos enormes. Era uma sensação maravilhosa ser responsável por eles.

Saímos da casa e continuei cantando, pois não queria que se lembrassem de que nós estivéramos ali.
Os aldeões saíram de suas casas em direção ao som, mas mandei que ficassem por lá e obedeceram. Fomos em direção à floresta. Meu canto os hipnotizava e acalentava. Caminhamos em direção ao local do acampamento da noite anterior, mas cantar já me cansava e resolvi seguir por outra rota. Onde encontraria Dagda.

Quando cheguei à cabana, ouvi o troll andando lá dentro e ele me ouviu cantar.

Dagda saiu e não se impressionou com meu olho inchado. Olhou para os homens em volta e para o baú e arregalou os olhos.

— A bruxa já era – comentou, e eu sorri e concordei.

Parei de cantar e puxei uma adaga do cinto de Melchior. Eles saíram do transe e começaram a olhar em volta. Foi quando atacamos.

Dagda empurrou o peito de Edgar com seu punho gigantesco, e ele caiu no chão e bateu a cabeça com estrondo. Ajoelhei sobre o peito dele, ouvindo-o expulsar o ar pelos lábios surpresos. A mão tateava em busca da espada. Pisei nela.

— Sinto muito, homem – cuspi a palavra como Edgar fazia. – Mas a sereia resolveu tomar o controle das coisas.

Ele balbuciou em resposta, grunhindo de dor quando encostei a ponta da faca em sua garganta e pressionei, fazendo escorrer um fio de sangue.

Cortei a garganta de Edgar rapidamente, e ele soltou barulhos rascantes. Dagda avançou e arrancou a cabeça de Edgar do corpo sem dificuldade. Começou a mastigá-la, fazendo careta ao quebrar o crânio dele com seus dentes.

Eusébio e Melchior olhavam apavorados.

— Melchior, eu disse que iria protegê-lo. Eusébio também, porque ambos me protegeram. Agora, peguem a parte de vocês do baú e vão embora.

Eles se entreolharam e então olharam para Dagda. Dagda rosnou, o que transformou a hesitação deles em pressa. Abriram o baú e encheram os bolsos de moedas rapidamente.

Lambi o sangue de Edgar dos meus dedos enquanto os observava partir pela floresta.

Fui com Dagda até a bruxa e a paguei. Depois, escondemos o resto do dinheiro e comemos juntos o corpo de Edgar aos sons da floresta. E não ouvi mais falar de Cruzadas.

os tempos já foram bons para nós, sabe? eu sou aquela com o cabelo bonito e as escamas mais brilhantes.


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Notas finais do capítulo

eh isto valeu



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