A Vida no Mundo da Lua escrita por Hurricane, Breno Velasco


Capítulo 1
A Última Investigação de Jacques Dorian-Pierre


Notas iniciais do capítulo

O conto de abertura dessa "two-shot" é escrito por Tarik Matheus Ananko Ribeiro, autor de "A Canção dos Quatro - O Filho do Inverno", e acompanha a jornada do investigador de origem francesa para evitar a destruição imediata da base lunar em que vive.



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É noite. Mas é sempre noite aqui. As luzes estão acesas. Mas as luzes estão sempre acesas aqui.

Só que nem todos os lugares têm luzes. Este corredor é escuro, e tem reentrâncias o bastante na parede. Nessas reentrâncias ficam os fios que levam energia, os que permitem as comunicações. Em algumas, estão os tubos que te permitem respirar. Se a estação fosse um organismo vivo, eu estaria dentro de suas veias, por onde corre todo o sangue. Porque é isso que é a energia aqui: sangue e força vital.

À minha frente, vejo um fio azul grosso, desprotegido. Se eu o cortasse agora, causaria uma pane catastrófica no setor mais povoado da estação, e quem sabe quantas vidas eu tiraria com isso? Seria um ato terrorista para entrar para a história. Mas, para a sorte das pessoas lá em cima, eu não sou um terrorista. Sou o exato oposto disso, mesmo que não seja tratado como tal.

Escondido nessa reentrância, ouço os passos e as comunicações de meus perseguidores. Homens que querem minha cabeça porque eu investigo assassinatos, porque eu busco ossos e cadáveres de pessoas como eu – simplórios, que não têm o luxo de viver lá em cima, mas são relegados aqui pra baixo.

Infelizes que são obrigados a manutenir o modo de vida de quem não está aqui. Pessoas que têm o rosto sujo de óleo, as mãos calejadas, os corpos cansados e a humanidade retirada.

Bem-vindos a Luna. A Luna de verdade.

Meus perseguidores se foram, mas eu ainda espero aqui. As costas apoiadas no metal estão doendo, e eu com certeza não estou vestido para fazer isso. Meus pés descalços estão frios e doloridos, e para cobrir minha nudez tenho apenas uma velha calça que uso para dormir. É o preço que eu pago, e o preço que estou disposto a pagar.

Foi um garoto de pouco mais do que 16 anos que me avisou dessa vez. Me acordou esbaforido e mal conseguiu dizer “estão vindo”. Nico Ribakov, cuja mãe desapareceu há mais de um ano. Ninguém mais a procuraria.

Saio da reentrância com os ouvidos à postos, mas sei que eles não estão mais aqui. Essa perseguição é cênica. Eles sabem que não vão me pegar, mas precisam tentar para fingir que estão fazendo algo quanto ao problema. Eles não se importam.

Nós não podemos fazer nada. Não podemos agora, e jamais pudemos.

O caminho de volta é silencioso, como geralmente o é. Meus pensamentos vagueiam, começando por Yukari, mas longo indo mais para trás.

Como os vídeos no meu quarto irão contar para qualquer um que os assista, eu sou Jacques Dorian-Pierre, mas todo mundo me chama de Jack por aqui. Os franceses não são comuns nos guetos, por isso as pessoas aqui não têm facilidade com a pronúncia.

Para quem quer entrar na Terra, a estação lunar em que vivemos é uma porta de entrada; para quem quer sair, é uma armadilha. Foi assim que vim parar aqui.

Na Terra, eu era mecânico. Ouvi as promessas de grandes oportunidades, ouvi que Luna poderia ser uma saída, e resolvi tentar. Ao chegar aqui, descobri que pessoas como eu não têm vez. Para sair, você precisava de estudos avançados, de conhecimentos profundos. Eu só sabia consertar algumas coisas. Não era o bastante nem para voltar. Foi assim que eu parei nos guetos – os bairros subterrâneos de trabalhadores desqualificados que mantêm Luna funcionando. Que mantêm seu sangue correndo.

Os primeiros meses foram um inferno, mas tudo mudou com a Yukari. Ela também estava presa aqui, mas tinha uma atitude positiva. À primeira vista, achei que ela era louca. Sua atitude positiva para com esse inferno era irritante. Irritante e contagiosa.

Não demorou para que eu passasse a ver as coisas com mais otimismo também. Pelo menos eu tinha uma habitação aqui, e, afinal, as rações sempre vieram na hora certa. Os trabalhadores eram amigáveis uns com os outros, e estávamos sempre unidos. Apesar de tudo, eu posso dizer que foi nos guetos de Luna que encontrei a felicidade – e em momento algum isso ficara mais claro do que quando nos casamos.

Até que a levaram de mim. Me deixou revoltado que uma pessoa pudesse sumir assim, tão simplesmente. Eu era apenas um mecânico, e admito que não era o homem mais brilhante da estação, mas eles eram impunes. E quando a impunidade é grande, as pessoas se tornam descuidadas. O bastante para deixar um rastro tão claro que mesmo um idiota como eu pôde seguir.

E quem são eles? Todo mundo. Nos registros escondidos no meu quarto, eu tenho provas contra cientistas, engenheiros, homens de negócios... Toda a sorte de pessoas de cima.

Luna era nossa promessa, nossa salvação. Era para ser o grande reduto da humanidade, mas cá estou eu, me esgueirando pelos guetos porque ousei querer saber onde foi parar minha esposa desaparecida.

São coisas assim que me fazem pensar que, talvez, guetos sejam naturais à humanidade. Eles existem neste local de segundas chances porque sempre existirão onde quer que hajam humanos.

Estou tão perdido em meus devaneios que sequer percebo que já cheguei à minha habitação. Por quanto tempo estou parado na porta? Não sei. Digito um código rápido e ela abre.

Encontro alguém sentado numa poltrona ao lado da minha cama. Ele tem a cabeça raspada e uma cicatriz que vai desde a nuca até o peito – passando pelo olho direito cego.

— Encontrei o Nico. Achei que você talvez precisasse de ajuda.

— Você sabia que não. É raro te ver no meu quarto, Heimrich.

— Nós dois sozinhos já somos problema o suficiente. Não gosto de te causar mais ainda.

— É exatamente o que me preocupa. Significa que você tem um problema muito grande para estar aqui.

— Não é um problema meu. É um problema de todo mundo. E sim, é dos grandes. Yukio Kawakari me ligou mais cedo querendo um contato para botar algumas armas para dentro de Luna.

— E você não aceitou, claro.

— Você sabe muito bem que não. E ele devia saber disso. O problema é que ele queria alguém experiente, e o pagamento seria o bastante pra tirar nós dois daqui.

Eu paro a meio caminho de minha escrivaninha, encarando o rosto de Heimrich.

— O que esse desgraçado quer colocar aqui dentro? Bombas nucleares?

— Eu não tenho nem ideia, mas sei que é perigoso. Jack, eu preciso da sua ajuda.

— O diabo que precisa. Saia daqui, Heimrich.

— Você não vai ajudar?

— Não, muito pelo contrário. Você não vai ajudar. — O sorriso que eu abro é amarelo e cínico, mas as palavras que digo em seguida são verdadeiras. — Nós dois sozinhos já somos problema o suficiente, e não quero te causar mais. Eu sou o investigador, Heimrich. Você... é qualquer um. Aproveite isso.

Ele não discute. Apenas acena com a cabeça e sai da minha habitação. Eu fecho a porta e me deito, sem precisar esperar muito pelo sono.

No dia seguinte, pego uma roupa que chame atenção. Me visto principalmente com couro preto, escolho uma calça com muitos bolsos. Em uma das botas, escondo uma faca; tem outra embainhada no meu ombro. Em coldres escondidos pela jaqueta, escondo duas pistolas. Armas de fogo comuns, mas de calibre potente, que eu tirei do próprio Yukio. Para completar, coloca uma touca preta. A mesma que eu usava quando encontrei o cadáver de Yukari. É um código. As pessoas sabem que eu estou trabalhando.

Por via das dúvidas, pego também as duas carteiras de cigarro. Uma delas está pela metade. Na minha opinião, desperdiçar oxigênio na Lua é estupidez, mas é uma estupidez muito cara. Eu as consegui em uma operação de contrabando que estraguei, e o fato de tê-las me faz um dos homens mais influentes de Luna.

Mas nem uma carteira de cigarros e meia consegue me dar as informações que preciso. Não tem mais ninguém na estação inteira com quem Yukio tenha entrado em contato, seja nos guetos, seja lá em cima. É só no final do quarto dia de investigações que eu finalmente recebo notícias. Matsuhiro Kawakari está numa das naves que entraram na estação.

Não é coincidência. Os irmãos Kawakari estão aprontando juntos.

Encurralá-lo não é difícil. Ele pede uma sala privada em uma boate de cima, esperando que alguma moça sensual o encontre lá e dance em seu colo. Com um cigarro, eu garanto que não vai ser ela que vai aparecer, e que ninguém vai se importar com isso. É um exagero, mas algo me diz que é melhor exagerar dessa vez.

Eu boto a cabeça de Hiro contra a mesa de vidro, enquanto imobilizo seu único braço. Seus olhos puxados saltam quando ele percebe que sou eu, e que é a arma dele em seu queixo.

— Eu achei que tinha dito que ia arrancar seu outro braço se voltasse pra cá, Hiro.

— Não era isso que a Yukari ia querer, Jacques! — Isso foi um erro da parte dele.

Eu bato sua cabeça com força o suficiente para rachar o tampo da mesa. Não se usa o nome da Yukari para escapar de mim.

— E você acha que ela ia querer os irmãos trazendo armas para dentro da estação? Ela era feliz aqui, Hiro!

— Ela também era feliz com a gente!

Ergo sua cabeça mais uma vez, pronto para estraçalhar essa cara maldita na mesa, mas me detenho. Solto-o e sento à sua frente.

— Escuta, eu não quero te matar e nem arrancar seu outro braço. Você deu sorte. Eu só preciso de informações.

— E eu vou ficar feliz em te dar, Jacques.

— De quem são as armas?

— Não sei.

— Quem vai comprar?

— Não tenho ideia. — É aqui que eu começo a me irritar de novo.

— Então o que você tá fazendo aqui?

— Apenas os preparativos. Escuta, o dinheiro é alto e nós não nos importamos com quem está pagando, você sabe disso. Mas se você quer informações, eu posso te dar isso: deck de reparos número 3 em uma semana. Não somos nós que vamos vender as armas, estamos recebendo apenas para promover o encontro. Já recebemos o dinheiro, não faz mais diferença. Mas não vá sozinho.

Em uma semana, estou sozinho no deck de reparos número 3. Ele está isolado, como se um acidente tivesse acontecido, mas eu consigo abrir a porta sem dificuldades. Desde que comecei a trabalhar como investigador, tive acesso a alguns livros que teriam feito toda a diferença na minha vida. Dizem que nunca é tarde, mas, para algumas coisas, é sim. Eu não posso mais usar o que aprendi para sair de Luna, apenas para viver nela. Ou sobreviver.

Esgueiro-me pelas sombras, atento aos arredores. O conselho de Hiro era bom, o lugar está infestado. Movo-me entre pilares e reentrâncias, usando as valas que servem para a exaustão dos motores e a retirada de combustíveis. Encontro um homem de guarda, mas, sem proteções, a lâmina entra com facilidade em seu pescoço.

A arma nas suas mãos é uma coisa tenebrosa de se ver: é como uma pistola, mas maior. O metal é branco e polido, com algumas pequenas luzes que piscam no cano. Significa que é uma arma de alta tecnologia. Grande demais para ser laser, então só pode ser plasma. Suspiro.

Iço-me para fora da vala e para trás de um pilar de sustentação. Os guardas deles não estão fazendo um bom trabalho, já que o segundo também está de costas para mim. Eu o puxo para trás com velocidade, tapando sua boca com a fossa cubital do braço direito. Ele resiste, então eu acerto o joelho nas suas costas. É o suficiente para quebrar seu pescoço.

Olho para a frente e percebo por que eles estavam tão descuidados. Não é algo que se vê todo dia: dois homens estão se encarando e conversando à frente de um caixote aberto. Um deles é pequeno, desinteressante. O outro, todavia, é um caso especial.

Ele é maior, e tem a cabeça raspada. Uma cicatriz nasce em sua nuca e corre até o peito, passando pelo olho esquerdo. Um dos sobreviventes da Saturno-I.

Saturno-I era uma estação prisional brutal. Lá, os guardas raspavam sua cabeça e usavam produtos químicos para que o cabelo jamais crescesse novamente; eles também usavam uma serra para te marcar – a cicatriz no olho direito indicava alta periculosidade, enquanto a do olho esquerdo indicava menor periculosidade. A estação foi destruída após uma rebelião, e deixou órfãs as estações Saturno-II, Saturno-III e Encélado.

O traficante de armas tem um olho que ainda enxerga, o que significa que ele não esteve lá. Está apenas se apropriando da fama.

Preocupante é o caixote aberto: nele, armas parecidas com aquela que o primeiro guarda tinha estão depositadas. Muitas delas são maiores. Posso contar mais de quinze caixotes como aquele.

São armas de plasma de todo tipo: disparo rápido, disparo carregado, disparo concentrado. Armas de plasma que podem derrubar naves com um só tiro, e ignorar os mais avançados escudos que o mercado pode proporcionar. Além disso, explosivos. O brilho e os escudos são preocupantes. Esses desgraçados estão trazendo reatores nucleares em miniatura para cá. E mais plasma. Entre bombas atômicas e bombas de plasma, eles têm o suficiente para destruir a estação e uma boa porção da Lua junto. Talvez ela toda.

Posso contar mais de quinze homens fortemente armados. Eu devia voltar e avisar alguém, mas eu sei o que vai acontecer se eu fizer isso. Um aviso de evacuação vai ser dado, e eles vão acionar os explosivos do mesmo jeito. As pessoas de cima escaparão, mas o povo do gueto – o meu povo – vai ser dizimado.

A única forma de parar isso é parando isso.

Percebo que minhas últimas palavras públicas são as que gravei antes de vir, escondidas junto com os relatos de meus outros casos, no meu quarto. Alguém achou o primeiro cadáver, então é hora de agir.

Saco as duas pistolas e me atiro para a frente, rolando. Levanto e puxo os gatilhos, disparando em alguns guardas que se aproximavam. Pulo para dentro de outra vala, e puxo um desatento que passava por cima de mim. Estão gritando ordens, querem meu sangue.

Sempre querem.

Com as costas contra a parede, os espero. Descarrego minhas pistolas algumas vezes, mas logo não tenho mais balas. Os lasers voam, iluminando o deck.

Agarro a arma de um homem caído e pulo para fora da vala na hora certa para escapar de um explosivo que detonam. Vejo o homem baixinho fugindo pela porta, mas ele não é relevante. É o careca que eu quero. Ele ainda está perto do caixote.

Fecho os olhos, com um plano claro em mente. Corro na direção de um dos guardas, e quebro seu nariz com uma coronhada. Disparo contra outro três, avançando brutalmente até achar outra vala. Me jogo nela, e encontro uma tubulação de manutenção. Elas são usadas para transformar o calor disperso em energia elétrica. Abro a grade com um chute e me arrasto por ela.

As tubulações são interligadas, e uma delas me deixa bem perto do alvo de maior importância. Fazendo o menor barulho possível, eu retiro a grade e me puxo para fora; com um braço, envolvo o pescoço do desgraçado, e o outro eu uso para atirar em um guarda. O corpo voa e atinge com força um painel. Alarmes disparam, as portas se fecham. Boto a arma na cabeça do careca e recuo contra uma parede. À nossa esquerda, está a porta que dá para a Lua.

— Você está cercado, imbecil! — ele diz por trás do meu braço. — Quantos de nós você acha que pode matar?!

— Todos.

— Com uma só arma tirada de um cadáver?

— Isso. E com um só golpe, quer ver? — Ele está descrente, não preciso ver seu rosto para saber. Tem mais de quarenta armas ainda apontadas para mim, mesmo depois de todos que eu matei. — Certo. Sabe aquele painel ali? Ele controla todas as portas desse deck, exceto a porta da Lua. Destruí-lo causou uma pane geral no sistema que nos prendeu aqui. A não ser que alguém de fora abra essas portas, não temos como sair. Pelas minhas previsões, devemos ter uma semana de oxigênio.

— Você não tem uma semana de vida, seu desgraçado!

Sorrio.

— E nem você.

É preciso só um golpe para arrebentar o painel que controla a porta da Lua. Ela abre rápido e, entre nós e o vácuo do espaço, sobra apenas um vidro de emergência que existe apenas para evitar a despressurização total. Não é um vidro reforçado, e não se espera que alguém bata nele. Em todo o tempo de existência de Luna, ninguém bateu.

Até o momento em que eu arrasto o careca comigo na direção do vidro, usando-o de escudo. Ganhamos velocidade e, nos centímetros finais, eu jogo a arma fora e uso as duas mãos para acertá-lo contra o vidro.

Nossos corpos atravessam a barreira, e eu sei que esses são meus últimos pensamentos. Eles passam pela minha mente em uma fração de segundos, enquanto todos no deck de reparo têm seu oxigênio sugado pelo vácuo do espaço.

Na baixa gravidade, nossos corpos não tocarão o chão.


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