Pelo que Chihiro pudera observar de Chiaki, o quarto dela era impressionante, mas não exatamente surpreendente.

Assim como o seu próprio quarto, o dela era lotado de dispositivos tecnológicos. A diferença era que os dela eram inúmeros consoles diferentes de videogames em vários aparelhos de televisão, isso sem contar com os portáteis espalhados e um computador, que ele soubera com uma olhada que era otimizado para rodar todo tipo de jogos. Também havia três pufes espalhados no chão.

No momento em que Chiaki trancou a porta, um dos consoles emitiu um beep. Parecia que ela o tinha deixado baixando um jogo, e aparentemente, o download estava concluído.

—Oh! – Sem a menor cerimônia, ela foi direto para o pufe em frente à TV e começou a jogar.

—... S-Senpai... suas... roupas...

Mas os barulhos do jogo logo abafaram sua voz. Não que o volume estivesse muito alto, mas pelos olhos de Chiaki, estava claro que ela não estava mais prestando atenção.

Encabulado demais para insistir no assunto, Chihiro simplesmente sentou em um dos pufes, sem ter muita ideia do que fazer.

Ele ainda não tinha total certeza do que estava se passando na mente dela. Ela não gritara com ele, não demonstrara qualquer agressividade... mas também não demonstrou mais nada. Ela tinha ciência o suficiente da situação para tirá-lo da frente das meninas se trocando o mais rápido possível... mas não o suficiente para tirá-lo da frente dela. Ele entendia que, se era para tirá-lo dali rápido, não havia tempo para ela se vestir antes de deixar o banheiro... mas isso não explicava como ela podia simplesmente andar pelada pelo dormitório, como se nada estivesse acontecendo.

Será que tinha a ver com o fato de aquele ser o dormitório feminino...? Só havia garotas lá, talvez fosse normal elas andarem nuas pelos corredores...? Mas Chiaki recebera vários olhares estranhos... ainda assim, ninguém realmente fez nada... talvez aquilo fosse incomum, mas não inédito...? Talvez Chiaki em particular tivesse o costume de andar nua pelo dormitório...? Ou talvez fosse inédito, e justamente por isso as pessoas não sabiam como agir...? Chihiro certamente se encaixava nesse último grupo.

E tinha também o agravante de que Chihiro era um garoto. E Chiaki sabia disso. E ainda assim, ela não aparentava ter o menor problema com isso... ou a mente dela simplesmente estava em outro lugar? No banheiro, as meninas entraram antes que ela pudesse dizer qualquer coisa... nos corredores, ela parecia querer chegar logo no quarto, provavelmente para escondê-lo... e no quarto, ela chegara bem a tempo de o jogo terminar o download... e ele já vira como ela esquecia tudo quando estava jogando.

Por isso, ele ainda não fazia ideia do que ela estava pensando, ou do que ela pretendia trazendo-o ali. Ela pretendia lhe dar uma grande bronca ou estava realmente ok em ficar nua na frente dele? Ele não sabia, mas a segunda lhe parecia improvável. E a primeira... era inevitável, ele sabia. Mas ainda assim... ele se sentia mal. Chiaki fora muito gentil e amável com ele.

Tentando não olhar para o corpo nu dela, ele olhou para a tela. O jogo tinha gráficos impressionantes, mas... mais impressionante ainda era a habilidade da jogadora. Ela claramente não era chamada de Super Gamer de Nível Colegial à toa.

—Fujisaki-kun, quer jogar também?

—Huh?! E-Eu?!

Chiaki pausara o jogo, e agora oferecia um controle a ele. -Jogos são sempre mais divertidos no modo multiplayer. Eu acho que você vai gostar.

Ela olhava para ele, sorrindo. Ele, sem jeito, olhava para o lado, corando.

—V-Você... realmente não se importa...?

—É claro que não. É sempre mais divertido jogar com amigos!

—N-Não isso! – O rubor em seu rosto se intensificava, enquanto ele novamente trazia o assunto à tona. –Eu... eu não estava brincando mais cedo... v-você realmente não liga... que um garoto te veja... assim...?

—Ah é! Eu quase esqueci! – Chiaki se levantou de repente, com a lembrança súbita. –Foi por isso que eu te trouxe aqui em primeiro lugar.

... Chihiro abaixou a cabeça, aceitando seu destino. já podia prever o que aconteceria.

Em primeiro lugar, ela iria correndo se vestir. Em segundo lugar, ela iria lhe dar uma grande bronca por ser um pervertido e por se aproveitar dela daquela forma. Dependendo do quão furiosa estivesse, talvez pontuasse isso com um tapa ou coisa pior.

O que aconteceu, no entanto, não foi nada disso. Ela simplesmente pôs a mão no queixo dele e puxou o seu rosto para que pudesse olhá-lo nos olhos.

—Por que você se veste como uma garota?

—...

A pergunta em si não era exatamente inesperada. O que era inesperada era a expressão dela – uma expressão totalmente neutra, que não transmitia qualquer tipo de raiva ou constrangimento. Chihiro não respondeu de imediato; era uma pergunta difícil de ser respondida. Ainda mais quando a pessoa que lhe perguntava não demonstrava sinais de querer se vestir antes de ter uma resposta.

—... é uma longa história. – Ele disse por fim, olhando para o lado, ainda corado... mas agora com um tom de tristeza em seus olhos.

—Temos o dia livre, lembra? – A voz dela era tão calma e serena como sempre. Ela realmente... não parecia estar preocupada consigo mesma. Parecia estar preocupada com ele.

—...

Sem ver muita saída, Chihiro contou tudo a ela.

Sobre seu passado. Sobre sua fragilidade. Sobre como todos ao seu redor viam aquela fragilidade. A cada frase... aquelas lembranças dolorosas vinham. E ele sentia as lágrimas subindo aos seus olhos... mas dava o seu melhor para segurá-las, enquanto prosseguia com a narrativa, que Chiaki ouvia atentamente. Ela também percebera que ele estava quase chorando.

—E é por isso... – Ele concluiu, evitando olhar para ela, ou para qualquer ponto em particular. –Eu sei... que não justifica... eu ter enganado você assim... por isso, eu realmente... peço descul-

Seu pedido de desculpas foi interrompido por um abraço.

Chiaki não aguentava mais. Ela podia sentir o sofrimento pelo qual ele passara através de sua voz. Ela via aqueles olhos molhados, mal contendo as lágrimas. E todo aquele tempo... ele aguentara aquilo sozinho... sem ninguém, nenhum amigo, para apoiá-lo... ela não aguentava vê-lo daquela forma. Ele precisava de um abraço, e foi o que ela fez. Puxou para um abraço apertado, enterrando sua cabeça em seu peito e acariciando seu cabelo e suas costas.

A reação inicial de Chihiro fora, evidentemente, choque. Lá estava Chiaki Nanami, uma veterana que ele conhecera horas atrás, completamente nua enquanto o abraçava. A visão e a sensação dos seios grandes e macios de Chiaki contra seu rosto quase o fizeram desmaiar, com tanto sangue subindo à sua cabeça de uma vez... até que ele sentiu a mão dela no cabelo dele, acariciando-o com calma.

Aquele gesto... foi como se a situação ganhasse um significado totalmente novo. Ainda estava muito envergonhado, mas... carinho na cabeça sempre o fazia relaxar. Era um gesto tão amável, tão... maternal.

—Você pode chorar, Fujisaki-kun. – Ela disse, acariciando suas costas junto com sua cabeça. -Isso não é fraqueza. Não precisa segurar. Chore.

Aquelas palavras... o efeito fora imediato. Seus olhos vazaram completamente, enquanto ele começou a chorar e soluçar no peito dela, abraçando-a. Ela devolveu o abraço, enquanto continuou acariciando-o e tranquilizando-o com sua voz gentil.

Chihiro não soube dizer quando exatamente ele tinha apagado.

Quando ele acordou, a primeira coisa que ele ouviu foram barulhos eletrônicos de algum jogo. Abriu os olhos lentamente... e a primeira coisa que viu foi um par de seios, vistos de baixo.

Isso o acordou o suficiente para ele perceber que estava deitado no colo de Chiaki. Esta, por sua vez, estava sentada na cama, jogando um videogame portátil enquanto ele dormia no seu colo. Levantando-se rapidamente, dessa vez ele atraiu a atenção dela, que imediatamente fechou o portátil, pausando o jogo.

—Como se sente, Fujisaki-kun?

—... Melhor... eu acho... – Ele tentava não olhar diretamente para ela. –E você ainda não se vestiu...

—Você adormeceu no meu colo, eu não queria te acordar. – Ela respondeu, com um sorriso gentil, antes de pôr uma mão no ombro dele. –Está tudo bem, Fujisaki-kun. Eu sei que você não fez por mal.

—... – “E você não vai se vestir?” Ele pensou, durante os segundos de silêncio em que ela ficou apenas ali sorrindo para ele com a mão no seu ombro.

—Quantas pessoas sabem? – Ela quebrou o silêncio, com a mesma naturalidade de quem pergunta sobre o tempo.

—B-Bem... o diretor, imagino... a equipe da escola como um todo deve saber... i-incluindo o responsável pelo dormitório... – Ele tentou enumerar em sua cabeça, lembrando-se da luta que era passar despercebido pelo dormitório masculino até chegar ao seu quarto. –Q-Quanto a estudantes, acho que... você é a primeira...

—Então eu sou a primeira a saber o grande segredo do Fujisaki-kun? – Ela sorriu. –Hehe, estou feliz... não se preocupe, seu segredo está seguro comigo.

Ao ouvir aquilo, Chihiro teve a sensação de que iria chorar de novo, dessa vez de alegria. Aquela garota sabia que ele era um garoto... mesmo ele tendo aquela aparência... e ainda assim o aceitava... e estava disposta a guardar seu segredo... poderia aquela ser sua primeira amiga de verdade...?

—Mas... sabe, Fujisaki-kun? – Dessa vez o sorriso dela tinha dado lugar a uma expressão preocupada. –Eu não acho que isso deveria ser um segredo. Você é uma pessoa maravilhosa, e tenho certeza de que eu não sou a única que acha isso. Você não falou das pessoas amigáveis da sua classe?

—... Mas... – Ele tinha medo. Talvez só fossem amigáveis porque achavam que ele era uma garota...? Como ele ia saber se todos eram como ela...?

—Claro, tudo a seu tempo. Se você não se sente preparado, é melhor se preparar antes. Mas pense bem... eu tenho certeza que muitas pessoas gostariam de você exatamente como você é.

—É fácil dizer... a-além do mais... ninguém vai gostar de saber que eu enganei eles esse tempo todo...

—Se você explicar seus motivos, tenho certeza que eles vão entender. – Ela deu uma apertada amistosa no ombro dele. –Afinal, eu entendi, não é?

—... é...

Chihiro se permitiu um sorriso. Isso fez Chiaki sorrir também... e então um ronco alto saiu da barriga dele, fazendo-o corar.

—Oh! Acho que já está na hora do jantar... – Chiaki olhou na direção do relógio de parede, e quando o achou, levantou de supetão. –Isso não é bom! Só faltam dez minutos até o refeitório fechar!

—HÃ?! – Chihiro levantou-se também, olhando para o relógio. –Meu deus, por quanto tempo eu dormi?!

Ele tentou correr para a saída, mas

—Cuidado! – Chiaki o segurou, bem a tempo.

Fazendo sinal de silêncio, ela sinalizou para ele permanecer lá e se aproximou da porta. –A essa hora, a inspetora do dormitório deve estar pelos corredores. Se ela vir você, ela vai saber que você é um garoto!

—...!!! – Chihiro não havia pensado naquilo. Ele não tinha total certeza se a equipe do dormitório feminino seria informada, mas...

—Fique aqui, eu trago algo pra você. – Dizendo isso, Chiaki abriu a porta e saiu.

—ESPERA – Ele não teve tempo de concluir a frase antes de ela fechar a porta atrás de si, saindo com pressa.

“... Ela AINDA não vestiu uma roupa!”

Chihiro estava em pânico. O refeitório, além de ficar fora dos dormitórios, era unissex. Já era estranho o suficiente uma garota caminhar nua, mesmo no dormitório feminino, mas se ela realmente fosse até lá... ela com certeza teria problemas! Talvez até mesmo ser expulsa!

Talvez ela percebesse isso a tempo... sim, sim. A qualquer momento, ela voltaria correndo para o quarto, onde se vestiria rapidamente e sairia de novo. Sim, é claro! Ela não sairia do dormitório sem roupa alguma!

Decidiu esperar.

Sim, claro. Esperar.

A qualquer momento agora.