Ilounastia-Lapso Mental escrita por Lunéler


Capítulo 2
O dom da mente




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Doto perdeu a dimensão do tempo. Não sabia onde estava, acordou em um lugar muito escuro e desconfortável. Encontrava-se deitado em um terreno rochoso e frio do qual logo se levantou. O pavor e a desorientação uniram-se à surpresa e fizeram-no cambalear impulsivamente para uma direção desconhecida. Após alguns passos, desequilibrou-se e caiu.

Apesar de estar sem a venda nos olhos, não podia enxergar absolutamente nada. Não via um palmo sequer à sua frente; estava muito assustado e respirava fundo. Permaneceu sentado, completamente perdido, tentando compreender o que estava acontecendo. Depois de algum tempo, engatinhou tateando o chão a fim de buscar uma saída, mas parou quando ouviu o barulho de dois passos.

— Quem está aí? - Gritou.

Sua voz ecoou, mas nenhuma resposta surgiu. Ouvia também um gotejar lento e pesado, o que o fez deduzir que estava em uma caverna ou em uma gruta. Sentiu um pequeno incômodo no braço esquerdo, colocou a mão e percebeu que seu membro estava enfaixado, de modo a tapar um ferimento.

Prosseguiu seu caminho e encontrou um objeto de ferro, o qual tateou inteiramente. Tinha formas retorcidas que estruturavam um tipo de maca, com correntes enferrujadas presas a ela. Sem dúvida, era naquilo que estava sendo carregado anteriormente. Bem próximo, encontrou panos umedecidos com sangue e pequenos cordões.

Sentiu medo, encolheu-se no chão e permaneceu ali alguns segundos. Logo depois, ouviu mais passos, mas dessa vez eram rápidos e se aproximavam. Nesse momento, contraiu-se ao máximo e fechou os olhos, até ser apanhado pelas mãos de alguém que o ergueu pela camisa e o transportou no alto, largando-o sobre uma pedra. O pânico retardou sua reação, mas logo se dissipou e fez com que ele começasse um debater histérico e feroz. Foi inútil. Duas mãos seguraram-no de forma a imobilizá-lo.

— Me larguem!!! - Berrou.

— Cale-se!!! - Respondeu-se.

Rapidamente, taparam sua boca, puxando-o para trás, passando os dedos pela nuca e pelo rosto dele. Doto tentou gritar, mas o som foi abafado e ele encheu-se de arrepios nas costas e de lágrimas nos olhos. Forçou ao máximo seus músculos até exauri-los na tentativa de se soltar e, ao perder suas forças, entregou-se. Seguiram-se alguns segundos com sua profunda respiração e outros com silêncio crescente. Ao acalmar-se, ouviu soar uma voz grave:

— Fique calmo. Estamos ajudando.

Doto já não tinha forças para se debater. Aos poucos, as mãos foram afrouxando até largarem seu corpo e desbloquearem sua boca. Quando se viu livre, pensou em reagir, mas hesitou.

— Quem são vocês?! Onde estou? - Perguntou, ainda intrigado e ofegante.

Seguiu-se um longo e frio chiado ordenando silêncio.

— Não fale alto, eles estão aqui! - Sussurrou uma segunda voz. Logo ele notou um leve sopro no ouvido esquerdo e percebeu que se tratava de uma boca quase tocando sua orelha. Com o tom da primeira voz, ouviu, baixo como um cochicho:

— Eles te pegaram! Com sorte conseguimos resgatá-lo. Aquela grade que há pouco tocava... você estava preso a ela quando o encontramos. Teve sorte de não sofrer ferimentos profundos. Já o tratamos, fique tranquilo.

— Beba! - Disse a segunda pessoa, dando-lhe um pote com água.

— Do que estão falando? Quem são vocês? - Questionou Doto, ainda muito assustado.

— Não podemos explicar agora. Estamos em uma caverna, não podemos ser ouvidos, nem encontrados. Coma isto!

Deram-lhe um pedaço de pão. Ele estava confuso e fraco, mas aos poucos foi aceitando que aquilo era real e voltava a si. Sem pensar muito, ele bebeu a água e comeu do pão, aliviando suas necessidades.

— Ainda é noite? - Perguntou Doto.

— Sim, partiremos ao amanhecer - disse o homem à direita.

— Preciso ver luz, está muito escuro aqui dentro.

— Você está certo, estamos cercados de escuridão, mas não podemos levá-lo para luz intensa ainda. Você foi envenenado e está temporariamente cego, seus olhos nada podem ver e estão extremamente sensíveis à luminosidade. Acredito que em mais dois ou três dias você possa enxergar.

— Como assim envenenado? Há quanto tempo estou aqui?

— Chegamos há algum tempo, mas você acaba de acordar de dois dias de sono contínuo.

— O quê? Onde estou? O que está acontecendo?

— Em breve entenderá. Agora durma! Apesar do tempo em que esteve desacordado, não descansou, seu corpo permaneceu contraído durante todo esse período, são os efeitos de algumas drogas que lhe introduziram.

— Antes, alimente-se! - Disse o homem que estava à esquerda, dando-lhe um saco de pães.

Doto estava lento, com baixo raciocínio, sentia dores musculares no corpo todo e exaustão profunda. Em pouco tempo, dormiu.

* * *

Rompendo a calmaria, o sono de Doto foi interrompido novamente. Dessa vez, um grande tumulto acontecia, estava sendo carregado no ombro de alguém que corria muito rápido. O sacolejar refletia pressa e fuga. Ouvia ruídos de pedras e alguns passos que os seguiam. A inércia de seu corpo permitia-lhe desenhar as curvas e elevações da caverna, que passavam tão rapidamente como o vento em fúria.

O caminho pedregoso tomava uma distância sem fim, por uma trilha ou túnel. O outro homem os acompanhava correndo ao lado esquerdo. Sem dúvida, estava junto aos indivíduos com os quais tivera contato há pouco. Seus reflexos permitiam que interpretasse aquele momento; havia mais duas pessoas os perseguindo e elas se aproximavam rapidamente.

Depois de algum tempo de fuga, deu-se o instante em que presa e predador se encontraram. O espaço entre os sons de cada passo reduziu-se ao mínimo e culminou com um assoviar de uma espada em uma bainha, seguido do estalo de um golpe na escuridão. Pelo sibilar da lâmina, Doto concluiu que um dos homens, o que corria ao lado deles, teria ficado para trás e travado combate com os perseguidores. Escutou-se ainda um gemido curto que se propagou pelos estreitos corredores da caverna.

O homem que carregava Doto parecia ser alto e forte, tinha no corpo alguns equipamentos metálicos que balançavam conforme o movimento. Doto não entendia completamente o que ocorria, tinha apenas uma noção incerta dos acontecimentos. Depois de alguns minutos de deslocamento, Insólito foi jogado velozmente ao solo.

— Não se mexa! - Exclamou o homem com seriedade.

Doto pôde sentir o solo pedregoso e recolheu-se, em seguida, em um cantinho entre duas paredes de pedra malformadas. Com medo, abaixou a cabeça e ficou escutando, para buscar uma interpretação ao que ocorria no momento. Passado algum tempo, estrondearam dois intensos sons que insinuavam o choque entre objetos de ferro e depois se ouviu um barulho de pedras em desabamento.

Certamente, alguma briga estava acontecendo, mas foi breve e, em pouco tempo, os dois cavaleiros retornaram para pegá-lo. Apanharam-no e voltaram a correr velozmente, não parariam até que saíssem da caverna e o cenário mudasse. Encontraram, então, um ar mais puro e fresco. Doto ouvia pássaros cantarem.

— Está quase amanhecendo. Ponha isto nos olhos! - Disse o homem, colocando-o de pé e entregando-lhe a mesma venda de pano que utilizara anteriormente.

Doto olhou ligeiramente para o céu e teve seus olhos violentados pela luminosidade; sentiu-os arder. Comprovada sua sensibilidade visual, ele acatou a ordem do desconhecido, protegendo a vista com o pano. Em seguida, um fino cordão de barbante foi amarrado à sua cintura, para que ele pudesse se orientar. E caminharam por um bosque enquanto os primeiros raios de sol surgiam entre as folhagens no alto.

O jovem camponês foi conduzido até uma área cercada de pinheiros e algumas rochas, onde ele e aqueles homens se sentaram. O ambiente parecia seguro e silencioso, tomado de vegetação aberta com ares que lembravam os belos campos de Borvênia. As copas das árvores soavam um distante sacolejar, que se somou à voz ainda um pouco ofegante:

— O tempo é curto, seremos breves. Meu nome é Deplório e a meu lado está Tuí. Somos os Guardiões da Luz, ou somente Guardiões, como queira. Nosso propósito é salvá-lo. Há duas noites que o pegaram, esteve acorrentado e desacordado durante um bom tempo. Após alguns minutos de luta, conseguimos deixá-lo a salvo e, desde então, estamos sendo incessantemente perseguidos.

— Como assim? Quem está nos perseguindo?

— São em número de dois e supomos que sejam do Norte, do norte longínquo de um lugar que você ainda não conhece - respondeu o homem.

— O que querem comigo? - Questionou.

— Você certamente não compreenderá agora, mas farei uma breve explicação. Você possui uma espécie de dom, sua mente progride em uma frequência e profundidade anormais, de modo que sua intuição se torna forte e abstratamente verdadeira. Suas reflexões podem resultar em lógicas impróprias. Você está coberto de efeitos psíquicos. Em outras palavras, você possui uma anomalia mental perigosa.

Doto pouco entendeu, nem mesmo se esforçou para isso. O espanto que sofrera na caverna tornava seu raciocínio disperso e, agora, se dissipava nas primeiras gotas de reação, geradas pelo impacto de acordar machucado em um lugar desconhecido. Começava a criar o princípio da raiva, embora sua personalidade fosse bastante calma e indiferente.

— Não tenho nada a ver com isso! Estão atrás da pessoa errada, não tenho nenhuma anomalia! - Respondeu Doto com rispidez.

— Você ainda não está pronto. Com o passar das noites enxergará seu dom e, pouco a pouco, o aceitará.

— Você é louco?! - Entonou firmemente.

— Não lute contra os fatos.

— Que fatos? Soltem-me daqui, não sei do que estão falando - respondeu, tentando desatar a corda que estava presa à sua cintura.

Doto julgou estar conversando com alguém mentalmente perturbado e, sob o efeito da raiva, levantou-se e caminhou para se afastar, mas sua debilidade visual o fez se desequilibrar e ir ao chão. Quando começou a se erguer novamente, sentiu-se envolvido por dois braços que o suspenderam pela cintura e colocaram-no de pé.

— Você não pode fugir - disse Deplório.

— Cale a boca! - Retrucou.

Doto estava sob pressão, sentia-se ameaçado e reagiu com seu punho, errando um soco que deveria ter atingido o indivíduo a sua frente. Em seguida, foi empurrado violentamente ao solo e ouviu um desembainhar de uma faca. Segundos depois, ele surpreendeu-se com o corpo de Deplório debruçando-se sobre o seu, com uma lâmina gelada encostando seu pescoço.

— Não brinque com isto, garoto! Essa lâmina pode rasgar sua garganta a qualquer momento e eu não terei receio em usá-la. Você não decide mais para onde ir! - Gritou, furioso.

Doto se arrepiou e engoliu a saliva do susto. A situação parecia mais complexa do que o esperado, o homem estava armado e espelhava uma personalidade nervosa. Passaram-se alguns segundos de tensão e medo, em que o camponês podia sentir a respiração acelerada do indivíduo. Mas logo, Deplório pareceu se acalmar, aliviando a expressão hostil ao se pôr de pé. Em seguida, suspendeu Doto pela camisa, colocando-o ao seu lado.

— Não vou matá-lo. Desculpe-me, foi um momento de ira - Deplório guardou a faca.

Doto estava tão assustado que não teve mais coragem de questionar o que acontecia. A forma oculta como as horas vinham passando trouxe de volta o medo. Ele não podia sequer conhecer a aparência de Deplório, podia apenas fazer deduções imprecisas a respeito. Os sons e ruídos, encaixados ao tato, eram seus únicos meios de defesa.

Depois do incidente, o silêncio tomou conta do tempo e eles andaram. O pequeno cordão amarrado à cintura ajudava-o a seguir. Enquanto isso, ele pensava em alguma maneira de fuga e nos momentos imediatamente anteriores à escuridão da caverna. Infelizmente, ele não se lembrava de nada. Suas últimas memórias referiam-se ao ruído apavorante da maca de ferro e ao pesadelo que tivera em sua casa.

Ele estava sujo e com os mesmos trajes que vestia antes de deitar-se na sua cama, noites atrás. Seu braço enfaixado incomodava e suas canelas estavam um pouco doloridas. Em meio a toda confusão, não houve espaço para ater-se a detalhes, mas agora que certa calmaria os cercava, seu olfato acusava um cheiro desagradável de vômito que lhe embrulhava o estômago durante a caminhada.

— De onde vem este cheiro? - Perguntou.

— Suas roupas estão sujas. Você vomitou pelo menos três vezes enquanto desmaiado por causa da ação tóxica de algumas ervas, colocadas em seu corpo antes de o encontrarmos. Ainda não sabemos exatamente que substâncias você consumiu - explicou Deplório.

— Onde estamos? A quanto tempo de Borvênia?

— Muito distante... aproximadamente cinquenta quilômetros. Não pense mais nesse lugar, não é mais seguro para você.

Seguiu-se um silêncio de seriedade. A voz de Deplório espelhava, desde o princípio, uma conduta equilibrada e lógica, mas, por vezes, exaltada. Pela maneira como falava, Doto julgou-o letrado e culto, ao contrário dele, que nem sabia escrever.

Tuí, o outro cavaleiro, mostrou-se extremamente omisso, quase não falava e tinha um tom verbal mais baixo e agudo, o que podia representar um jeito ignorante e superior. Ou talvez fosse de uma personalidade mais retraída e submissa.

— Por que estão atrás de mim? - Interrogou Doto.

— Procure compreender. Aceitar os fatos é escolha sua. Esse poder da mente de que falei é uma característica ímpar. Em linhas gerais, sua capacidade ainda está adormecida, mas em breve vai aflorar. Depois de desenvolvidos, seus pensamentos se tornarão trabalhados e dominantes. É isso que interessa àqueles que nos perseguem, o domínio!

— Domínio? Como assim? Como pretendem tirar isso de mim?

— Isto é bastante complexo. Tudo na natureza possui um espírito que guarda uma luz em seu interior. Essa luz é tão abstrata que se confunde, erroneamente, com alguns sentimentos próprios do ser humano. Creio que uma palavra possa definir melhor tudo isso: energia! Sua parte psicologicamente anormal se trata de uma forma de energia engenhosamente esculpida, capaz de alterar sensivelmente porções de matéria e das forças terrenas.

— Hã? Então é por isso que resolveram me matar? - Questionou com certa ironia.

— Acreditamos que o interesse consta em outra forma de aproveitamento da energia, que não sua expansão provocada pela morte. Supomos que pretendem usá-la como iniciador para causar uma grande destruição. A única maneira de acabarmos com essa perseguição é te ensinando como usar sua luz interna. Poderíamos matá-lo e destruir sua força rapidamente, mas assim entraríamos em um conflito perpétuo com esses cavaleiros e perderíamos nosso objetivo. Por isso, precisamos levá-lo para um lugar seguro.

— O quê? Que conversa sem sentido é essa?

— Em breve você saberá para onde estamos indo. Ainda existem muitas coisas a explicar, as quais pouco a pouco exploraremos.

Doto refletiu sinteticamente: do dia para noite havia sido capturado por cavaleiros do Norte de algum lugar que ele não conhecia. Queriam hipnotizá-lo, aproveitando-se de um dom que nunca soube que tinha. Doparam-no fortemente e, de repente, acordou em uma caverna, fugindo de alguém, acompanhado de duas pessoas que falavam "difícil" e comiam pão endurecido. "Isso é loucura! Eu preciso fugir.", pensou.

O dia transcorreu inteiro em passos, às vezes longos, às vezes curtos e exaustos. Aqueles indivíduos falavam pouco, pareciam ignorar a presença de Doto. Utilizavam um vocabulário de compreensão dificultada e se referiam, frequentemente, a palavras que ele jamais ouvira. Certo instante, eles pararam para comer, momento em que o calor do sol estava intenso. Mais alguns pães foram cedidos ao borveniano. Após a pausa, prosseguiram até o início da noite, quando interromperam o deslocamento e se alojaram em um cercado de troncos derrubados. Acomodaram Doto na grama, em um lugar desconhecido. O cansaço os venceu, a caminhada os esgotou.

Doto, apesar de desgastado, não dormiu. Deixou a voz de Deplório e Tuí cessarem todos os comentários e aguardou o momento certo para fugir. Os sons reduziram-se ao canto de cigarras, momento da atuação. No avançar da madrugada, Doto desamarrou-se da corda guia e levantou-se silenciosamente, andando como um espião durante alguns minutos, mesmo sem saber para que direção ia, pois ainda estava vendado e seus olhos continuavam sensíveis. O plano pareceu funcionar, ele afastou-se cerca de sessenta metros, guiando-se lentamente pelos troncos das árvores.

Ele não fazia ideia de onde estava, mas sentia-se vitorioso por se deslocar sem sinais de perseguição. Após abrir maior distância, acelerou sua fuga, mas parou ao ouvir um alto estalo de galhos à direita. Congelou! Ainda imóvel, escutou um evidente pisar de folhas secas e voltou-se lentamente para trás. Em um ato rápido e repentino, uma mão agarrou-lhe a canela firmemente. Seu coração disparou!


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