Argentum escrita por ColibriMoriarty


Capítulo 3
O Coração




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O vento fazia com que a grama dançasse com seus suspiros enquanto varria a clareira serenamente. As nuvens haviam sorrateiramente escondido o sol, tornando o dia um pouco mais acinzentado. Pequenos pássaros gorjeavam nas árvores que circundavam a área aberta, cantando belíssimas e doces melodias. Um esquilo pulou de um galho para outro, e um rato silvestre correu por entre duas pedras para, logo em seguida, entrar em sua toca. A paz que reinava pela floresta era extasiante, fazendo com que o lobo inspirasse profundamente, sentindo o doce aroma de seu lar aprazivelmente lhe aquecer a alma.

Yosay estava lambendo sua pata ferida, mas logo se cansou daquilo, e ergueu seu focinho para farejar despreocupadamente uma lagarta que paulatinamente subia em uma pedrinha sobre onde se encontrava. Ao seu lado, Alba moveu levemente suas orelhas enquanto tinha um sonho agitado. Já Argentum, ainda amparado pelo ventre pálido e aconchegante da lupina, permanecia adormecido, havendo apenas se virado para o lado, ficando de costas para o macho, para maior conforto.

O lobo perdeu o interesse rapidamente e desviou o olhar para seus acompanhantes. Nesse dado instante, Yosay captou um movimento com sua visão periférica. Institivamente arrepiou seu pelo escuro e arreganhou os dentes enquanto que se levantava e se aprumava em uma pose defensiva, com um rosnado arranhando sua garganta. Ele estreitou seus olhos tentando localizar o que havia lhe chamado a atenção.

Havia algo caminhando por entre as árvores, algo que elevava-se sobre duas pernas.

O lobo checou rapidamente a fêmea e o guardião, que permaneciam adormecidos, abstraídos do possível perigo que espreitava. Cautelosamente, o macho desceu da formação rochosa e se aproximou da criatura bípede, mantendo-se abaixado e escondido pela grama alta. Deixar-se imperceptível provou-se ser uma tarefa árdua visto que mancava devido sua pata. Contudo, o ser, que estava parcialmente escondido por algumas plantas herbáceas, parecia estar tão centrado em se solapar para espiar, que sequer percebeu sua aproximação.

O macho não conseguia sentir o cheiro da criatura, visto que o vento não estava a seu favor, isso o deixava nervoso. Inspirando profundamente, Yosay flexionou suas musculosas pernas traseiras enquanto que calculava a força que teria que empregar.

Então, rápido como um raio, ele saltou sobre o ser e cravou seus afiados caninos no pescoço exposto. A criatura soltou um grito estridente diante do ataque, o que resultou no despertar sobressaltado de Alba e Argentum, não muito longe dali.

Porém, algo parecia errado. Vagamente o macho se lembrou do gosto do sangue dos humanos que havia atacado para defender seus semelhantes. O sabor salgado - já tão conhecido - não se fazia presente de forma alguma, em seu lugar, um azedume horrendo o fazia lembrar de quando era um filhote e tentara comer uma folha. Seu paladar degustava o mais azedo gosto de clorofila.

— Yosay! – O lobo ouviu a voz de Argentum, esta soando alarmada. – O que está fazendo?! – Ele pôde sentir quando o guardião agarrou-o pelo peito e tentou puxá-lo no intuito de soltar sua mandíbula de sua presa. – SolteSolteSOLTE! – O grito fora acompanhado de um forte puxão. O lobo, muito confuso, deixou-se levar pelo outro, abrindo sua boca e sendo afastado. A violência do ato fora tamanha, que Argentum tropeçou quando conseguiu livrar a presa e ambos, ele e Yosay, foram ao chão.

— O que você pensa que estava fazendo?! – Alba disparou, sua expressão de raiva e surpresa se assemelhava muito à de sua progenitora, o que acovardou o macho.

— Vi um movimento na mata, achei que fosse um humano! – Explicou-se, enquanto que se levantava, o rapaz já havia se colocado de pé de um salto e havia ido socorrer sua presa.

— Parem de brigar! – Clamou o guardião, apartando a discussão dos dois lobos na mesma hora. Ele estava debruçado sobre uma forma esverdeada. A princípio, Yosay acreditou ser um arbusto, porém aquilo se moveu, gemendo de dor, e o macho tinha quase certeza que arbustos não costumavam fazer isso. – RespireAcalme-se. – Os dois lupinos trocaram olhares e se aproximaram para ver melhor o que estava acontecendo.

A criatura bípede possuía uma forma humanoide e levemente feminina de aproximadamente uns 150cm, a discrepância de tons da pele do guardião para a dela era surreal. Enquanto que Argentum tinha um tom oliva, o ser ao qual amparava possuía um verde escuro belíssimo. Suas feições lembravam muito a de uma criança humana, porém seus cabelos eram como cipós e trepadeiras entrelaçados, com pequenos galhos brotando de sua testa, parecendo pequeninos chifres marrom-acinzentados. A princípio, parecia usar uma túnica ou vestido apertado feito de folhas e vinhas, todavia, com um olhar mais atento, era perceptível que elas, na realidade, nasciam de sua própria pele assim como se fossem pelos. Encontrava-se descalça, e pequenos ramos floridos se enrolavam ao redor de suas pernas e braços. Enquanto que lutava para respirar, ela abriu os olhos, que eram de um extremo azul petróleo - sem íris ou pupilas - e com pontinhos brilhantes salpicados por eles, tal qual uma pedra da estrela muito bem polida. Lágrimas feitas de seiva bruta escorriam por seu rosto redondo e infantil. Os ferimentos que Yosay havia causado em seu pescoço eram horrendos. As lacerações eram profundas, e seu sangue verde - feito de seiva elaborada - vertia aos borbotões tal qual a um rio esmeralda por seu peito recoberto de folhagens. Apesar da fraqueza que seus ferimentos lhe causava, ela permanecia balbuciando a mesma frase com um dialeto próprio.

— É uma dríade! – Constou o macho, surpreso. – Oh, deuses! O que foi que eu fiz?!

— Alba, o que ela está dizendo? – Questionou Argentum, enquanto que arrancava uma folha de uma planta próxima e tentava usá-la para estancar o sangramento. A loba possuía um talento curioso que mais nenhum outro ser, sendo este um espírito da floresta ou não, possuía. Ela era capaz de compreender o que as árvores diziam apenas ouvindo o farfalhar do vento em suas folhas, apoiando sua testa contra seu tronco, raízes ou galhos, e, também, algo que o rapaz mais admirava nela, era que a fêmea era versada em sua língua.

— Ela está implorando... “Eu não quero morrer. Eu não quero morrer...”. – Respondeu a lupina com a voz afetada.

— Pergunte se ela consegue compreender latim. – Pediu. A loba assentiu e se aproximou da pequena, porém, antes que pudesse fazer o que o espírito havia mandado, a dríade abriu a boca.

— Sim... L-Latim... – Balbuciou com dificuldade.

— Certo, preciso que você se acalme. – Aconselhou. Se estava surpreso pelo fato da dríade saber sua língua materna, ele não demonstrou. A única expressão que mantinha em sua face era de angústia. – Preciso que inale profundamente e exale devagar. – Ela lhe obedeceu. – Qual seu nome, dríade?

— B-Buche...

— O que ela disse?! – Assustou-se Yosay, que se aproximou do trio. – Não se insulte dessa maneira, minha pequena.

— Não, Yosay. – Respondeu-lhe a loba. – Ela disse Buche, B-U-C-H-E. – Soletrou, o macho fez um “ah” ao compreender seu equívoco.

— Buche, sua árvore fica muito longe? – Indagou o guardião, ignorando a conversação do casal. A pequena ergueu sua mão fracamente e apontou.

— N-Noroeste... Faia... – Murmurou, fazendo com que ele assentisse.

Argentum sabia que ela não iria sobreviver aos ferimentos, a dríade já estava parcialmente inconsciente e longe de sua árvore. Ele passou suas mãos por baixo de seu corpo flácido e se levantou com Buche segura em seus braços. Ela era incrivelmente leve, mais do que ele havia esperado.

— O que você vai fazer? – Questionou Alba.

— Precisamos achar a árvore delaParece que é uma faia a noroestePergunte às outras árvores se elas a conhecem. – Comandou. A fêmea rapidamente correu para a árvore mais próxima, cerrou seus olhos e apoiou sua cabeça contra o tronco áspero. Após alguns segundos, que se arrastaram como se fossem horas, a loba se afastou e se voltou para o guardião.

— Eu sei onde fica, sigam-me! – Exclamou, e ela disparou por entre os troncos, sendo logo seguida pelos outros.

A faia de Buche não estava tão longe, apenas uma questão de cem a cento e cinquenta metros, porém o guardião não deixou de estranhar o fato. Dríades normalmente não assumiam a forma física principalmente por serem mais fracas e vulneráveis estando assim, e, caso o fizessem, normalmente permaneciam perto de suas árvores, e não perambulando pela mata a esmo. Isso fez com que ficasse inquieto.

A árvore da pequena era jovem, talvez tivesse menos de quarenta anos, o que explicava o fato de Buche ter uma aparência tão infantil e de ser tão pequena.

Com cuidado, Argentum deitou a dríade sobre as raízes da faia, deixando-a recostada contra o tronco da árvore. Alba e Yosay circulavam ao seu redor, porém afastados, demonstrando nervosismo. O guardião inspirou profundamente tomando coragem e levou a mão até um pedaço de cipó que mantinha amarrado fortemente a seu tornozelo direito. Desfazendo o nó, ele retirou algo pequeno e disforme de lá. Um raio solar atravessou as copas e acertou em cheio o objeto, fazendo com que este brilhasse. A pedra azulada com nuances claras era polida e bem escorregadia, e parecia conter uma pequena chama, que tremeluzia em seu cerne, a qual enviava uma calma aprazível para a alma inquieta do espírito.

Era o Coração.

Ficando de cócoras, o rapaz deixou que a gema caísse em sua palma, cerrou suas mãos e ciciou algo por entre as frestas de seus dedos. Então, segurou-a com seu polegar e indicador, beijou-a e estava prestes a colocá-la sobre os ferimentos de Buche quando Alba esbarrou em si, fazendo com que largasse o Coração sem querer, que caiu por entre as raízes, sobre um montículo de terra. O espírito perdeu o equilíbrio e foi ao chão, caindo de lado.

— O que pensa que está fazendo?! – Disparou a loba com seu pelo eriçado.

— Precisamos usar o Coração! – Respondeu Argentum, colocando-se de pé. – Ou ela irá morrer. – Adicionou, mordaz, fazendo um gesto brusco se referindo à dríade.

— Nem pensar! Apenas Matrem pode usar o poder dos Corações. – Retrucou ela.

— Nós, guardiões, também podemos utilizar seus poderes! – Replicou o rapaz com certa irritação. A fêmea semicerrou seus olhos com desconfiança.

— Mesmo que possamos usar, creio que apenas Matrem consiga controlá-los. Escute a razão, Argentum! – Respondeu ela, o rapaz mordeu o lábio inferior, ponderando suas palavras. Obviamente que ela estava certa, ele havia usado o poder de um Coração certa vez quando era um jovem guardião, e ainda se lembrava muito bem de como fora uma horrenda decisão de vida. Porém, aquilo era diferente. Havia uma vida em apuros agora, não um guardião noviço com uma curiosidade inoportuna e dedos desassossegados.

— Não há tempo para levá-la á Matrem. – Ciciou pesaroso.

— Eu realmente sinto muito. Não foi minha intenção feri-la. – Murmurou Yosay, que estava sentado um pouco afastado deles, com suas orelhas caídas em sinal de tristeza.

— Está tudo bem, meu amigo. Vai dar tudo certo. – Disse Argentum, voltando-se para ele, com um sorriso, porém suas próprias palavras não pareciam verdadeiras a seu ver. – Sei que foi um acidente. Você só queria nos proteger. – Isso era verdade. Ele apanhou o Coração que estava caído ali perto e limpou a sujeira da gema com um sopro.

— Argentum. É contra as regras, Matrem não ficará feliz. – Insistiu Alba. – Ela pode retirar seu título de guardião ou pior... – Sim, Matrem era compreensiva, mas nunca alguém havia cogitado hipoteticamente em fazê-lo, ou sequer quebrado, tais regras. Os guardiões não sabiam quem as havia criado, eram mais velhas do que a própria Matrem, tão antigas quanto a Grande Árvore no coração da floresta.

— Você acha que ela irá me matar? – Questionou o rapaz, visivelmente amedrontado com tal possibilidade, porém a fêmea não lhe respondeu. Buche engasgou ainda na luta por sua vida. O guardião se ajoelhou ao lado dela e repetiu seus gestos, levando a gema aos lábios, beijando-a e observando a chama que queimava em seu cerne. Ele não sabia o que fazer em seguida, o ato final para completar o feitiço parecia uma barreira instransponível. Ele esperou que a loba lhe impedisse, porém ela havia suspirado vencida e se achegado dele, sentando-se ao seu lado em apoio a sua escolha. Decisão horrorosa, julgou, nervoso.

— Então faça. – Encorajou-o, Alba. Não havia mais volta. A chama no cerne do Coração parecia tremeluzir irritada com sua hesitação inconveniente. O olhar de Buche se afixou no seu e ele pode ver a súplica implícita nele, o que lhe deixou ainda pior, fazendo com que cerrasse seus olhos na esperança de esquecê-lo, porém a dor presente nele havia sido marcada a ferro e fogo em suas retinas.

Argentum encostou a pedra contra os ferimentos da dríade em um gesto desesperado.

Então sua mente ficou tão lúcida quanto se um vento forte houvesse sobrado para longe a névoa da insegurança que lhe asfixiava. O rapaz inspirou profundamente, parecia que seus pulmões estavam se inflando com sua tranquilidade gasosa. Conseguia sentir essa calma morna fluir por seu braço, transmitindo pela ponta de seus dedos para o corpo inerte da dríade.

Ele se apercebeu de quando Alba recuou ao seu lado, levemente amedrontada, porém não se afastou muito. O rapaz não compreendeu o motivo, então abriu seus olhos e parecia que estava a observar por uma parede fina de gelo. As cores estavam mais vibrantes, sua visão parecia mais aguçada. Estava até assustado já que as folhas caídas no chão, que sempre viu com tons amarelados quase cinzentos, apresentavam uma cor que nunca havia visto, acometendo-se de que sua pele também não era mais o tom amarelo desbotado e que costumava julgar como sendo feio, mas da mesma cor estranha que aquelas folhas. Ele desviou o olhar para a fêmea, ouvindo uma exasperação escapar dela. A loba parecia brilhar em um tom branco quase que cegante, enquanto que Yosay, atrás de si, continuava normal. Buche soltou um gemido, e o rapaz voltou-se para seu pescoço ferido e constou, orgulhoso, que as lacerações estavam se fechando sem deixar sequer uma cicatriz na pele esverdeada dela.

Foi então que Argentum percebeu que o calor morno havia ficado mais quente, quase como uma brasa liquefeita fluindo por seu braço. Ele soltou um grito de surpresa, porém se engasgou com um líquido espesso e com gosto metálico. Seu pescoço começou a arder, como se garras invisíveis lhe dilacerassem lenta e dolorosamente. Levando a mão livre até a área, sentiu a mesma ficar molhada, a viscosidade fazendo-o ter certeza de que não era suor.

Ele podia ouvir os gritos de Yosay e Alba, chamando seu nome com desespero, porém suas vozes soavam abafadas como se estivessem muito longe e enterradas no chão fértil. Argentum descobriu que não conseguia soltar o Coração, muito menos se afastar. Parecia que seu corpo estava petrificado, eternamente congelado naquela posição e ação, não importasse seus esforços.

Algo trombou contra si, quebrando a conexão. A gema voou de sua mão e ele sentiu o impacto duro do solo contra seu ser.

Então, apanhou-se vendo duas formas peludas de cores opostas flutuando sobre si, porém elas estavam desfocadas. Seu olhar estava, na verdade, direcionado para a cobertura das árvores logo acima e nos feixes de luz que irradiavam de por entre suas folhas. Aos poucos, eles foram se tornando o desenho de um rosto humano e feminino. Com um sorriso doce em sua face benevolente, a mulher parecia querer convencê-lo a fazer alguma coisa. Ele quase retribuiu o sorriso, porém não tinha forças e acreditava que estar se afogando em seu próprio sangue não fosse algo tão bom quando fosse fazê-lo.

Então, como uma benção à sua dor, tudo ficou escuro.


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Notas finais do capítulo

O nome de Buche se pronuncia como "Burra" por ter origem do alemão. Fiquem a vontade para pesquisar seu significado.

No momento em que é descrito que Argentum via as folhas amarelas e depois em uma cor que não conhecia, é a única descrição como foco de visão dele. Argentum é daltônico, ele é cego para a cor vermelha, isso se chama protanopia. A cor misteriosa que ele descobriu é verde. As outras vezes que a cor é descrita, é como visão do narrador.



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