Persephone escrita por Siaht


Capítulo 1
Persephone


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoas maravilhosas!!! ;D
Tudo bem com vocês?
Bom, escrevi essa história para uma pessoa muito especial e espero que ela goste do que irá ler aqui. ♥



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{persephone}

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i know it hurts

it’s hard to breathe sometimes

these nights are long

you’ve lost the will to fight

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{carry you}

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25 de dezembro de 2014

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É uma manhã fria e nevoenta de dezembro. A neve pinta toda a paisagem de branco, mas ainda é possível vislumbrar algum vestígio do tão característico vermelho natalino aqui ou ali. O rapaz caminha desolado pelo pequeno cemitério. Um ponto negro em meio ao branco tão puro e cândido. Cabelos negros, olhos negros, vestes negras. Sirius Black não sabe ao certo o motivo de se deslocar por lápides congeladas na manhã de natal, no entanto, não consegue imaginar nenhum outro lugar onde gostaria de estar.

Deveria estar na casa dos Potter, é verdade, e é provável que Euphemia fique preocupada ao despertar e não encontrar o garoto que acolheu sob seu teto meses atrás. Ainda assim, Sirius não acha que suportaria passar aquele dia com a família do melhor amigo. Não acha que suportaria passar aquele dia com qualquer pessoa.

Sendo assim, segue seu caminho por entre os túmulos, contente por não encontrar uma única alma viva. É cedo demais para que alguém se lembre dos mortos. O garoto, entretanto, não se julga capaz de esquecê-los. De esquecê-lo. Suspira cansado ao chegar ao local que estava procurando. A lápide está coberta pela neve, mas ele sabe que está no lugar certo. Já esteve ali vezes o suficiente para ter decorado o caminho.

Fita o jazido por um minuto inteiro e, então, coloca as mãos nos bolsos da calça jeans, incapaz de pensar no que fazer. Incapaz de pensar no que dizer. O rapaz nunca soube muito bem o que dizer ao irmão em vida e definitivamente não sabe o que dizer a ele em morte. Regulus Black era um bom garoto. Ao menos, era o que todos diziam. Era um bom filho, um bom aluno, alguém que seguia as regras e evitava problemas. Diferente de Sirius de todas as formas possíveis. Mas ainda era seu irmão. Seu irmão caçula. Seu irmãozinho que cometera suicídio aos 15 anos de idade.

Sirius não sabe como lidar com isso. Não sabe o que sentir. No entanto, sabe que deseja estar com Regulus na manhã de natal. Afinal, apesar de todas as brigas e diferenças, eles sempre passaram o natal juntos. Se unir era o único modo de sobreviver ao pesadelo que eram as festividades de fim de ano dos Black e, naqueles poucos dias, os dois garotos podiam esquecer qualquer coisa que os separasse e agir como amigos. Mais do que isso, agir como irmãos.

Esse é o primeiro natal que Sirius passa sem Regulus e, embora tenha os Potter e especialmente James, nunca se sentiu tão solitário e tão desajustado. É como se fosse uma peça de quebra-cabeças que não tem onde se encaixar. É como se estivesse completamente sozinho no mundo. O pensamento é tão deprimente que o garoto acha que está alucinando quando uma melancólica melodia alcança os seus ouvidos. A música é bonita, embora triste e o rapaz se vê obrigado a segui-la como se obrigado a confrontar sua própria insanidade. Não seria uma surpresa acabar louco, afinal sua família é amaldiçoada e todos os Black são um tanto insanos, eventualmente a praga que vêm de seu sangue irá atingi-lo.  Mas, aparentemente, não ainda.

Para a surpresa de Sirius a música não vem de sua cabeça, mas sim de uma moça loira, parada em frente a uma lápide pequena, enquanto toca um violoncelo. A cena parece saída de um filme antigo. Parada em meio a neve, com um cachecol escarlate que a faz se destacar, a garota toca seu instrumento, enquanto o vento balança seus cabelos a fazendo parecer alguma espécie de divindade. Sua música é o único som que corta o silêncio daquela manhã lúgubre.

Sirius fica ali, estático e incapaz de se mover, e simplesmente a observa tocar. Como se nunca houvesse escutado qualquer som em sua vida. Como se nunca houvesse visto algo tão triste e tão belo. Como se contemplasse um milagre. E quando a garota finalmente para é como se a vida também parasse. Como se as portas do mundo inferior tivessem se aberto e Perséfone fosse obrigada a retornar ao reino de morte e desolação de seu marido.

É apenas nesse instante que a moça percebe que é observada e isso a faz saltar assustada. O Black pode imaginar que deve ser apavorante encontrar um homem vestido totalmente de negro, em um cemitério vazio, durante as primeiras horas da manhã. Ele mesmo não está convencido se a garota que vê é de carne e osso ou alguma aparição de outro mundo, afinal ela pare tudo menos mundana. Tudo menos mortal.

— Oh, você me assustou! — a loira exclama, levando uma mão ao peito, no qual o coração salta em desespero.

— Me desculpe, não foi minha intenção. — Sirius se vê obrigado a dizer. — Foi uma bela música. — acrescenta, não aguentando o silêncio.

Mesmo a certa distância consegue ver que a menina – não é mais do que uma adolescente, assim como ele – cora.

— Não esperava que ninguém estivesse aqui nesse horário.

O garoto sorri.

— Bom, eu também não. Você sempre toca para os mortos na manhã de natal? — questiona incapaz de se conter. O que faz a menina rir.

— Não. — ela balança a cabeça. — Só para a minha mãe.

— Oh, sinto muito por sua perda. — são as palavras certas a se dizer, mas Sirius acha estranho dizê-las em voz alta. Será que realmente sente algo pela perda daquela desconhecida? Não sabe ao certo sequer o que sente em relação a perda que ele mesmo sofreu.

— Tudo bem, foi há muito tempo... Mas acho que ela gostaria de me ouvir tocar. Ao menos gostava quando estava viva. Então às vezes venho aqui e toco para ela. Ou talvez toque para mim mesma e finja que ela está escutando. Não sei dizer... — a moça conta, enrubescendo novamente. Nunca disse essas palavras em voz alta. Mas não parece de todo errado dizê-las a um estranho, afinal elas não significarão nada para ele e, portanto, não terão significado algum.

Sirius, entretanto, solta uma meia risada com o comentário.

— Bom, não posso imaginar que o meu irmão fosse gostar de me ouvir tocar. Deus sabe que metade de nossas brigas tiveram alguma relação com a minha “estúpida guitarra barulhenta”, mas talvez eu possa trazê-la da próxima vez. — é melhor do que observar um túmulo em silêncio, o garoto acrescenta mentalmente.

— Sinto muito pelo seu irmão.

O Black dá de ombros.

— Tudo bem, eu acho.   

Depois disso não há muito mais que possa ser dito e os dois acabam se despedindo e seguindo por caminhos opostos, imaginando que dificilmente voltarão a se encontrar. Esse deveria ser apenas um encontro estranho em uma manhã estranha de natal, mas – o que nem Sirius nem a moça sabem – é que, na verdade, é o princípio de uma tradição.

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is anybody out there?

can you lead me to the light?

is anybody out there?

tell me it’ll all be alright

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25 de dezembro de 2015

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Sirius Black já está quase se esquecendo da garota do violoncelo, quando a encontra pela segunda vez. Um ano depois e no mesmo local em que a vira no natal anterior. Dessa vez, ele não se assusta ao ouvir a melodia melancólica, quebrando o silêncio dos mortos que domina todo o cemitério de Godric's Hollow. Então, caminha até ela e se delicia com sua música, aproveitando esse milagre – algo que raramente é concedido a um pecador – por uma segunda vez.

O rapaz gosta da música. Gosta de como ela o faz se sentir. A moça olha para ele e sorri brevemente. Nesse ano usa um cachecol verde e traz os cabelos escondidos por um gorro cinza.

— Olá, estranho.

— Olá, estranha.

— Vejo que não trouxe sua guitarra.

— Não achei que os mortos fossem apreciar meu barulho. Chamam isso de descanso eterno por algum motivo, não é mesmo?

A garota ri e sua risada se assemelha a pequenos sinos natalinos. Soa absurdamente errada e estranhamente certa.

— Se quiséssemos que nossos mortos realmente encontrassem descanso, não construiríamos cemitérios e nãos os visitaríamos o tempo todo. — ela diz e há uma verdade cruel em suas palavras, mesmo que as profira de um modo doce e reflexivo.

De algum modo, Sirius percebe que a moça já pensou bastante sobre esse assunto. O que é mórbido de uma forma bela. Ou talvez, seja belo de uma forma mórbida. Faz diferença?

— Bom, eu ao menos tento incomodar os mortos apenas uma vez ao ano. — o rapaz diz, dando de ombros.

— Muito gentil de sua parte. Receio dizer, no entanto, que os incomodo com certa frequência.

— Não acho que ouvi-la tocar seja um incomodo. Ao menos, não para mim. Mas falo pelos vivos, é verdade.

A loira ri novamente e Sirius acha que poderia passar o dia inteiro, ouvindo aquele som, que em qualquer outro contexto lhe soaria absurdamente irritante.

—  Fico contente por alguma alma que ainda pertence a esse mundo me ouvir tocar. Só para variar. Embora ainda não tenha certeza se você realmente pertence a esse mundo ou é apenas uma assombração com gosto estranho pelo natal.

É a vez do Black gargalhar.

—  Acredite, se eu fosse um fantasma escolheria qualquer outra época do ano para assombrar belas moças que gostam de passar seu tempo em cemitérios. — o rapaz não pretende soltar o elogio, mas ele escapa de seus lábios ainda assim — Não sou do tipo que gosta de Natal. — se obriga a acrescentar.

— Mais um motivo para assustar pessoas nessa data e descontar toda sua frustação nelas — ela brinca, fingindo ignorar o fato de ter sido chamada de “bela” por um quase estranho. Suas bochechas, no entanto, se tornam escarlates, revelando que ouviu muito bem o elogio.

— Eu a estou assustando? — o garoto pergunta debochado, seu melhor sorriso torto se abrindo em seus lábios.

— Nah. — a moça desdenha — Você não é tão assustador quanto pensa que é. — ela diz, enquanto guarda o violoncelo. — Tenho que ir agora, mas foi um prazer te reencontrar, fantasma do natal passado.

Sirius permanece onde está alguns minutos após a partida da violoncelista. A neve molha seus cabelos, o frio o corta como uma navalha, mas o sorriso se mantém fixo em seus lábios, enquanto ele se questiona, não pela primeira vez, se tudo aquilo é real ou apenas um fruto de sua tão fértil imaginação.

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you are not alone

i’ve been here the whole time singing you a song

i will carry you

i will carry you

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 25 de dezembro de 2016

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Não há qualquer espanto quando as notas tristes de uma canção ainda mais triste, conduzem Sirius Black até a violoncelista misteriosa pela terceira vez. Parte dele acha que estava esperando por isso. Como alguma espécie de tradição bizarra de natal que apenas os dois compartilham.

A moça tem os cabelos mais curtos esse ano e veste um sobretudo cor de rosa. Está tão linda quanto ele se lembra. Ou, se possível, ainda mais bela. Ele a assiste tocar, contemplando a cena com uma estranha familiaridade. É como estar de volta a sua casa de infância. Exceto, é claro, pelo fato de a casa de infância do rapaz ser o refúgio de seus piores pesadelos.

— Fiquei imaginando se te veria esse ano. — a voz doce da moça o retira de seus devaneios.

— Olá. — ele diz, caminhando até ela com as mãos nos bolsos do casaco escuro.

— Vejo que ainda está assombrando cemitérios. — ela comenta com um sorriso largo, fazendo o rapaz sorrir.  

— O que mais poderia fazer em uma manhã de natal, não é mesmo? — ele debocha dando de ombros — Vejo que você ainda toca para os mortos.

— Ainda não encontrei plateia melhor. — é a vez da menina dar de ombros. — Os mortos escutam em silêncio e guardam suas opiniões desagradáveis para si mesmos. Acho que gosto disso.

— É, acho que gosto disso também. — Sirius confessa. — Meu irmão já teria me expulsado há muito tempo se pudesse.

De certa forma, é verdade. O Black não imagina que Regulus gostaria de sua companhia. Se não fizera nada para salvá-lo em vida, com que direito o perturbava na morte?

— A minha mãe me mataria, por passar minhas manhãs de natal em um cemitério. — a moça afirma com um sorriso triste.

— E ainda assim aqui estamos. — “mais uma vez”, ele acrescenta mentalmente.

— Talvez seja por isso que as pessoas constroem cemitérios, memoriais, túmulos e todas essas coisas. Não é sobre aqueles que perdemos, é sobre o nosso egoísmo. Nossa incapacidade de desapegar. Nossa necessidade de ter algum contato com os que amamos um dia. No fim, é sobre os que ficam. Sobre os sentimentos dos vivos e não dos mortos.

Novamente ela parece ter refletido bastante sobre suas palavras e Sirius não pode deixar de achar que é absurdamente triste passar o dia de natal conversando sobre a morte, em meio a neve e lápides decadentes, como uma semidesconhecida. Ainda mais triste, contudo, é não pensar em um único outro lugar onde preferiria estar.

— E, mesmo assim, onde mais poderíamos estar, não é mesmo? — o rapaz acaba por verbalizar seus pensamentos. Por que não dizer a verdade para alguém que não o conhece? Por que mentir para uma estranha?

A garota suspira.

— Onde mais poderíamos estar...

Nenhum dos dois diz uma única palavra durante longos minutos, no entanto, o silêncio é estranhamento confortável. Como um abraço de um velho amigo. Sirius é o primeiro a escapar do estupor e decidir que está na hora de partir. Considera, por meio segundo, perguntar o nome da garota, mas naquele momento lhe parece melhor não saber. O mistério torna tudo mais fácil. É mais simples abrir pequenas brechas para alguém que não lhe parece real e, nos últimos anos, têm sido essas pequenas fendas que o impedem de desmoronar completamente. Então, ele simplesmente dá as costas a garota e lhe sussurra um até logo.

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“i know you can’t remember how to shine

your heart’s a bird without the wings to fly”

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25 de dezembro de 2017

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Sirius Black nunca imaginou que poderia apreciar música clássica. Era um filho do Rock 'n' Roll. Um amante das batidas das baterias e dos acordes de guitarra. Um rebelde em todos os sentidos. Ainda assim, se viu explorando um gênero musical completamente novo ao longo daquele ano e buscando o som do violoncelo em particular. Queria encontrar a música que a garota do cemitério tocava todos os anos. Não tanto pela garota, mas pelo irmão. Aquela melodia o faz se sentir próximo a Regulus como nunca antes. E Sirius aprecia isso.

Dessa forma, quando se vê diante a violoncelista aquele ano, algo com que ele já estava contando que aconteceria, não se contém e acaba pedindo:

— Você pode tocar de novo?

A menina parece surpresa e hesita por meio segundo, parecendo considerar o pedido, até que concorda com um aceno de cabeça e volta sua atenção para o instrumento entre suas mãos. O rapaz se aproxima para ouvi-la tocar, sentindo-se envolvido por sua música como um marinheiro é envolvido pelo canto de uma sereia. Permitindo-se sentir toda sua tristeza, toda sua melancolia, toda sua culpa, toda a saudade que sente do irmão.

Sirius não é bom em lidar com seus próprios sentimentos. É do tipo que está sempre tentando escondê-los, sufoca-los, destruí-los. Ainda assim, enquanto aquela melodia o envolve, ele se permite sentir e percebe, pelo rosto da garota, que ela também sente algo. Alguma dor ancestral e que não pode ser traduzida em palavras.

Nessa manhã Sirius chora pela primeira vez em frente a uma pessoa que não seja James e não se importa em fazê-lo porque a garota também chora. É um pranto silencioso, porém cheio de significado. Nenhum dos dois diz uma única palavra, mas não precisam dizer nada. Precisam apenas guardar consigo o segredo um do outro.  

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is anybody out there?

can you take this weight of mine?

is anybody out there?

can you lead me to the light?

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25 de dezembro de 2018

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— Posso te fazer uma pergunta? — a garota questiona no instante em que para de mover o arco entre as cordas do violoncelo. Sequer dirige um olhar para o rapaz que a observa em silêncio. Mas o sentiu chegando. Após cinco anos já conhece o som de seus passos, o cheiro de seu perfume almiscarado e, principalmente, seu olhar sério e intenso queimando sobre sua pele.

 — Pode, é claro. — Sirius diz, se aproximando lentamente. Há mais neve do que o normal aquele ano.

— Você tem um nome? — a moça questiona, enquanto tira uma mecha de cabelo loiro do rosto. Ainda sem o encará-lo.

— Tenho. É claro que tenho. — ele diz com uma risada.

— Eu posso saber qual é? — ela indaga tímida, mas levantando os olhos em direção a ele.

Seus olhos estão inchados, como se houvesse passado a noite chorando, e há olheiras profundas e escuras sob eles.

— Sirius. Sirius Black. — o garoto revela em um sussurro, como se estivesse narrando seu maior segredo àquela desconhecida. De certa forma, está.

— Como a estrela?

O rapaz ri novamente.

— Sim, como a estrela. E você? Tem um nome?

Ele está mais perto dela do que já esteve em todos esses anos. Tão perto que consegue ver as sardas claras em sua bochecha e como os cachos estão emaranhados embaixo do gorro vermelho.

— Marlene. Meu nome é Marlene. Marlene McKinnon.

Marlene. Sirius gosta de como soa.

— É um prazer te conhecer, Marlene. — ele diz, estendendo uma mão. Embora pareça estranho que estejam se apresentando tanto tempo após o primeiro encontro.

— Com apenas cinco anos de atraso. — ela debocha, correspondendo ao aperto de mão.

Os dois riem. E, de um modo inesperado, a garota simplesmente carrega seu violoncelo e se senta em um banco próximo a uma antiga estátua de anjo. Dos bolsos do jeans tira um cigarro – e um isqueiro cor de rosa – e o acende rapidamente. Após a primeira tragada volta a se virar para Sirius.

— Aceita?

O rapaz sorri e caminha até ela, nunca diria não a nicotina gratuita, aceitando um de seus cigarros. Está claro que a moça não tem qualquer vontade de ir embora esse ano. Mais do que isso, parece desejar prolongar a partida tanto quanto possível. Os dois fumam em silêncio por algum tempo, até Marlene resolver romper a calmaria. Ela está quebrando muitas regras esse ano.

— Então, Sirius, por que nunca quis saber meu nome? — pergunta se virando para ele. Não parece ofendida ou irritada, apenas curiosa.

O Black dá de ombros.

— Não queria invadir seu espaço, acho.

É uma mentira. O que ele não queria era ter que confrontar a si mesmo, ter seu espaço invadido, ser Sirius Black. Por apenas alguns minutos, uma vez por ano, ele gostava de não precisar ser ele mesmo, gostava de não estar cercado por pessoas que estavam esperando que desmoronasse, que se preocupavam demais, que conheciam seu passado, os abusos que sofrera, cada evento miserável que o tornara a pessoa que era hoje. Queria ser qualquer outra pessoa. Queria um escape.

— Desculpe se invadi o seu. — Marlene diz muito séria e Sirius percebe que já não se importa. Na verdade, está curioso para saber aonde aquela nova interação irá leva-lo. Nos últimos anos esteve vendo a moça como uma espécie de divindade. Uma figura mística e pouco real. Mas agora, sentado ao seu lado e vendo vestígios do batom vermelho borrando um cigarro barato, ele a percebe, pela primeira vez, como humana. Uma humana tão viva e destruída quando ele.

— Tudo bem, eu acho.

Ela sorri.

— Acha. Você nunca tem certeza, não é mesmo?

— Não, nunca. — admite sorrindo.

— Tudo bem. Também não sou muito boa com certezas. Tenho ascendente em libra, em minha defesa.

— Eu não tenho noção do que você está falando.

— Não achei que tivesse. Apesar do nome, você não tem jeito de quem se interessa por astrologia, Sirius.  

— Me perdoe, Marlene, mas acho tudo isso uma baboseira.

A moça gargalha.

— Um descrente, então.

— E você é uma crente? — o rapaz indaga fervendo de curiosidade.

— Depende, acredito em muitas coisas e não acredito em tantas outras. — ela diz como se fosse simples. Talvez seja para ela.

— Você acredita em Deus? — Sirius não sabe o motivo de deixar tal pergunta escapar. Talvez seja o olhar da estátua de anjo, coberta de neve, recaindo em julgamento sobre os dois. Talvez seja apenas um reflexo de suas próprias dúvidas existências.

A garota suspira.

— Acho que sim. Há dias em que acredito que ele simplesmente não se importa. Há outros em que acho que estou sendo presunçosa, tentando encontrar sentido em seus desígnios. E há outros em que sinto que ele está olhando por todos nós e cuidando de mim, mesmo que eu nem sempre entenda como. É complicado, eu acho. Mas não consigo não acreditar.  Porque seu eu acreditar que não há nada além dessa vida miserável, então, isso quer dizer que tudo acaba aqui e eu nunca mais vou... — ela interrompe a frase no meio, mas Sirius entende. Ela nunca mais verá a mãe. De algum modo, ele compreende a angustia de tal hipótese.

Você acredita em Deus? — Marlene finalmente questiona, após alguns instantes nos quais o uivo do vento gélido é o único som entre eles.

— Não sei. — o rapaz se surpreende com suas próprias palavras e com a verdade que existe nelas. — Antes do Regulus, eu diria que “não” sem hesitar. Mas agora já não sei. Talvez simplesmente deseje que exista algo mais. — “talvez simplesmente deseje uma última chance de me desculpar”, é o que não diz.

— Regulus era o seu irmão? — a garota pergunta com cuidado.

O Black confirma com um aceno de cabeça.

— O que aconteceu com ele? — ela percebe que sua curiosidade foi longe demais. — Desculpe. Você não precisa contar.

— Tudo bem. Ele cometeu suicido. — é sempre difícil dizer essas palavras em voz alta. Inferno, é difícil até mesmo pensar essas palavras.

— Oh, sinto muito. — a menina diz constrangida.

Sirius dá de ombros.

— Tudo bem, não foi sua culpa. E a sua mãe? O que aconteceu? Se você quiser falar, é claro...

— Acidente de carro. — ela diz com um suspiro.

Mais uma vez o silêncio, que é sempre tão confortável quando está com Marlene, recai entre os dois e Sirius finalmente percebe que ambos estão tremendo. Não é capaz de dizer se pelo frio ou pelo teor da conversa.

— Você quer sair daqui? — o rapaz se vê perguntando, ao perceber que também não tem nenhuma presa de voltar para casa, e a menina confirma com um aceno de cabeça.

O jovem casal caminha lado a lado, deixando o cemitério. Nenhum dos dois sabe exatamente para onde estão indo, mas tão pouco se importam.  Também não há muito o que qualquer um deles queira dizer e, ainda assim, ambos apreciam a companhia um do outro. Ainda é cedo e o centro da cidade está praticamente vazio, a neve cobre quase tudo, mas algumas luzes natalinas ainda brilham.

Sirius e Marlene acabam se sentando em pequeno café e pedindo bebidas quentes. Ele, um café preto e sem açúcar. Ela, um chocolate quente. A moça não gosta de café, algo que o rapaz simplesmente não consegue conceber. O ambiente, de qualquer forma, é confortável e aconchegante, embora empilhado por todo tipo de decoração de natal, o que faz a McKinnon rir e o Black revirar os olhos.

— Eu juro que nunca vou entender a empolgação de algumas pessoas com os feriados de fim de ano. — Sirius comenta mal-humorado.

— As pessoas estão simplesmente buscando motivos para ter esperança. E talvez seja divertido para pessoas com famílias legais...

— A sua família não é legal?

Ela balança a cabeça.

— Não. Definitivamente não. A sua é?

O rapaz ri debochado.

— Eu tenho a pior família que já existiu.

Marlene desvia os olhos e encara seu chocolate quente por alguns instantes, mexendo os marshmallows com uma colher. Então surpreende Sirius quando recomeça a falar.

— A minha mãe morreu no começo de dezembro. Eu tinha 13 anos e estava em um recital de violoncelo. Ela saiu do trabalho atrasada e ultrapassou um sinal vermelho, porque não queria perder minha apresentação. Depois disso eu nunca mais toquei para que alguém ouvisse. Bom, pelo menos não até você aparecer no cemitério. Meu pai não queria me ouvir tocar e, para ser sincera, acho que eu também já não tinha coragem para tal. Acho que meu pai me culpa pela morte dela. E acho que eu me culpo também. — a moça confessa, tentando ignorar as lágrimas que se formam em seus olhos. Nunca disse nenhuma dessas palavras em voz alta, mas simplesmente precisa deixar que elas saiam. Está sufocando e acredita que Sirius pode guardar seus segredos. Tem efeito isso nos últimos cinco anos. Além disso, para quem os revelaria, afinal?

— Marlene, nada disso foi sua culpa. — Sirius tenta dizer algo que a console, contudo, nunca foi bom com consolos. Nunca soube se comunicar.

— Faz diferença? — ela indaga — A questão é que meu pai nunca mais foi o mesmo, não acho que um dia ele vá me perdoar, e a minha madrasta não é muito melhor. Os dois acham que eu sou um problema. Uma garota problemática que está sempre inventando histórias e querendo atenção.

— Talvez eles não achem isso de verdade... — o Black sabe que não está ajudando, mas não gosta do olhar desolado no rosto da McKinnon

— Ah, eles acham! Me disseram isso ontem quando eu lhes contei que era assexual. — as lágrimas caem pelo rosto dela agora.

— Desculpe, mas eu não sei o que é isso. — o rapaz confessa, se sentindo um imbecil.

Marlene suspira.

— De um modo muito geral, quer dizer que eu não sinto interesse, vontade ou necessidade de me relacionar sexualmente com outra pessoa. Na prática é mais complexo do que isso, é claro, e existem áreas cinzas. Além de pessoas que, como eu, sentem atração romântica, mas não sexual; e pessoas que não sentem nenhuma das duas... Enfim, é um termo guarda-chuva.

Ela não sabe porque ainda se dá ao trabalho de explicar. As pessoas nunca entendem, sequer tentam. Sua mãe entenderia... Sirius, no entanto, apenas a observa por algum tempo. Claramente não sabe o que comentar e a garota consegue ver que ele está tentando entender o que ela lhe disse. Sente uma pontada de gratidão por ele – esse semidesconhecido – estar ao menos se esforçando para compreendê-la e não dizer nada que a ofenda. Seus amigos mais próximos e seu próprio pai não lhe foram tão gentis e Marlene já perdeu a conta de quantas vezes ouviu que está ficando louca, inventando coisas que não existem ou que, pior, precisa procurar um médio, pois não é normal.

— Bom, eu acho que o seu pai é um grande idiota. —  o Black diz, por fim, a fazendo esboçar um sorriso.

— Ele definitivamente é, mas saber disso não torna mais fácil conviver com uma pessoa que nega sua existência e acha que há algo errado com você.

É a vez do garoto suspirar.

—  Acredite, Marlene, como bissexual eu sei exatamente o que é ter sua sexualidade e existência negados. Sei como é ver pessoas, até mesmo as mais descontruídas, agindo como se você estivesse confuso ou houvesse algo errado a seu respeito. Se aprendi algo com isso tudo é a mandar todos para o inferno. A bissexualidade não me define como um ser humano, mas é uma parte de quem sou que não deve ser suprimida ou ignorada. Acredito que o mesmo é verdade para você e a assexualidade. Ninguém tem o direito de dizer a você quem você é. Nem mesmo seus pais. E você tem direito de abraçar sua existência como um todo.

— Mas como você convive com a sua família após isso? — a menina indaga, enrolando uma mecha de cabelo loiro nos dedos.

Sirius dá de ombros.

— Não saberia dizer. Fugi de casa aos 17 anos.

— Você se arrepende?

O garoto encara a xícara de café a sua frente.

— Só de não ter levado meu irmão comigo.

— Sinto muito. — as palavras dela estão cheias de afeto e sinceridade.

O rapaz sente que é a sua vez de fazer uma confissão difícil e dolorosa. Ou talvez simplesmente precise vomitar a história que lhe embrulha o estomago. Então, conta a Marlene sobre sua família disfuncional e abusiva. De como seus pais eram aristocratas nojentos, racistas e homofóbicos. Fala sobre as agressões físicas e verbais que sofreu desde a infância e de como finalmente ficou farto de tudo isso e fugiu para a casa do melhor amigo aos 17 anos.

— Sempre achei que o Regulus era o filho preferido e que ficaria bem, mas vejo agora que me enganei. Se o tivesse convencido a vir comigo, talvez ele estivesse vivo agora. — termina com um suspiro cansado.

— Ou talvez não. Você não pode se culpar por isso, Sirius.

O garoto concorda com um aceno de cabeça, mas não consegue afastar os pensamentos que lhe dizem que talvez possa se culpar. Que talvez deva se culpar. Sem saber como continuar aquela conversa, os dois jovens se voltam para suas bebidas quentes. Não há muito mais que qualquer um deles possa dizer. Não esse ano.  

— Acho que preciso ir para casa. — Marlene diz, sabendo que, embora não queira, precisa encarar a bagunça que deixou para trás.

— É, eu também. — Sirius concorda, imaginando que Euphemia e James o matariam – e ficariam extremamente preocupados – se ele não aparecesse para o almoço de natal. Antes de se levantar, contudo, o rapaz tem o impulso de escrever seu telefone em um pedaço de guardanapo e o entregar à garota.

— Me ligue se quiser conversar, qualquer dia desses. — diz dando de ombros.

Marlene sorri e promete ligar.

— Feliz natal, fantasma do natal passado.

— Feliz natal, garota do violoncelo.

Enquanto observa a garota se afastar pelas ruas cobertas de neve, com os cachos loiros dançando contra o vento. Sirius se pergunta se algum dia ela irá telefonar. Imagina um cenário em que ela ligue. Imagina uma vida em que se tornem amigos. Imagina uma vida em que se tornem mais.

Como pessoa pragmática que se orgulha de ser, entretanto, não consegue não imaginar um cenário em que ela jamais ligue. E percebe que não se importa. De um jeito ou de outro, sabe que voltará a ver Marlene McKinnon. Como Persefóne, no próximo inverno, ela irá retornar para ele e para o reino de morte que ambos compartilham, trazendo consigo música, conforto e alguma primavera. E, como Hades, Sirius sabe que pode esperar.   

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you are not alone

i’ve been here the whole time singing you a song

i will carry you

i will carry you


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Notas finais do capítulo

Ok, essa história acabou ficando bem diferente do que eu havia imaginado inicialmente, mas espero que tenham gostado. Especialmente a minha amiga secreta.
Feliz natal, seus lindos! ♥
Beijinhos,
Thaís



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