A Biblioteca Secreta de Leona Jones escrita por Em Selmer


Capítulo 2
Em memória de José Antônio Santana




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Sinto que procrastinei muito, fiz de tudo para não escrever este capítulo, viajei, fui as compras, machuquei meu pulso direito, enfim, tentei afastar um velho amigo de um capítulo final. Não sou boa com despedidas, nunca fui.

  Entretanto, há forças maiores e ações inevitáveis que trouxeram me até aqui, de frente ao computador, com a janela fechada. O olhar da Lua faria tudo isso mais difícil.

  Jones ainda está sentada de frente para José, seu sorriso havia desaparecido e em sua testa mostrava preocupação. A tensão fazia o clima parece mais denso e o som na chuva se tornando mais violenta não parecia melhorar a situação.

  “Leona, você tem sido ótima para mim e minha família, desde o dia que entrou por essas portas pela primeira vez.’ José fala sério, com falta de ar. “Você é jovem, tem energia, traz consigo uma brisa de novidade e é isto que este lugar precisa, de uma nova luz.”

  Leona relaxa um pouco, ainda controla sua respiração sente que entre as palavras do velho escondem-se informações. Ela parece querer falar algo, mas pacientemente espera o senhor terminar.

  “Eu vivi os melhores anos da minha vida aqui, deveria ter uns 20 anos quando a senhorita Miranda passou para mim o cargo que ocupo, foram 50 anos descobrindo cada centímetro e segredo que estas paredes guardam, trabalhando para um bem maior.” Ele sorri levemente com um olhar nostálgico. ‘Mas, agora estou velho, doente, não sirvo mais para o propósito deste lugar, já você é nova, saudável, sedenta por conhecimento, creio que está na hora de me aposentar, deixar para você o cargo.”

   José para por alguns segundos, tira de seu bolso um relógio antigo, prateado, decorado meticulosamente. Ele parece analisar seu reflexo, as rugas, o olhar cansado, as cicatrizes que o ofício deixou, ele observa tudo isso com pesar, mas suspira aliviado. Estende o relógio para Leo, e esta, o pega com cautela.

  “O senhor está me promovendo à gerente? Mas é o meu primeiro dia.” A menina se ilumina com o brilho do relógio como um peixe é atraído por uma gorda isca.

  José abaixa o olhar, pensa em tudo que poderia dizer para a herdeira de sua miséria, queria poder alerta-la sobre o tenebroso destino que havia recebido, a queria segura, mas nenhum de nós poderíamos poupa-la, nem mesmo eu.

  “Querida, eu peço que tenha cuidado, não haja sem pensar, você terá conselheiros e guias neste caminho, mas não confie em tudo que lhe é dito. Faça o que é certo, e somente isto.” Ele segura firme na mão da garota, esta ri de felicidade, animada ela pergunta qual sua primeira tarefa. “Por que não atende os clientes hoje? Daniel te explicará como as encomendas funcionam e tudo mais, eu ficarei aqui e organizarei uns documentos, para que minha aposentadoria seja tranquila.”

   Leona levanta em um pulo, beija a testa do velho de maneira carinho. Corre até a porta, guarda o relógio no bolso de sua jaqueta e segue animadamente até o balcão, onde Dan e Aika lidam com novas encomendas.

  Sinto muito, leitor, sei que Leona é a protagonista, mas para mim, entra todas personagens, Jones é a que menos tenho carinho, eu poderia contar-lhe sobre como o primeiro dia dela foi incrível, como ela aprendeu rapidamente a lidar com clientes e fornecedores, quão doce foi a senhora Santana ter enviado uma cesta de biscoitos, mas isto não é importante, Leona Jones não é importante.

  Em sua José respira fundo, encostado em sua cadeira, ele olha para o teto de madeira. Ouve o som da tempestade se formando, ele sabe que eu estou aqui, coloca na mesa a carta que escrevera para Leona e seus netos antes mesmo de amanhecer o dia. Suspira e deixa uma lágrima escorrer, ele sabe que estou aqui.

  Ele sente seus rins pararem de funcionar, todas as impurezas de seu sangue circulando pelos seus órgãos, ele sorri mesmo assim. Ele sente a dor em seu peito, tosse alto e sente o gosto de sangue em sua boca, ele sabe que estou aqui, por isso olha para mim e diz.

  “Não precisa ter dó ou pena de minha alma, velha amiga. Para mim se passou um vida, para você, alguns capítulos, deixe-me ir, servi o meu propósito.”

  Fecho meus olhos, odeio ter que fazer isso.

  A respiração dele se torna mais urgente, ele sabe que estou aqui e mesmo assim sorri.

  “Sempre acreditei que todos fazíamos parte de um livro, escrito por um autor onisciente e cruel que brincava com nossas vidas e nos usava para nossa diversão. Eu sei que não é assim querida, sei que não quer fazer isto, mas você precisa, é sua sina, assim como este lugar foi a minha.”

  Eu deixo minhas lágrimas caírem, não quero dizer adeus, mas a janela se abre e o céu estrelado me obriga a retornar ao computador e terminar o que foi um parto difícil em novembro de 1946, quando o frio consumia o Chile. Preciso fazer isso, mas já não tenho poder sobre minha escrita.

  “Adeus, pequena, obrigada por me dar netos queridos e um herdeira, não deixe que sua ingenuidade destrua o que construí e deixe me ir. Deixo minha realidade para que minha alma fique na história.”

  Seu coração para, simples assim, sem dor, sem sujeira. Seus olhos ainda me encaram pelo espelho pendurado na porta. Limpo minhas lágrimas e respiro fundo ainda preciso contar aos netos de José sobre o falecimento.

Eu entendo se isto não está sendo como você esperava, talvez quisesse uma fábula feliz com uma “jornada do herói” linear mas eu realmente não me importo. Este capítulo não é para você apreciar, sim para entender que há coisas mais importantes neste universo do que a rotina de Jones ou de como ela descobrirá sua sina. Esta realidade que talvez pareça tão distante da sua é feita de pessoas reais, que possuem família, amores, sonhos. Eu não me importo se este livro não vender bem, nem mesmo se há um leitor lendo minhas palavras. Esta história existe por si própria, independentemente de minha vontade.

  Espero até o fim do horário comercial, o corpo de José já está frio. Derrubo um quadro onde estava contida a foto da família Santana, pergunto-me se Aika daquele jeito novamente. Os passos de Daniel vão se aproximando e a chuva fica cada vez pior.

  A sangrenta tempestade começa agora.


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