A Biblioteca Secreta de Leona Jones escrita por Em Selmer


Capítulo 1
Chuva em Lambeth




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  Encho meus pulmões de ar. Sinto as moléculas de oxigênio se unirem as minhas hemoglobinas como uma harmoniosa orquestra, para mim, a hematose é o processo mais poético da vida de um indivíduo. Pode parecer estúpido, porém pessoas como eu costumam ver poesia em tudo, até mesmo no simples ato se manter vivo.

  O destino, entretanto, não é poético, muito menos linear, não pode ser moldado, nem esculpido, não há como escapar de suas tortas feições. Não se pode fugir do próprio destino, não aceitá-lo o transforma em um predador cruel. Autores, porém, deve aceitar suas sinas, como eu aceitei, pois a aceitação traz consigo uma visão mais clara do futuro. O destino trabalha com reciprocidade, o trate como um monstro é isto que será, mas se o ver com gentis olhos, verá que ele será gentil contigo.

  Creio que todos possuem uma determinada função no mundo, seja ela árdua ou não. Entendo que o meu nicho neste imenso ecossistema no qual estou imersa é relatar, contar a quem interesse as estórias e contos que vem até mim. Repare, digo que “contar” e não “criar” pois não tenho controle nenhum sobre estes, nem sobre os personagens, posso sussurrar em seus ouvidos, mover alguns objetos como um espírito gentil em uma casa assombrada. Por mais que eu tente a verdade é que este vidro que separa nossas realidades me deixa observar, e esta, caro leitor é minha sina: observar as tragédias sem poder ajudar.

  Eu sei que tudo isto é confuso, espero que entenda durante a jornada de Jones. Não pretendo gastar tempo com meus pensamento pois claramente não sou a protagonista apenas o fantasma atrás de seu espelho.

  Respiro fundo de novo.

   Abriu-se o guarda-chuva amarelo, confiante, Leona deu o primeiro passo em uma pequena poça na calçada. Levantou seu pé, conferiu a bota preta, agora molhada e sorriu. Leona Jones amava o outono londrino. A chuva que caia não era forte mas a tonalidade escura do céu denunciava a chegada de uma tempestade. Poucos ousariam sair de casa em um domingo assim, mas Leona não se importava. O que alguns considerariam coragem, eu considero estupidez.

    Com seu guarda-chuva amarelo na mão direita, mochila preta nas costas e longa jaqueta mostarda, Leona destacava-se nas cinzentas ruas de Lambeth, Jones gostava de chamar atenção. Acreditava que sua pele negra ficava ainda mais bonita com a cor amarelo e por isto usava apenas em ocasiões especiais como o dia de hoje.

  Entre as ruas históricas do bairro antigo, Jones anda animadamente pulando em cada poça que encontrava em seu caminho sem se importar em molhar a si mesma. Não demorou mundo até que a garota avistar o letreiro gasto, em que se lia em letras curvas “Livraria Lambeth”. Leona parou por alguns segundos, deixou o ar frio encher seus pulmões, sorriu, agora de nervosismo.

  Sinto que devo contar lhe um pouco sobre a Livraria Lambeth. Localizada em um prédio antigo de dois andares, decorado com pedras rústicas, a loja é tão velha quanto a própria cidade, dizem que esta viu Londres nascer e provavelmente irá ver Londres morrer. A Livraria de Lambeth tornou-se um ponto turístico local, com um fluxo mediano de clientes, ela viva, respirava, enquanto a biblioteca em seu subsolo continuava em um coma induzido, mas isto, deixarei que o futuro explique.

  Leona se aproxima, agora consegue enxergar uma figura masculina, pendurando na porta uma decorada placo em que se lê “aberto”. Daniel parecia cansado, seus cabelos castanhos estava mais bagunçados que o normal, além disso o moletom que vestia colecionava machas e provavelmente foi o pijama de Dan na noite passada. Seus olhos, de cor intensa como âmbar, param em Leona que sorriu constrangida, pensou que havia o encarado por muito tempo.

  Ela se aproxima timidamente.

  “Bom dia, Jones!”. Dan a abraça, suas roupas cheiram ao café que ele possivelmente derrubou em si mesmo a pouco tempo. “Bem vinda ao meu inferno pessoal!”.

  “Não fale assim!”. Ela bate de leve em seu ombro. “Deve ser incrível trabalhar em uma livraria”.

 “Bom... descubra por si mesma”. Daniel abre gentilmente a porta para Jones.

  Como se entrasse em transe, Leona perde o fôlego ao entrar na loja, observa cada prateleira, cada estante, cada livro organizado por período histórico. No segundo andar, uma figura analisa Jones dos pés até os cachos de sua cabeça. Jones demora alguns minutos até perceber a presença de Aika no estabelecimento.

  “Lee! Quando chegou?” Jones corre pelas escadas de madeira em direção da amiga.

    Aika se entrega ao abraço, é muita mais baixa que Jones, de pai japonês, a menina vinha a Londres sempre que podia e desta vez pretendia não retornar mais ao Japão. Arrumou seus óculos após Leona solta-la, colocou seu curto cabelo atrás de suas orelhas, arrumou a franja, não gostava quando mexiam em suas mechas.

  “Cheguei ontem, Dan foi me buscar no aeroporto.” Aika diz sorrindo ao primo. Leona sorri também, sabia agora o motivo do cansaço do amigo.

  No andar de baixo, uma porta se abre no fundo da loja. O ranger da madeira nunca incomodou José, ele gostava de brincar que alto barulho o lembrava do Chile, aos 72 anos, José Santana é o homem mais gentil e bondoso que me recordo. Ele dá alguns passos sem tocar a bengala no chão, uma demonstração de sua teimosia, quando perde o ar, utiliza da ferramenta, mas não gosta dela.

  “Senhor Santana, não precisa vir até aqui, eu sei que suas pernas doem”. Jones afirma descendo as escadas correndo.

  “Acalme-se, Furação Jones” José abraçou a menina com carinho, Leona amava este apelido, eu também gosto, nenhuma comparação seria mais certeira do que essa, Leona é um furação imparável e sem propósito. 

  “Estou muito animada para começar, onde começo?” Leona falou sem parar para respirar uma única vez.

  “Respire, menina” José sorriu com carinho. “Conversaremos no meu escritório primeiramente”.

  “Claro, claro.” Jones segurou o braço direito de José e o conduziu até o pequeno escritório do idoso.

 Ele abriu o escritório lentamente, em um ritmo torturante para Jones, porém, ela não reclamou, nem demostrou irritação. Jones não teve um avô materno ou paterno, Leona teve apenas seu irmão Martin como família, então, José era o mais próximo que Leona tinha de um avô, melhor ainda, Leona tinha José como um pai.

  A sala revela-se muito bonita, em um tom azul claro, enfeitada com diversos quadros, estantes de livros repletas de coleções raras. Na mesa do velho Santana, papeis, canetas e alguns cadernos, na parede de trás um grande quadro de um girassol, uma pintura nova, Leona supôs.

  José mostra uma cadeira para Jones e esta senta sem hesitar. José senta-se com dificuldade.

  “Sente-se melhor?” Jones pergunta. “Deve doer bastante”.

  “Não se preocupe, garota, perderei um rim antes de perder a perna.” José brinca, mas no fundo sabe que sua realidade não está muito distante.

  “Então...sobre o que quer conversar?” Jones muda de assunto ao sentir desconforto. “É sobre meu emprego? O senhor não me quer mais aqui? É sobre o salário? Porque eu trabalharia de graça se o senhor não pode pagar.”

  José solta uma alta risada.

   “Dinheiro não é o problema, Furacão Jones”. Leona relaxa o ombros.

   “Sobre o que é esta conversa então?” Ela pergunta confusa.

   Destino, Jones, está conversa é sobre seu destino.


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Notas finais do capítulo

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