Cada Um Com Sua Cor escrita por Babs Júnia


Capítulo 2
2. “Eu vou devorar seu cérebro. ”




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2. “Eu vou devorar seu cérebro. ”

Jude sentiu preguiça de tirar as roupas da mala, mas, quando a dona da casa se ofereceu para ajudar, ele preferiu dispensar e fazer ele mesmo. Não era a mais educada das pessoas, mas a imagem mental do olhar matador de America caso desse trabalho às almas boas que o hospedavam, fez com que tivesse ânimo para o trabalho.

O quarto onde ele e a irmã estavam instalados eram simples e tinha apenas uma cama, o que o fez perceber que dormiria com os pezinhos de Carrie afundados nas costelas pelos próximos trinta dias. Bem, menos mal.

— A gente vai morar aqui agora? — Carrie estava sentada na cama, o rosto ainda sujo de bolo de chocolate. — Cadê a mamãe?

O rapaz a olhou por sobre o ombro enquanto pendurava algumas camisas nos poucos cabides dispostos no armário. Não tinham muitas roupas, aquilo ia servir por um mês.

— Mamãe está trabalhando. — Ela tinha tantos vestidos cor-de-rosa que chegava a ser enjoativo. — E não vamos morar aqui, só vamos ficar até ela vir buscar a gente.

— E quando ela vem buscar a gente?

— No final do mês.

— E você vai dormir aonde?

Uma risada escapou de Jude após ouvir aquilo e ele não ficou nada surpreso quando a viu espalhada na cama. Era engraçado; ela era tão pequena e conseguia ocupar tanto espaço.

— Vou dormir com você, pentelha.

Pareceu o anuncio do apocalipse aos ouvidos de Carrie.

— Mas você e menino!

— Eu sou seu irmão.

— Mas meninos fedem! — Ela torceu a boca, o que só a deixou mais engraçada aos seus olhos.

Não desmentiu, era bom que ela continuasse acreditando que meninos fediam. Ao menos até completar oitenta anos e poder namorar.

— Menos o Ari. O Ari não fede. — Ari?!

— E que intimidade é essa? — Ergueu a sobrancelha, recebendo um sorrisinho sapeca.

Ela abriu a boca para responder, mas a porta do quarto ao lado foi fechada com uma força preocupante e os dois pares de olhos se arregalaram.

Passos foram ouvidos contra o assoalho de madeira do corredor e Jude se sentiu num filme de terror quando o dono da casa, Nathan McFly, passou por sua porta e parou alguns minutos ao olhar para dentro do quarto. Ele colocou os olhos primeiro no rapaz negro, parecendo analisar as vestes, a bagagem e, depois a Carrie assustada em cima da cama.

A boca moldada por uma barba castanha e clara se torceu com tanto desgosto, que Raymond se sentiu um parasita.

— Você não tem drogas aí, tem? — A mão parou no batente da porta, Jude franziu o cenho.

— Quê?!

— Responda logo, garoto! — Jude se sentia prestes a ser revistado por um policial, mas não podia gritar com um homem na casa dele. — Se tiver, é melhor ficar sabendo que eu não admito essas c-

— Nathan! O que você pensa que ‘tá falando?! — A voz revoltada de Rika apareceu quando a porta ao lado foi aberta num estrondo.

O rapaz negro observou enquanto a boca do homem se abria, mas nada saiu dali. As mãos ossudas de Rika o empurraram como se enxota um cachorro e um resmungar irritado e grave foi ouvido antes dos passos pesados irem para a escada.

Jude quase voltou a dobrar as roupas, procurando algo para descarregar a raiva, mas a voz feminina e envergonhada fez com que olhasse de novo naquela direção.

— Desculpe por isso... — Ela não entrou no quarto.

Rika McFly era uma mulher bonita. Os cabelos tinham um tom de loiro que não parecia nem um pouco natural e ela também usava um laço de bolinhas sobre eles. Era muito alta, maior que o marido, mas menor que o filho e tinha um sorriso que tomava todo o rosto fino.

Não foi preciso que olhasse muito tempo pra ela para que descobrisse o motivo de America confiar tanto na amiga.

— Ele parece nervoso... — Para dizer o mínimo.

— É... Problemas no trabalho. ­­— Foi a desculpa esfarrapada mais ridícula do mundo. — Jude... Não se importe com o que Nathan disse. Ele tem uma ideia errada sobre as coisas.

— Coisas como todos os negros existentes serem drogados?

Ela arregalou os olhos e engoliu em seco, mas o mais novo decidiu poupá-la de procurar algo bom pra dizer. Era impossível, dadas as circunstancias.

— Eu não me ofendi, não precisa ficar preocupada. — Tentou sorrir, mas nunca aprendeu a forçar sorrisos. — Falo sério, não é a primeira vez que ouço algo assim e, como vou ficar aqui, acho que ele tem o direito de saber.

O dar de ombros passou que o assunto estava encerrado e Rika só pôde suspirar para depois abrir um sorriso sem graça.

— Acho que o Ari vai sair hoje, você pode ir junto, o que me diz?

— O Ari? — Carrie se animou, esquecendo o susto. — Eu posso ir junto?

— Ah! Mas eu pensei que a senhorita pudesse ficar aqui me fazendo companhia. — Rika, enfim, entrou no quarto e fez cócegas nos pés descalços da garota.

— Mas é o Ari!

— Vai preferir ficar com um bando de garotos chatos? — Rika pareceu horrorizada e Jude não soube ao certo se foi a ideia de sair com garotos chatos ou as cócegas que convenceram Carrie a ficar.

Talvez a expressão enojada de Rika.

— Olha, eu não acho que...

A mulher já caminhava para fora quando ele abriu a boca de novo, mas voltou a cabeça para trás.

— Não se preocupe, querido. — O sorriso dela, tão fora de contexto, fez Jude se perguntar como é que alguém assim casava com um homem daqueles. — Você e Ariel se parecem muito.

Jude quase retrucou que ele não se parecia em nada com o filho branco dela, mas apenas abriu um sorriso sem dentes. Concordava com as coisas para que as pessoas parassem de falar mais rápido e Rika pareceu entender o recado, pois saiu e fechou a porta atrás de si.

Ele e Carrie encararam a porta. Ele pensando em que espécie de purgatório a mãe os tinha enfiado e ela em mais uma de suas famosas perguntas que deixavam Jude sem saber o que responder.

— O que é dogras?

Ela perguntou, causando uma careta no irmão.

Seria um mês muito longo.

*

O disco girava no tocador, a agulha fazia com que a música calma enchesse o quarto e ajudasse Ariel a se concentrar na leitura culta do encadernado que tinha em mãos. Estava eufórico, gastou parte das economias para compra-lo e, agora, o tocava como se fosse a maior de todas as preciosidades abaixo do céu.

E talvez fosse mesmo, ao menos até que fosse lançada uma nova edição ou ganhasse um carro.

Ainda se arrependia por não ter pedido por um carro, mas não ia pensar nisso agora.

Era o seu momento especial, paz e serenidade. Sua companhia eram apenas o som das páginas sendo viradas e a voz de Sinatra cantando Fly Me To The Moon de um jeito tão suave que, se não estivesse tão compenetrado na leitura, poderia pegar no sono.

E ninguém no mundo ousaria interromper seu momento especial.

— Ari…? — Além da mãe, é claro. E, pela expressão dela, tinha uma ideia muito boa do motivo que a levava ali e sentiu o rosto queimar apenas em pensar, mas deixou que ela continuasse. — Por que não convida seus amigos e Jude para um passeio? Vai ser bom pra ele.

Ela era tão previsível.

— Mãe, sem chance. — Como convidaria um cara que sequer conhecia para andar com os poucos amigos que tinha? — Você viu o jeito que ele me olhou. — Percebeu tarde demais que tinha comprado um debate com a mãe.

— Ele só está assustado, benzinho. — Rika saiu do batente da porta do quarto do filho para se sentar ao lado do garoto na cama.

No momento em que a HQ do Lanterna Verde foi puxada da sua mão e jogada na cama, Ariel soube que aquela discussão já estava perdida. Rika tinha aquele rosto gentil, mas era um verdadeiro furacão e ele só conseguiu chorar por dentro com os maus tratos à sua revista.

— Ele está assustado e a irmã dele também.

— Ótimo, temos isso em comum. — O garoto tentou argumentar.

Oras, não era nenhuma mentira. Enquanto a garotinha, Carrie, parecia ter desenvolvido uma adoração toda especial por seu cabelo desde que chegou, o garoto não havia olhado para sua direção com uma cara de bons amigos e, de primeiro momento, negou qualquer tentativa de aproximação, embora não fosse de todo rude.

Depois de ser afastado pela quinta vez, Ariel decidiu desistir.

Tinha concordado em fazer a visita se sentir confortável, mas também não tinha nenhuma experiência com aproximações.

Suspirou ao sentir o carinho maternal e desajeitado de Rika; ela cutucava as espinhas que tentava esconder com o cabelo quando queria mostrar que se importava. O que era um verdadeiro terror, já que Ariel sempre acabava com a cara inchada e vermelha depois de alguns afagos da mãe.

— O que você faria se estivesse no lugar dele, querido? — Ela era professora e gostava se ser moralista. Ariel bem sabia que a mãe tinha uns quatrocentos discursos sobre aceitação, todos na ponta da língua. — Jude perdeu a vida com que estava acostumado, ainda está se adaptando, precisamos ser pacientes.

— Mãe, fala sério… — Ariel acabou rindo e se sentou direito. — Não é o fim do mundo, mas eu não vou convidar ele pra sair com o resto do pessoal, não ainda.

— Ariel McFly, não vai me dizer que está com vergonha do garoto por causa da cor dele!

— QUÊ?!

— Francamente, não foi assim que e-

— Meu deus, não pira Dona Rika! — Teve que segurar a mãe pelos ombros ao se dar conta de que ela estava a um passo de uma crise de histeria. — É claro que não tem nada a ver com a cor dele, mas eu nem conheço o cara, como é que vou apresentar ele pra alguém?

Isso fez Rika se acalmar.

O marido era um trabalho em andamento e ela ainda mudaria a cabecinha preconceituosa do homem com quem havia se casado, mas sempre agradecia a qualquer divindade que existisse lá em cima por ter lhe dado um filho tão parecido consigo.

— Mas isso não é problema. — Como costumava a dizer: só não tinha jeito para a morte. — Eu fico com a irmãzinha dele e você o leva pra conhecer o bairro. E é bom irem logo, enquanto ainda está claro. — Ela logo completou, antes que o filho tivesse tempo de contestar.

O suspiro que Ariel soltou deixou claro quem acabaria com a razão ali, não que isso já não estivesse claro desde que a mãe entrou no quarto, mas ele gostava de se iludir.

— Eu… Posso levar ele no… cinema? — Seria ótimo, pois nem precisariam sair do caro e Ariel morreria um pouco menos caso levasse um olhar atravessado do outro garoto.

Rika abriu um sorriso que quase não cabia no rosto.

— Eu empresto o carro!

— Quando eu peço pra sair, você nunca me empresta aquele carro!

Ela deu de ombros.

— Dessa vez é por uma boa causa.

— Das outras vezes também era…

Com um sorriso ainda no rosto, Rika afastou os cachos da testa vermelha do único filho.

— Não era, não.

— Mãe!

— Até mais querido. — Ela falou, já saindo do quarto. — E não se esqueça de sorrir quando for convidá-lo.

Ariel bateu na cama e olhou com pesar para a cena onde o Lanterna Verde descobria os poderes do anel. Era a quinta vez que lia, mas teria que deixar para mais tarde.

Ou não pois, pela cara do Raymond quando se conheceram, duvidava que ele fosse querer sair consigo para qualquer lugar.

Ao fim daquela noite, entretanto, nem conseguia se lembrar mais do super-herói favorito.

*

Quando o carro estacionou, a discussão continuou.

— Não gosto de terror.

— Mas não é um filme de terror, é um filme de zumbis!

— Eu também não gosto de zumbis.

— Caramba, princesa, ‘cê não gosta de nada!

Ariel entortou a boca ao encarar os filmes disponíveis.

— E aquele?

O negro olhou na direção onde ele apontava, erguendo uma das sobrancelhas quando o encarou de volta. Ele não podia estar falando sério…

— “Um Amor Para Recordar”?! — Depois de uma longa analise, Jude percebeu que o outro não estava zoando com a sua cara. — Isso é filme de mulher!

— Não é!

Raymond estava quase se arrependendo de ter aceitado o convite do outro, quando se lembrou de algo que o fez sorrir.

— Não era pra você fazer eu me sentir à vontade, princesa? — Se aproximou mais.

— Não me chama assim!

— Ou você ‘tá com medo?

Aquilo sim fez Ariel ficar vermelho como um pimentão e encarar aquele idiota com toda a indignação que estava sentindo.

— Eu não tenho medo de nada. — Ele tinha sim.

— Ótimo!

O mais velho não teve tempo de contestar quando o rapaz negro saiu do carro e foi falar com a garota do caixa, claramente fazendo um charme desnecessário antes de voltar com dois ingressos para “A Volta dos Mortos-Vivos” e um saco de pipocas. Internamente, Ariel agradeceu por ter se lembrado de colocar chocolates e balas no porta-luvas. Odiava pipoca.

— Mais um pouco e eu conseguia o número dela… — O negro reclamou assim que entrou no carro e não perdeu a careta que passou pelo rosto de Ariel. — Que foi?

— Eu estudei com aquela garota.

— E daí?

O moreno o considerou antes de desviar o olhar para onde a menina sorria para o próximo cliente. Não tinha nada contra ela, mas ela era a chefe das cheerleaders que havia namorado o cara por quem Ariel tinha um amor platônico naquela época. Era uma pequena mágoa, até porquê, havia feito amizade com o carinha depois que acabaram o ensino médio.

— Nada. — Disse por fim.

Não é como se fosse ficar expondo seus dramas adolescentes para um cara que nem sequer conhecia. Mesmo esse cara tendo um sorriso lindo.

E, definitivamente, Ariel não estava reparando no sorriso de ninguém.

*

— Eu vou devorar seu cérebroooooo!

— Droga, Raymond, cala a boca!

Era a terceira vez que ouvia aquele idiota falar a mesma frase na voz de zumbi ridícula que ele tinha inventado e, enquanto dirigia, Ariel ainda podia ver as cenas horríveis dos homens putrefatos que devoravam pessoas vivas. Estava com náuseas e, se não chegassem em casa nos próximos cinco minutos, vomitaria em cima daquele palhaço.

— Cara, você é muito medroso, meu deus…! — Jude não perdeu a chance de gozar mais um pouco com a cara branquela de Ariel.

Perdeu a conta de quantos gritos — alguns dignos de um filme de terror — o moreno soltou e foi sorte o carro estar desligado, pois, com a força que ele usava pra apertar o volante, não se surpreenderia se acabasse causando uma tragédia que transformaria todo o cinema em possíveis zumbis. Quando disse isso a ele, teve a certeza de que Ariel tentou lhe matar apenas com o olhar.

— Não sou medroso… — Era sim. — Eu só não vejo motivos pra ficar assistindo essas coisas desagradáveis quando a gente podia estar vendo algo divertido.

Jude riu.

— “Um Amor Para Recordar” não é exatamente a minha ideia de algo divertido.

— E ver pessoas devorando as outras é?!

— Não eram pessoas, princesa, eram zumbis!

— Mas eram pessoas antes de virarem zumbis! — Aquela era, sem dúvida alguma, a discussão mais ridícula de todos os tempos. — E devolve meus chicletes.

— Nossa, que mão de vaca… — Jude fez questão de tirar um da embalagem e mascar. — Não precisa ficar com medo, benzinho, se quiser, eu durmo com você essa noite.

Se fosse para criar uma lista das vezes em que Ariel mais ficou vermelho, aquela noite, com certeza, encabeçaria.

— Não preciso de ninguém dormindo comigo. — Era bom deixar claro, pois não era nenhum maricas. — Idiota.

— Pode até ser… Mas quem disse que a gente ia dormir?

Mal sabia Jude que, aquele sorriso que havia acabado de abrir, estava sendo sorrateiramente observado por Ariel a noite inteirinha. Afinal, o mais velho não queria ver aquele filme com violência gratuita e Jude rindo de sua desgraça era infinitamente mais interessante. Claro que estava pensando em maneiras muito prazerosas de esmurrar o negro, apenas por isso o encarava.

E o olhar escuro que lhe foi lançado trouxe uma nova vermelhidão para o rosto. O fusca branco da mãe parou em frente a garagem e ficaram um pouco em silêncio, apenas ouvindo a música baixinha da banda Iron Maiden que tocava na rádio. Ariel não conhecia a banda, mas Jude era fã ao ponto de ter umas duas camisas com o nome da mesma de estampa.

— Pode ir, eu só vou guardar o carro. — O resmungo saiu sem jeito por parte do mais alto.

— Você não precisa ficar tão sem jeito, Ariel. — Jude riu, mas Ariel não deixou passar despercebido que aquela era a primeira vez que ele dizia seu nome desde que se conheceram.

— Não ‘tô sem jeito, só com um pouco de sono. — O sorriso foi forçado, mas… Tanto faz.

— Boa noite, princesa!

— Já disse pra parar de me chamar assim!

Só recebeu mais outro sorriso antes de ele sair e fechar a porta, sem falar mais nada.

Naquela noite, aprendeu que Jude Raymond era um filho da mãe.

Mas era um filho da mãe com um sorriso muito bonito.

Que foi? Era bonito mesmo…


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