sobre amar o oráculo mais cruel. escrita por RFS


Capítulo 1
I. O beijo carmim


Notas iniciais do capítulo

agora vai, rapaziada
boa leitura!!



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O beijo carmim

Durante toda a vida, em 19 anos, a mente de Kalfr dizia para si e para o corpo dele uma coisa: você precisa continuar. Ele nasceu do fogo, da mágica e da terra.

Era esse o motivo de sua teimosia, o mesmo motivo para sua coragem, sua temeridade. Algo que vinha de tão dentro dele que não podia ser ignorado, apenas seguido. O ponto que fazia dele um sobrevivente — e ele cresceu como um —, que o fez sobreviver a tudo ocorrido na sua terra natal antes de partir, a viagem, a saudade daqueles que importam e por fim, a sobrevivência por si só em um país onde ele tinha nada.

Na floresta em que andava, as árvores eram altas e cheias de folhas o suficiente para fazer o mundo quase completamente escuro. Uma dor no joelho estava o traindo, obrigando-o por vezes a apoiar uma mão em um tronco e parar por alguns momentos até que voltasse a andar novamente. Os sapatos que eram velhos e já estavam ainda mais gastos pela viagem se desmancharam, as fitas que os deixavam firmes nos pés desistiram. Não se importou, apenas os jogou fora e continuou.

Quando Kalfr chegou no limite, não havia mais árvores, apenas terra e o mato selvagem. E o céu – podia o ver com clareza finalmente. O crepúsculo estava acontecendo, tingindo o mundo em um tom carmesim e as nuvens em ébano e laranja.

Deu graças para um deus que não sabia se existia pois antes teve a impressão que morreria entre o labirinto infinito de árvores idênticas onde o tempo parecia não existir. Inalou o novo ar cheirando a orvalho profundamente enquanto sentia a relva alta roçar nas pernas exaustas, dando os primeiros passos em novo território.

Viu que havia ali uma cerca simples de madeira e arames, e se estendesse mais a vista, veria que tinha uma estrada de terra que com certeza daria numa vila ou pequena cidade. Já esteve em situações assim e variações disso.

Contudo algo perturbava a paisagem previsível. Um homem estava sentado num banco de madeira vulgar, algo que parecia deslocado no ambiente. Não podia ver seu rosto, apenas suas costas parcialmente cobertas pela cascata de cabelos negros, até o momento que ele virou-se ao ouvir o farfalhar do relvado. Kalfr não distinguiu as características por causa da distância, porém soube que o estranho não era muito mais velho que ele.

Ambos estavam surpresos com a presença de mais alguém ali, naquela hora. Analisando um ao outro, eles trocaram olhares da mesma forma que a noite e o dia entravam em conflito.

Logo, o homem levantou-se e caminhou até o viajante. Sabia que ele não era dali, pois conhecia os rostos da maioria dos habitantes daquele lugar e lá não havia ninguém com cabelos ruivos. Ele parou a uma certa distância antes mesmo de notar a postura defensiva que o estrangeiro tomava: um pé mais para trás, as mãos quase formando um punho e a tensão no corpo, aliados ao cenho com a menção que iria se franzir. Tinha um brilho voraz e destemido nos olhos cansados que, com o tempo, viria a saber que ele nasceu com isso.

Não ficou ofendido, tampouco intimidado com a reação do rapaz à aproximação. Manteve o semblante tranquilo e tirou os próprios sapatos, pretos e empoeirados, e os estendeu com simplicidade para que o outro pegasse.

— Você precisa mais do que eu, peregrino. Por favor, aceite.

O rapaz não desfez sua tensão. Olhou para os sapatos, para as mãos dele, e então para baixo e os próprios pés descalços, sujos e doídos, cheios de arranhões e calos. Então os sapatos foram cuidadosamente postos no chão e, com a mesma cautela, Kalfr os pegou e calçou tão rápido quanto pôde, murmurando um obrigado.

— És mesmo um viajante, não é? Qual é o seu nome?’’

Ele hesitou antes de responder:

— Kalfr —  sua língua e lábios secos pronunciaram. Fazia tempo que não falava o próprio nome. — Kalfr Arisen.

— É um prazer, Kalfr Arisen. Eu sou Raven Magni e moro aqui. Você sabe onde está?

— Eu… suponho que sim —  ele não sabia que lugar era aquele, nem mesmo como se chamava. — Não importa.

Raven inclinou sutilmente a cabeça para o lado, curioso e compreensivo. Deu um pequeno passo a frente, aproveitando que o ruivo relaxou um pouco —  e relaxou porque percebeu que aqueles olhos escuros não carregavam pena, mas sim misericórdia. Uma compaixão legítima, pura e terna. Depois de tantas portas fechadas em sua cara, uma mão se estendia para ajudá-lo e tratá-lo como igual.

— Senhor Arisen, vejo que está ferido. Se puder aceito, digo que tenho o necessário em casa para ajudá-lo.

Kalfr ainda não conseguia entender porque estava sendo tratado assim, quis acatar a gentileza não só pela natureza dela, mas porque não tinha para onde ir, o que comer e nem um teto. Ele gostaria de, naquele momento, ter estado apenas imensamente grato e entregue ao altruísmo alheio, porém a desconfiança tinha como mãe as marcas da vida e como pai o instinto de sobrevivência.

Encostou discretamente no canivete escondido por entre as roupas para confirmar que ainda estava ali, os dedos encontrando o cabo de madeira frio, sem o envolverem. Não tinha como saber que Raven percebeu a movimentação e mesmo assim nada fez, nem que mais tarde sentiria vergonha de si por ter feito isso.

Ele agradeceu baixo novamente e assentiu. Raven pediu para que o acompanhasse, contudo o rapaz se pôs.

— Por favor, vamos ficar mais um pouco. Preciso me sentar —  pediu falando devagar. Com Raven andando logo atrás dele, conseguiu chegar ao banco fazendo mais esforço, suspirando quando finalmente sentou-se.

Raven tomou seu lugar no banco com uma distância respeitosa entre eles. Um dos motivos por que estava sozinho ali àquela hora era para apreciar o crepúsculo. Se perguntou internamente se também fazia tempo que Kalfr Arisen, o viajante, não via algo semelhante.

E realmente fazia. Não um bonito como aquele ao menos. Kalfr lembrou-se que há horas achou mais uma vez que iria morrer em um lugar escuro, onde seu corpo dificilmente seria achado, que não viveria para ver seu destino e seu país liberto. Porém viveu para ver mais um crepúsculo, mais um nascer do Sol.

Quando deu por si, riu-se baixinho. Riu pela vida, pelas coisas horrendas e maravilhosas que ela oferece, riu do tempo e do Diabo. Riu do Sol que despontava entre as nuvens.

Raven olhou-o de lado, interessado, sem perguntar sobre. Apenas sorriu pequeno para Arisen, este agora percebendo que no peito do outro repousava um pingente de estrela de Davi.

Kalfr Arisen também não tinha como saber que o homem do lado dele tinha o espírito milenar, que dentro dele existe algo muito maior que todos nós, que ele falava uma língua tão antiga quanto as estrelas. Ele era o escudo e a espada, a conexão entre o céu e a terra, um altar vivo que respira luz e inspira glória. Raven Magni era um santo que pecava, tinha ichor correndo nas veias e as mãos sagradas cobertas de sangue.

Arisen idolatraria tudo isso, cantaria hinos e orações para o profeta, descobriria segredos do universo apenas para esquecê-los um segundo depois. Seria um discípulo esculpido em esperança, amor e dor. Talvez ele poderia sobreviver a isso também.

Ainda sem saber de nada disso, ele assistiu silenciosamente o beijo carmim da noite com o dia junto ao oráculo mais cruel de todos.


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Notas finais do capítulo

deem uma olhada no perfil do kasu (u/659212/) lá só tem fic linda e de qualidade!!
se você gostou dessa escrita sabe do que também vai gostar?? de o que acontece às 11 da noite, minha fic de death note que você não precisa ler o mangá nem ver o anime pra entender olha só que coisa massa



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