Contos de Fumaça // Interativa escrita por Allura


Capítulo 2
// Atraente


Notas iniciais do capítulo

Oi! Eu até tentei me controlar e não postar nada ainda. Mas meu arquivo olhou para mim, eu olhei para o meu arquivo e... Cá estamos. Espero que goste!



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As sombras de muito longe contaram ao vento de que haveria algo interessante para acontecer naquela noite. Elas se sacudiam pela madrugada, atiçadas e excitadas, farfalhando folhas e arbustos com tal inquietude que chegava a assustar ou mesmo afligir algumas aves. Incomodavam os lugares com suas ansiedades sussurrantes e mesmo quem não fosse observador o bastante poderia ouvir os sibilos por detrás dos objetos e criaturas, como se as sombras não fossem realmente projeções de seus corpos, mas diversos espectros em diversão.

Assim, vagueavam livremente por ai enquanto ninguém via, enquanto aquela noite em Lavender só parecia existir para aqueles que não estavam descansando em suas respectivas casas, se estender para os que festejavam a vida no Owen’s.

Uma corrente mensageira então espalhou-se pelo continente, muito embora o fluxo das brisas do sul só tenha trago a novidade para as sombras no quarto de Lianna depois de algumas horas. O código que lhe fora prontamente sussurrado no ouvido em segundos se perdera no vazio, tendo em vista que a curandeira jazia em um sono profundo desde às oito.

Lianna simplesmente dormira em casa antes que todos chegassem de seus respectivos trabalhos, antes mesmo de o jantar estar posto à mesa, ou de sentir o cheio dos pães esquentados por magia de sua vizinha de quarto e acabar tentada a beliscar algo, perdendo sua deixa.

A garota ressonava tranquila uma vez que não se importava em ter que dar uma desculpa qualquer de manhã para os amigos por furar com a bebedeira marcada anteontem, até já se perguntava se fazer algo como um elogio à crescente melhora do humor de Ianis iria convencer Abby de que não os evitara, mas que estaria cansada por conta dos estudos de especiarias e da espionagem atual.

Ela não parara para ponderar se assim talvez acabaria fazendo com que a Jynx se demorasse mais para a chamar para comemorações e, portanto, terminasse adiantando todas as visitas à sua família no final de semana. Mas esse seria um assunto que lhe poderia vir em mente pela manhã ou não, uma vez que ela também sabia que podia muito bem fingir que se esquecera do compromisso. A verdade era que ela só não queria mais pensar em seus problemas naquele dia e beber demais sempre a levava a isso.

Mas eram quase três da manhã quando a respiração de Lianna tomou um rumo levemente descompassado e os músculos de suas mãos retesaram não uma, duas singelas vezes, como se em um célere tique nervoso. O motivo para isso acontecer era o mesmo que trazia um calor específico que tomava de conta da mente da moça – e talvez suas maçãs do rosto também; a mão de um rapaz estendia-se não para ela diretamente, mas para o enlaço de sua cintura naquele sonho. A iluminação alaranjada fraca do cômodo se misturava com o cheiro de shots, suor e farra em seus corpos, as dozes de qualquer coisa que corriam pelas veias de ambos pulsavam, dando-os a ideia de extremo fervor no lugar.

Com um leve toque, ela teve a visão de que apoiava-se com um deleite fingido na curva de seu braço esquerdo, e que agora seguia deslizando seus dedos com tamanha suavidade por sobre o couro da blusa do homem que fazia-o pressioná-la mais para perto em expectação. A situação era provocativa demais, notara, para que ele se concentrasse em outra coisa além do pensamento de que só faltavam alguns centímetros para verdadeiro jogo começar. Assim, ignorava deliberadamente a ideia que Lianna tivesse uma pretensão diferente em mente.

E ela fingiu bem que seu corpo não pareceu ansiar por algo enquanto suas unhas começaram a traçar um caminho circular no peito rasgado por tatuagens do estranho. Observando cautelosamente, viu sua companhia escorar ainda mais na prateleira em que se amparava, derrubando alguns mantimentos no processo, mas não quebrando seja lá qual fosse o fluxo da conversa que mantinham.

Seus olhos, no entanto, não percorreram muito além desse quadro uma vez sua cabeça insistia em pender para trás com o primeiro atrito involuntário entre seus rostos. Ele estava confirmando para ela que sim, descaradamente deliciava-se com seus flertes. E muito embora Lianna tenha conseguido distinguir um suntuoso e traiçoeiro vestido de um veludo vermelho planejado de modo a escandalizar seus dotes, havia algo ali resplandecente o bastante para não o permitir ver além de seus ombros, como se o quarto escuro não estivesse tampouco iluminado pelos abajures e velas mas por algo forte acima ou rente ao nariz da menina.

De fato, Lia acordou com a sensação de que tal resplandecência ainda lampejava encandeava o olhar, tanto por conta de sua teimosia em largar o sonho, quanto pelo estado em que seu quarto se encontrava. Os lençóis, caídos ao lado da cama; a fronha sambada pelos braços e cristais diversos piscando em cima de uma cadeira, próxima à pequena escrivaninha recostada num canto. Mas o mais interessante vinha a seguir.

Ela não precisou arfar por completo para sentir como a expectativa ainda tinha completo controle sobre o seu fluxo sanguíneo, mas teve que piscar duas vezes para notar que o seu quarto estava respingado de luzinhas minúsculas, espaçadas e flutuantes – e que não, não estava dormindo.

Arrumando os cabelos bagunçados e limpando o canto da boca, ela sentou-se. Só então encarou longa e silenciosamente a dança dos anormais pingos de ouro ao seu redor, os quais teimavam em deixar o quarto amarelado, mas ainda escuro o bastante para caso quisesse voltar a dormir novamente. Os janelões estavam abertos e a luz provinda de seus lampiões ao lado da cama redonda tremeluzia, quase como se culpa dos ventos de fora. O cheiro indescritível da manhã, de orvalho e algumas plantas lhe preenchia os pulmões.

Seus ombros amoleceram logo após e ela caminhou pelo quarto por um curto período de tempo, até que recostou o rosto na parede de uma das janelas mais próximas. Suspirando e repassando alguns afazeres na memória, Lianna encarou o Quarteirão dos Ferreiros fingindo costume naquela quase manhã e, como quem não quer nada, debruçou-se no parapeito. Tamborilando com notável indiferença os calejados e curtos dedos por sobre a madeira, se pegava voltando ao sonho daquele dia. Então fixou os olhos no cruzamento com a Avenida do Salgueiro como se todas as suas ações fossem ainda rigorosamente medidas, como se já estivesse desperta e focada em seu trabalho da vez.

Porém, ao aprumar a cabeça de leve no sentido da vista para a cidade, ela ouviu concretamente como a sombra mais próxima deslizara de debaixo de algum móvel para lhe beijar o ouvido e enfim dizer, sem rodeios, que algo grande estava perto demais e que se movia rápido em direção aos escudos de Lavender. E ela se prostrou ali, deslizando os olhos pela Casa dos Moinhos e pelo altar da cidade até onde terminava a Rua das Laranjeiras, tentando processar a mensagem, mas ainda sem sair do lugar. Lianna sentia como se não soubesse bem o que esperar disso.

Em outras situações, sabia, ela ignoraria o aviso, murmuraria algo para si mesma que justificaria como as defesas eram impenetráveis e tentaria se agarrar ao fio que ainda a ligava com o rapaz dos sonhos. O homem que não era conhecido, ela percebera segundos depois. Pois, ora, ela saberia se houvesse sonhado com alguém como Luran, estava absurdamente acostumada com isso. Mas havia algo naquele novo tom que instalou uma pressa anormal no seu sistema, uma necessidade insana e irracional de uma recepção mais calorosa e carnal.

Seus cristais piscavam ao longe enquanto Lianna refletia se valia a pena se dar o trabalho de abandonar a segurança da sua pensão na colina e ir checar a temida invasão ou não, mas isso não escapara de seus olhos treinados. Algo ali não lhe cheirava bem, percebeu quando um arrepio gelado lhe correu a coluna. As oscilações de poder na cidade nem mesmo se abalavam com a longínqua presença de Abigail, mas tremeluziam por um simples sussurro do vento e um punhado de luzes piscantes? A curandeira de início pensara que aquilo seria uma brincadeira de mal gosto de seus vizinhos, mas ela também sentira o cheiro da magia que emanava em cada uma daquelas gotas, e nele não havia nenhum odor similar ao de seus amigos.

Que a Moltres não estivesse tramando algo de ruim para aquela manhã, orou, pois ela não saberia o que dizer aos humanos se a barreira de seus antepassados ruísse como a do seu quarto fizera neste instante. Ou tampouco articularia bem sobre o que acontecera com Ianis, que também teria que relatar, caso grave, o ocorrido à população. Ela nem mesmo queria imaginar o que o Clã pensaria daquilo se descobrisse que ela ao menos hesitou.

Clã. A raiva lhe subiu à cabeça com a simples referência da entidade administradora da segurança humana na província e a mãos fecharam-se em punhos antes mesmo que digerisse totalmente o assunto. Não poderia simplesmente deixar que eles pensassem algo mal dali por sua causa. Não daria o poder a ninguém de noticiar alguma falha de sua Lavender, ou mesmo manchar o nome da cidade que tanto amava. Lianna sabia como o administrador local poderia usar de um fato como esse para machucar pobres inocentes e isso era uma coisa que ela não permitiria.

Então, ela decidiu precisaria checar aquilo. E logo.

A pressa percorreu as suas veias quando uma luz amarelada despontou no horizonte e os filetes luminosos em seu quarto se atraíram em direção deste, muito similar ao chamado que os espíritos o faziam no equinócio que marcavam o fim de cada verão. De certa forma, seu estômago se contraiu, como se possuísse mil astros dançantes e multicoloridos em seu interior ou algo do gênero, pois tinha certeza de que quase tropeçou nos próprios pés rente a janela no pular, ao compasso de que a primeira passada apressada a levou para as ruas e também mais para perto do objeto cadente. Este, todavia, parecia seguir a mesma rota que ela de uma forma nada complacente.

Seus olhos então voltaram-se aos grãos de poeira que se prendiam e se despregavam da superfície pequena e iridescente que de tão longe vinha de encontro marcado com ela, como se Lianna tivesse um alvo nas costas e necessitasse de ser perseguida. Rapidamente, ela acompanhou, o brilho desviou-se das cadeias de montanhas e mergulhou em voltas indefinidas, muito embora parecesse conhecer o território de Lavender e saber de cor e salteado caminho direto até ela. Até ela.

O menina apressou a corrida e não tirou os olhos dos desvios helicoidais desengonçados e outros tantos mais imprecisos ainda, mas sua vista treinada só parecia destacar o quão cativante era a entrada daquela coisa nos escudos invisíveis, não os seus perigos; como ela atravessara todas as defesas sem perder velocidade desde as primeiras depressões, e não como Lianna se arriscava em chegar perto daquilo; como a magia que protegia Lavender se dobrava em torno de um espaço para ceder no instante em que apontasse por perto o objeto não identificado. E nenhum dos seus sentidos gritava para ela o que estava óbvio: Fuja, rápido.

Tão similar quanto as aparições em seu quarto ou minúsculas fadas de luz, o brilho hipnotizante parecia exalar uma sensação reconfortante em sua queda, assim como o cheiro da comida da mãe de Luran e a ideia do aconchego de um abraço apertado de seu não-tão-esquecido amante dos sonhos. Parecia ordenar a menina a se manter na estrada, abobalhada e completamente dependente daquela rota, com os sentidos ludibriados e sem poder fazer nada além de seguir e esperar que alguma resposta caísse junto dos céus.

Mas Lianna entendeu o que se passava alguns segundos depois e sua respiração entrecortou ao sentir o gosto de magia antiga em sua boca. Ela liberou parte de uma oração ao vento, mesmo que não houvesse a direcionado à um deus específico. Ela sabia que, embora aquilo houvesse atravessado as proteções das famílias ancestrais, seu orgulho não permitiria que algo simplesmente ultrapassasse os poderosos escudos da cidade e chegasse ileso até o chão. O que ela não admitiria, também, era que estava intrigada demais para se dar ao luxo de ignorar e aguardar, ou mesmo dar meia volta. Então avançava.

Só que Lavander estava mais silenciosa do que outros dias, como se para lembrar a Lianna as horas ou o risco. Se também seguia mais apagada do que de costume, ela não percebeu, mas isto era um fato desde que, de onde estava, nem se podia ver sua amada casa dali, pois esta já estava há muito ensobrada em conjunto com os ladrilhos no longínquo e íngreme fim da rua.

Suas pernas compreendiam passadas fortes e seus sentidos estavam alerta em sua travessia, aguardando um impacto ou som além do conforto ao qual lutava contra. Quando um vento de arrepiar até os ossos a ultrapassou, ela percebeu como ainda estava longe e que tinha os cabelos negros diante aos olhos. E, embora a curandeira não tenha sofrido em nada com os efeitos da travessia do ar, o corpo brilhante não tão longe assim, sim.

O clima se seguia fantasmagórico, Lavander por pouco não parecia um extenso território assombrado por seu vislumbre pálido que entrecortava vielas em uma velocidade sobre-humana, insana. Dos lampiões prostrados em postes borrados, poucos estavam realmente acesos, tornando a percepção dos fatos ainda mais comprometida. Lianna sabia que poderia muito bem se misturar nos becos, mas discrição era desnecessária nesse exato momento.   

As pessoas dormiam em suas casas, ela as podia ouvir ressonar. Mas também não podia interferir. Não podia gritar ou chamar por alguém. Não podia causar problemas que não pudesse resolver sozinha, não agora. E Lia estava concentrada demais no que fazer e não fazer que não percebera o desvio irregular no caminho do orbe de ouro por conta do ar gélido de antes, que por pouco não resultara em um raspão entre os dois. A barreira psíquica da rua mais bem protegida parecera um pedaço de nada quando, em nanosegudos, se dissolvera e Lianna enfim se atentou que a curva da brisa arrastou a bola incandescente contra sua vontade.

E ela ficou consciente de que, seja lá o que aquilo fosse, embora não pudesse ser muito maior do que um cão de caça adulto, deixou uma trilha de poder pela estrada que a fez parar de respirar com o odor, obrigando seus joelhos fraquejarem como nunca tinham feito antes. Talvez não tivesse percebido nada tão forte por conta dos cristais que carregava no bolso ou Mew tivesse sido misericordioso para consigo, ou... Ela tentava inutilmente se explicar as coisas, mas o que chegara a concluir era que nunca havia sentido algo como aquilo, talvez nem perto dos mascotes dos membros do Clã. Aquilo estava contido, sim, e não lhe fizera nenhum mal por muito pouco, por muita sorte.

Mas o que resplandecia, ainda além da recém descoberta respiração entrecortada e dos sentimentos confusos que a soerguia, era algo que crescia em seu peito, instigando-a cada vez mais.

Então repentinamente sua mente começou a desprender artimanhas e técnicas de rastreio, uma vez que parecera enfim tomar ar o suficiente para processar como aquilo sumira reto pelo escudo que protegia o território às suas costas. Todavia, nada podia sobrepor aquela silente, mas crescente euforia que arrebatava os seus sentidos e pulmões. Até que, afinal, o tiro dourado acertara seu alvo a poucos quilômetros dali. A floresta proibida.  


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler até aqui! :D



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