Rebel Mermaid escrita por nekokill3r


Capítulo 28
O retorno do garoto tímido




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Voltando para o meu objetivo por ter saído de casa, obrigo minhas pernas a irem até o cemitério todo branco por conta da neve. Limpo a lápide do meu avô e fico ali em pé, sem fazer nada além de observar seu nome, então decido que é digno que eu ao menos diga alguma coisa.

 —– Avô... houve um tempo em que eu não conseguia entender por quê o senhor sempre estava tão deprimido e sem esperanças, e por anos tentei entendê-lo para poder te ajudar de uma forma mais eficiente... —– começo com a voz falhando. —– Passei tantos, tantos anos procurando por uma razão para saber por quê só ficava na cama, por quê nunca me buscava na escola, por quê nunca brincava comigo, por quê às vezes me deixava dormir com fome pois não conseguia ter ânimo para nada, por quê não se alegrava com os desenhos que eu fazia de nós dois. —– Sinto as lágrimas começando a escorrer. —– Antes eu costumava chorar, sabia? Porque eu achava que os desenhos fossem feios ou que eu falava demais, por isso o senhor não me dava nem mesmo um sorriso. Porém, agora que me transformei no senhor, eu entendo... entendo o vazio, o desânimo, os pesadelos mesmo estando acordada, a vontade de ficar na cama para sempre, como é ficar dias sem conseguir nem mesmo tomar um banho, ter de comer comida estragada por não conseguir sair na rua, não conseguir limpar a casa ou ao menos dar um passo para fora pra ver o sol. Agora eu entendo como se sentia e percebo como o senhor não poderia fingir que estava alegre, ainda que fingisse. Mas, só por uma vez, eu queria que o senhor tivesse tido voz porque assim poderia me dizer como conseguir sobreviver aos dias cinzentos em que nada faz sentido, ou às noites em claro que as memórias me atormentam ao ponto de fazer meu coração doer e talvez até como me alimentar um pouco mais ainda que meu estômago não sinta necessidade alguma nisso. —– Respiro fundo para continuar a falar. —– Avô, agora eu moro sozinha na Aldeia dos Vitoriosos. Sou a única pessoa que ficou lá, porque nossa antiga casa foi demolida. Não tenho para onde ir, não tenho ninguém para confiar de verdade, não tenho nada além de uma casa gigantesca e um dinheiro que não sei onde vou usufruir. De vez em quando penso se o senhor ficaria feliz em me ver sendo uma vitoriosa, mas sei que não imaginava que eu voltaria viva, não é? Por isso chorou na última vez que foi me ver, pois até mesmo o senhor sabia que eu voltaria dentro de um caixão. Eu queria ter voltado, só que as coisas não funcionaram assim. Talvez eu poderia estar falando isso olhando para o rosto do senhor, porém, graças às minhas rebeldias, fiz com que o matassem. É culpa minha que tenha morrido, avô... —– Olho para o chão com os ombros balançando pelos soluços. —– Mas ao mesmo tempo me vejo dividida entre o que seria mais doloroso: voltar dos Jogos e saber que havia partido sem que eu pudesse vê-lo antes que isso acontecesse ou ser uma rebelde odiada pela Capital e saber que eles o torturariam para calar a minha boca? As duas doem muito, e um lado de mim se sente aliviada que o senhor tenha partido antes de ver o caos que me tornei. Eu gostaria de te comprar tantas coisas, aqueles moletons grossos que o senhor tanto amava, o seu suco de uva favorito, talvez poderíamos até viajar para algum outro Distrito... —– Soluço tanto que percebo que não vou conseguir mais fazer isso. —– Me perdoe, avô, tudo isso foi culpa minha... me perdoe...

Saio de lá correndo tanto que quase escorrego na hora de passar pelo portão enferrujado, o que me faz parar por me sentir tonta.

A neve começava a me afundar quando resolvo ir para casa, ainda com a tão comum dor no coração e na alma. Dessa vez caminho lentamente de cabeça baixa enquanto continuava chorando, sempre tentando não esbarrar em ninguém.

—– Krystal! —– ouço meu nome e me viro assustada, secando os olhos com os dedos.

Logo imagino que seja mais alguém da Capital pronto para me prender e me levar de volta para aquele inferno, mas conforme vou o reconhecendo no meio de tantos flocos que caíam foi quase inevitável não me impressionar; ali estava ele, o dono da voz que eu pensei que havia me abandonado, aquele que sequer tinha esperanças de rever algum dia. Meu coração acelera da mesma forma de quando sentamos juntos pela primeira vez na escola.

—– Você está vivo... —– murmuro o olhando, ainda muito surpresa por ele ter voltado para casa.

—– Sim, assim como você... —– retruca Ethan sorrindo para mim. —– De onde estava vindo?

—– Do cemitério, gosto de ir lá quando chega o inverno —– respondo vendo a fumaça sair da minha boca.

—– Não acho que seja um bom lugar para ir... —– observa ele, suspirando.

—– Desde quando você voltou? —– pergunto curiosa, vendo que estava com uma mochila.

—– Resolvi voltar hoje, faz poucas horas que consegui chegar —– responde ele, sorrindo de lado. —– Estava procurando por algum conhecido e parece que mais uma vez te reencontrei... mesmo de costas, não é muito difícil saber que é você.

—– Você tem algum lugar onde pode ficar?

—– Não... —– Ethan parece envergonhado, olha para o chão e depois para mim. —– Vou ver se consigo um trabalho como pescador até alugar alguma casa, nesse meio tempo não sei onde ficarei...

—– Pode ficar na minha casa, se quiser —– apresso em dizer de repente, sentindo o rosto queimar.

Há um silêncio de alguns segundos enquanto ficamos nos encarando, observo seus olhos azuis que tanto esperei para rever, as pupílas um pouco dilatadas e sua pele ligeiramente vermelha. Ele suspira como se não soubesse mais o que falar.

—– Não vai se sentir incomodada me tendo como companhia? —– pergunta Ethan e quase lhe dou um tapa.

—– É claro que não! Moro sozinha, a casa é muito grande para só uma pessoa —– respondo sorrindo dessa vez para dar mais segurança para ele. —– E ter alguém que conheço vai ser bom, pelo menos tenho certeza de que você não vai me acordar com uma arma apontada para minha testa.

Eu sorrio novamente, mas dessa vez me sinto estranha. Todas as piores torturas que sofri na Capital parecem passar na minha cabeça em segundos, me fazendo piscar repetidamente para não começar a chorar. Ethan segura no meu braço, agora estamos tão perto que quase encosto meu nariz no dele.

—– Krystal... você ainda pensa muito no que aconteceu? —– pergunta ele com o rosto sério.

—– E como eu posso não pensar? —– pergunto de volta, sentindo as lágrimas quentes escorrerem por meu rosto que parecia ter congelado.

—– Você parece tão, tão cansada... —– observa, olhando meu estado deplorável. —– Há quanto tempo não dorme?

—– Acho que desde que voltei para casa, há quase um ano... —– respondo pausadamente, tendo dificuldade de saber quanto tempo meu cérebro estava ligado me relembrando dos meus pesadelos. —– Não posso dormir, não consigo.

—– Você precisa dormir... —– concerta ele. —– Estou cansado também, faz alguns dias que tenho tido insônia desde que decidi voltar para cá... se você me servir um bom café, talvez eu consigo te fazer dormir sem pensar em nada...

Mais um momento de silêncio, mais olhares confusos entre nós dois. Ignoro tudo o que ele disse, fazendo a única pergunta que queria de verdade desde que chamou meu nome.

—– Por que você realmente voltou?

Ethan parece sem graça e olha para vários lugares por conta da vergonha, mas eu continuo a observá-lo sem parar, procurando a razão de ele estar ali, a razão de ter deixado o que já havia construído na Capital, a razão de desistir de tudo por minha causa. Ele passa a língua nos lábios, ainda olha para o chão todo branco mais umas vezes e me faz quase perder os sentidos quando sua voz sai de forma tímida.

—– Para te ajudar, para cuidar de você. Para não permitir que você queira ver a morte antes da hora, para não deixá-la se afogar na solidão e no isolamento. Para estar perto de você, para te dar esperanças mesmo que tudo pareça perdido... para te fazer acreditar que não tem culpa de nada, para te ver sorrir mais uma vez assim como fazia a garota alegre de alguns anos atrás... a mesma que me apaixonei, a mesma que sou apaixonado por anos, a mesma que tenho certeza de me apaixonar por mais de séculos... e a mesma que está na minha frente.

Mas tem uma coisa faltando, uma coisa que espero muito tempo para ser capaz de escutar vindo de sua boca. Uma coisa que vai me fazer sair do vazio que me enfiei, uma coisa que talvez seja capaz de fazer eu me sentir bem sem precisar sem dopada.

Então eu levo a mão até o aparelho no ouvido, com a visão embaçada por causa das lágrimas. Ele percebe o que quero e me abraça, sussurrando em meu ouvido:

—– Porque eu amo você...

E ele conseguiu me fazer dormir naquela noite.

(...)

Desde que Ethan desistiu de tudo novamente por minha causa e com muita dificuldade voltou para mim, aos poucos tenho melhorado, pois sua companhia era algo que eu tanto ansiava que percebi que nem mesmo os remédios mais fortes poderiam surgir efeito como sua risada cheia de timidez, seu rosto sonolento da manhã antes de sair para pescar, seus dedos gélidos e trêmulos em contato com o meu rosto e, finalmente, a repetição da frase que mais adoro ouvir dele: eu amo você. Nesse meio tempo não conversamos sobre um futuro pedido de namoro descente e nem sobre a possibilidade de um casamento, percebo que às vezes ele deixa exposto que quer falar sobre essas coisas, mas prefiro deixar tudo como está agora sem esquentar a cabeça com nada.

Levou no mínimo três meses para que eu me acostumasse com sua presença, mais dois por vê-lo deitado no sofá todas as tardes e mais um por ter sua companhia na cama gigante. Mas me adaptei facilmente com os banhos que me dava quando não conseguia nem sair do mesmo lugar sozinha, da comida que fazia questão de me dar na boca cada vez que percebia que o dia havia começado terrível, dos carinhos e abraços nos momentos em que começava a pensar tanto que o resultado disso eram soluços no meio da madrugada e da alegria por estar junto comigo a cada dia. Além disso, Ethan entende que há dias em que vou querer conversar até ficar rouca e em outros simplesmente deitarei de costas e não faz nenhuma pressão quando me encontro nesse estado.

Ele sente muito a falta da família, mais do que eu poderia sentir. Inúmeras foram as noites que nos deitamos para dormir e o escutei chorando baixinho, sempre pelo mesmo motivo. Em uma madrugada me contou sobre o pai violento que batia nele, na irmã e principalmente na mãe, o que o deixava tão mal que sequer tinha voz quando as agressões aconteciam o fazendo se sentir culpado por não conseguir fazer nada. Houve uma vez em que estávamos passeando pelo distrito e encontramos a irmã dele com o marido, Ethan quase saiu para abraçá-la, mas antes que pudesse fazer isso ela deu as costas e foi embora; ele ainda chora me perguntando por qual motivo sua única parente o trata como se sequer existisse, porém como também não tenho uma resposta tudo o que faço é o apertar em meus braços e repetir que tem a mim. E ele faz o mesmo comigo quando a saudade do meu avô aperta tanto que solto o café da manhã e desabo na mesa, chorando tão alto que quase o faz pensar que alguma coisa grave aconteceu.

Gosto dos dias chuvosos e frios em que vestimos moletons grossos e nos sentamos perto da porta vendo os pingos caindo, enquanto falamos sobre quanta quantidade de chuva é necessária para encher um mar, quanto tempo leva uma viagem do 4 para a Capital ou sobre como devíamos arrumar um bichinho de estimação. Meu momento favorito é quando os assuntos bobos acabam e saímos correndo debaixo da chuva, voltando para dentro tão encharcados que somos obrigados a tomar banho juntos rindo tanto que chego a perder o ar. E gosto ainda mais quando nos enfiamos debaixo do cobertor e Ethan me deixa perto de seu rosto o suficiente para sentir sua respiração, o que sempre acaba nos fazendo dormir sem perceber.

Enquanto ele trabalha como pescador, eu fico o dia todo em casa tentando não pensar nas coisas e nos momentos em que fica muito difícil de evitar as lágrimas, vou até a praia e fico lá até a hora de voltar de mão dada com ele. Embora tentasse convencê-lo de que não havia necessidade de trabalhar todos os dias por causa do dinheiro que eu havia ganhado, que ainda era muito, Ethan era teimoso e de vez em quando ia mais vezes só para me irritar de brincadeira, mas o que ele nunca deve ter desconfiado é que proponho isso para passarmos mais tempo juntos.

Nas manhãs em que precisa sair sempre é difícil deixá-lo ir, porque o sentimento que ele não vai voltar me atinge bem forte, então fico puxando sua camiseta e pedindo para que fique, o que amolece seu coração e sempre o faz faltar no mínimo três dias seguidos. Em compensação quando volta, me lembra o meu médico especial pois costumava deixar recados como "não faça nada, eu amo você", "você é a minha vida, não acabe com ela", "eu amo você tanto que não sobreviveria saber que se foi", na intenção de que minha vontade de me machucar não fosse maior do que o afeto que sentia por mim, o que sempre acabava funcionando.

Todos os meses sofridos sem vê-lo foram recompensados de uma forma que em apenas uma hora, no primeiro dia que havia chegado, estávamos no sofá nos beijando sem parar. Mesmo com o meu estado tão deplorável, não pareceu se importar com o bafo ruim, com os dentes sujos, com ossos aparentes, com as unhas afiadas, pelo contrário, ele me ajudou a arrumar todas essas coisas e me manter limpa a cada dia de forma que eu não sentia tanta repulsa ao me ver no espelho. E me sentia o suficiente para ele, alguém que ele não vai trocar por causa das cicatrizes e por ter a cabeça fraca.

Fora hoje a tarde quando Peeta me ligou e propôs a ideia de chamar todos os outros vitoriosos para passar o Natal na casa dele, eu achei algo magnífico já que não os via fazia tempo, e ele me disse que eu e Ethan poderíamos ir a qualquer momento que as portas estariam abertas.

Mas quis esperar ele chegar do trabalho primeiro antes de dar certeza. Por isso fiquei esperando no sofá agoniada pela demora e pulei em cima dele quando abriu a porta, o que o surpreendeu e me apoiou com os braços rindo e me apertando.

—– Tenho uma novidade para você —– anuncio me apoiando em seu pescoço. —– Temos um lugar especial para passar o Natal.

—– Mesmo? Aonde? —– pergunta ele curioso, se sentando comigo ainda em seu colo.

—– No 12, Peeta me ligou e disse que quer reunir os outros —– respondo enquanto tento resistir a tentação de lhe dar um beijo. —– Você quer ir?

—– Você quer ir? —– questiona ele de volta o que eu ainda não havia pensado. —– Primeiro precisa ver isso, se quiser, sabe que vou para qualquer lugar que desejar.

—– Bem, eu acho que quero ir sim... não faz mal, não é? —– digo conforme reflito sobre a ideia. —– Vamos sair um pouco dessa casa, além de rever os outros que estou com saudades. E tem Annie, ela sempre quis mostrar o Finn para todos.

—– Está bem, então iremos... —– concorda ele sorrindo.

Ficamos um olhando para o outro, até que ele se aproxima e me beija, depois eu o abraço me deitando no sofá. Ele está tão perto de mim que quase sinto meu rosto queimar.

—– Você tomou banho hoje, Krystal? —– pergunta ele com a voz séria e uma careta engraçada. Eu nego com a cabeça. —– Você me prometeu que iria tomar sem a minha ajuda, sabe o que isso significa? —– Nego de novo. —– Que eu vou te jogar debaixo daquela banheira agora!

Eu começo a rir e saio correndo pela escada, mas não é o suficiente pois ele era mais rápido. Me pega nos braços fazendo cócegas com a boca na minha barriga, o que quase me faz gritar de tanto rir, depois tira as minhas roupas delicadamente e quando entro na banheira com a água morna, suspiro sorrindo satisfeita.

Enquanto o vejo ensaboando minhas costas, molhando meu cabelo e limpando a sujeira por baixo das minhas unhas, algo sai sem que eu possa evitar.

—– Eu amo você. —– E tapo a boca como se aquilo fosse algo muito errado.

Ethan sorri para mim, e tira a minha mão para me dar um beijo e dizer o que tanto gosto de ouvir.

—– Eu também amo você.


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