Rebel Mermaid escrita por nekokill3r


Capítulo 27
A doação por aquele que não voltará à vida




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Estava chovendo um pouco quando me levantei essa manhã.

 As noites de sono já não existiam mais; eu sequer sabia o que era conseguir fechar os olhos e dormir uma madrugada inteira sem pensar que poderia estar sendo vigiada, me assustar com qualquer pequeno barulho achando que pode ser tiro ou imaginar que algum bestante sempre está pronto para me atacar quando eu menos esperasse. Antes tentava muito dormir, quase obrigava meu cérebro a desligar, mas depois comecei a deixar que as memórias me atravessassem de forma que eu mal conseguisse ver uma razão para ainda estar respirando.

Mesmo tendo alguns meses morando sozinha, acabei deixando minha casa virar um grande lixão; copos e pratos espalhados pela pia, sujeira era vista no chão e nos sofás, o mal cheiro podia ser sentido de longe, além de várias outras coisas que eu não conseguia fazer. Tentava me esforçar ao máximo, mas era tão difícil quanto aproveitar o meu resto de tempo de vida. Pelo menos, minha cama era o único lugar que eu mantinha impecável. Às vezes Annie me visitava, bem raramente mesmo, e tinha a mania de limpar a casa para mim enquanto eu brincava com o pequeno Finn —– e embora ela dissesse que não estava fazendo aquilo por obrigação e sim por que queria me ajudar, eu não conseguia tirar da cabeça a ideia de como ela sentia mais pena de mim a cada vez que abria a porta daquele lugar.

Fazia algum tempo que nem mesmo eu ouvia minha voz, porque não convivia mais com as pessoas. De vez em quando Peeta me ligava, o que me fazia saltar do sofá de susto pois eu não me lembrava que tinha um telefone até ele tocar, e me contava como estava sendo sua vida no 12 agora que tudo está em paz. Ele dizia que estava muito feliz por ter conseguido ficar junto de Katniss e que aos poucos estavam reconstruindo o que haviam derrubado, eu tentava também ficar feliz, mas sentia uma pontada de inveja por ver que todo mundo estava conseguindo seguir em frente, menos eu.

E quando estava perto de desligar, Peeta sempre me perguntava "Você está bem?", e eu sempre travava para conseguir responder e invertia a pergunta, escondendo um pouco mais tudo o que estava passando. Sei que deveria contar o meu estado, mas era difícil simplesmente dizer que eu estava deprimida ao máximo, que não via razões para mais nada, que não tomava banho a quase uma semana, que tinha perdido no mínimo dez quilos e que estava perto do suicídio. Era muito difícil dizer tudo isso. E agora, ele sendo um responsável que precisa trabalhar mais do que ligar para os velhos amigos traumatizados, o sentimento de que eu estaria o incomodando era maior que a vontade de desabafar.

Minha situação estava muito precária, digna de se sentir pena. Meu cabelo estava sujo a quase dois meses, às vezes conseguia escovar os dentes quase todos os dias, minhas unhas ficaram gigantes, as roupas estavam caindo por conta da magreza que adquiri, as olheiras me faziam parecer que havia levado socos nos olhos e sequer sabia quanto tempo não via minha imagem no espelho. Minha vida toda não fui uma garota que se importava com aparência nem com me arrumar para parecer apresentável, mas sabia, mesmo não sabendo de verdade como me encontrava, que eu estava semelhante a um esqueleto e parecendo uma morta-viva.

O inverno havia chegado com a mesma velocidade que os trens, fazendo eu me lembrar que devia ir ao cemitério. Particularmente não gostava de ter de andar no sol porque me cegava e eu, com meu estômago sempre vazio, acabava passando mal e voltava correndo para casa, então as visitas ao lugar fúnebre são apenas quando sinto frio ao ponto de ficar com as unhas roxas e ver meu nariz vermelho, pois tinha certeza de que não me sentiria tão mal no caminho.

Sentada na cozinha vazia e silenciosa, olho ao meu redor para a casa que mais me parece uma mansão de verdade. Era muito grande para mim, talvez por isso os corredores parecessem eternos. Eu não gostava de ficar muito tempo em um cômodo só porque sabia que faria com que eu pensasse mais do que deveria, então ficava andando o dia todo de um lado para o outro sem direção certa.

Indo em direção a sala vejo um desenho meu na parede, um presente que Peeta me deu quando dei a notícia que voltaria para o 4 e fiz questão de guardar. Era uma imagem minha sentada na praia, quando estávamos na arena e contei sobre nunca ter beijado ninguém, eu estava rindo olhando para Finnick, com o cabelo preso em um rabo de cavalo já quase todo desfeito e com o arco que tive de aprender a usar nas costas; mesmo sendo meio doloroso de olhar eu quis ficar com a pintura porque me lembrava dos poucos momentos em que fiquei alegre naquele lugar, fazendo eu tentar acreditar que ainda iria voltar a sorrir como no quadro.

Agora obrigo meu corpo a ir até o banheiro, ligando o chuveiro e também aproveito para lavar meu cabelo —– estava congelando e eu poderia ficar doente, só que isso não me incomodava mais. Meus braços doem pelo esforço que preciso fazer para desembaraçar os fios que também cresceram muito, mas tenho uma sensação de estar mais limpa quando me enrolo na toalha. Visto dois moletons grossos e uma calça desgastada, junto com o tênis sujo. Ainda fico um tempo andando de um lado para o outro reunindo coragem para poder sair, porque quando chegava na porta não conseguia sequer abri-la.

A ideia de desistir se passa muitas vezes na minha cabeça, mas antes que eu consiga pensar já estou do lado de fora terminando de trancar minha coleção de cadeados. O frio e o nervosismo me fazem tremer conforme começo a me distanciar de casa, sempre tentando dizer a mim mesma que era tarde demais par voltar.

O 4 continuava o mesmo, de certa forma. Talvez não tanto por causa da neve que fazia tudo parecer mais parado e calmo, mas as pessoas ainda andavam conversando animadas e de mãos dadas, e eu permanecia de cabeça baixa para que ninguém visse de onde saí ou quem eu era —– não me sentia incomodada por me pararem e falar várias coisas sobre Jogos, arena, Capital, coragem e vitória, e sim de como me tratavam como se fosse um prêmio ter saído viva, como se fosse mesmo um ato digno de se alegrar. A escola continuava a mesma desde a última vez que a vi, as padarias que sempre estavam abertas também parecia igual. E ver aquilo me deu a sensação de que foi como se nada nunca tivesse acontecido ou mudado, quando na verdade acreditar nisso era estar enganando a mim mesma.

Meu único objetivo era ir até o cemitério, ficar algumas horas olhando para o túmulo em silêncio e depois voltar, com a certeza de que nunca mais sairia até o próximo inverno chegar. No meio do caminho, algo me chamou a atenção; um homem de cabelos já grisalhos andava de mãos dadas com uma mulher de cabelos castanhos claros, como se ela não conseguisse caminhar sozinha. Se eu não os conhecesse por vê-los nas reuniões da escola jamais saberia quem eram, mas aqueles eram os pais de Josh, quase irreconhecíveis pela diferença de quando havia os visto há alguns anos. Sua mãe, antes tão jovem e sorridente sendo conhecida como uma das mulheres mais bonitas do distrito, agora tinha um olhar confuso e perdido, com seu rosto magro que quase fazia seus ossos saltarem para fora. E seu pai, que antes também era sorridente e tão gentil com todos sendo conhecido como uma ótima pessoa, agora tinha uma aparência decadente e o sofrimento dos anos lhe fazia parecer mais velho do que sua verdadeira idade.

Confesso que fiquei quase sem reação, os observando se aproximar cada vez mais em minha direção. Eu não queria que, de todos, logo eles me vissem, então me viro rapidamente para o lado de um senhor que estava tirando neve de dentro do sapato. Consigo ouvir a voz do pai de Josh passar perto de mim e abaixo mais a cabeça, quase a enfiando no chão branco.

Continuo os olhando de trás, com uma certa curiosidade. Algo certamente deve ter acontecido para que ficassem assim e, embora jamais quisesse ser intrometida, queria muito descobrir a razão por estar quase tão destruídos quanto eu. O senhor ainda estava ao meu lado, em silêncio, concentrado em sua bota. Resolvo perguntar para ele, porque no 4 ninguém é desconhecido e todos conheciam uns aos outros.

—– O que houve com ela? —– pergunto tropeçando nas palavras, ainda olhando para aquela cena.

—– Ah, aquela moça? —– Ele também dá um olhada para frente e depois se volta para o que estava fazendo. —– Ela ficou fraca da cabeça depois que o filho dela morreu na arena, dizem que nem conseguiu ir no enterro. Só o marido que trabalha agora porque ela não consegue fazer mais nada, e ele tem de ficar a levando junto pro serviço daquele jeito sempre porque às vezes ouviam ela gritar o nome do menino sozinha em casa.

Por um segundo enquanto ainda ouvia o senhor falando, a imagino na praia vendo o marido trabalhar, sentada na areia esperando que o filho que vi morrer voltasse. Um enorme sentimento de culpa me invade, me fazendo ter vontade de chorar ali mesmo. Fico aliviada por ela não ter me reconhecido, porque eu jamais conseguiria olhar em seus olhos sabendo que um dia já tive a oportunidade de trazer Josh de volta para casa como um vitorioso, mas ao invés disso tudo o que fiz foi empurrá-lo para a morte.

Me recordo bastante de Josh. Ele sempre foi popular na escola por seu rosto bonito e a boa educação que tinha, seu nome estava na ponta da língua de todas as garotas e era inevitável não saber quem ele era. Seus cabelos e olhos castanhos claros, os buraquinhos em suas duas bochechas, os cílios grandes, as sobrancelhas quadradas, o nariz um pouquinho erguido —– o que eu brincava dizendo que ele parecia um porco —–, o rosto fino e a sua voz suave... tudo isso fez com que a sua vida toda todos se apaixonassem sem nem mesmo antes conversar com ele.

Quando fomos para a Capital, Josh fazia muito mais sucesso do que eu não somente por sua aparência, mas também por ser comparado à um anjo por seu bom comportamento e o jeito tão gentil de ser. Já havíamos conversado uma vez quando eu havia ido na biblioteca e acabei deixando vários livros caírem sem querer e ele me ajudar, me dando um sorriso; era estranho como, mesmo sendo quase uma celebridade, Josh me tratava tão bem pois os meninos geralmente quando não estavam falando mal do meu avô, ficavam me lembrando o apelido que haviam inventado para mim por ser "a garota mais feia da sala".

Sinto muito a falta dele até hoje e saber que jamais verei aquele anjo outra vez me dói de verdade. E acho que vou carregar a vontade de ter bebido aquele veneno primeiro o resto da minha vida junto comigo, apenas para me relembrar o preço de não seguir as regras.

—– O senhor sabe onde eles moram? —– pergunto voltando o olhar ao idoso, percebendo na minha visão embaçada pelas lágrimas que estou tentando não deixar cair.

—– Perto da praia, uma casa um pouco velha verde —– responde ele, ficando de pé ao meu lado. —– Uma catástrofe de verdade todos aqueles Jogos, não eram?

Fico sem saber o que dizer. Ele olhava para mim, mas não parecia saber quem eu era. Será que eu estava muito pálida ou magra desde a última vez que saí de casa? Ou será que ele não havia me visto fazendo loucuras na Capital?

—– Sim... —– respondo somente, percebendo que só a menção daquele pesadelo me fazia mal. —– O senhor... bem... já participou?

—– Eu não, mas meu pai sim quando eu ainda era muito bebê —– conta ele com uma facilidade que chego a invejar. —– Ele se envolveu cedo com minha mãe, me tiveram ainda sem muita ideia na cabeça. Por estar já com dezoito e ser a última colheita, ele estava tranquilo sem pensar na possibilidade de que seria escolhido. E digamos que, ao invés de mim, a sorte não estava muito a favor dele.

Quero abraçá-lo, mas tenho muita vergonha para isso e fico ali, deixando as lágrimas escorrer sem me preocupar mais.

—– Sinto muito —– é tudo o que consigo dizer, passando a mão pelo rosto.

—– Oh, não sinta! —– exclama ele baixo e me lança um sorriso. —– Não existem mais nenhum desses Jogos, agora podemos dormir sem nos preocupar.

É verdade que tudo acabou, penso comigo mesma, mas seria bom se eu pudesse ao menos fechar os olhos.

Enquanto o vejo indo embora ainda me pergunto se ele realmente não me reconheceu ou se apenas não quis comentar alguma coisa por eu ter começado a chorar, e só então começo a refletir sobre o que disse. A Capital caiu. Os Jogos acabaram. As arenas foram destruídas. E com esses acontecimentos os títulos, os apelidos e tratamentos especiais também sumiram; já não existiria mais "vitoriosos", apenas pessoas que caminham de cabeça baixa, não conversam muito e saem pouco para ver o sol.

Aproveitando que havia parado de chorar, obrigo minhas pernas a voltar até minha casa e pegar minha antiga mochila que usava para ir à escola —– que fiz questão de guardar como uma lembrança do meu avô —–, a enchendo de dinheiro até que não caiba mais. Rasgo uma folha de um caderno que ganhei de presente da minha antiga equipe de produção junto com a caneta, e mesmo com as mãos trêmulas consigo escrever:

Por aquele que não posso trazer de volta à vida

Não escrevo meu nome nem nada além disso, porque não quero que descubram quem foi e tentem entregar de volta. E saio com pressa, indo em direção a praia e procurando pela casa de Josh.

Com certa dificuldade consigo encontrá-la, mas estava muito mais destruída do que como o senhor havia me descrito. O telhado estava caindo e faltava quase dez telhas, a tinta das paredes já havia sumido quase por completo, a porta parecia estar aberta embora que trancada por um cadeado enferrujado e havia uma pequena placa com um peixe perto da janela, a mesma que colocavam quando alguém da casa morria. Com cuidado para não fazer barulho coloco a mochila escorada no portão do lado de dentro, a tapando com algumas folhas.

Imagino que devia ter ficado algum tempo parada olhando para a placa, pensando no dia em que a colocaram, pois de repente ouço vozes e preciso correr pelo outro lado para me esconder. Sinto um arrependimento por deixar a mochila para trás já que era algo importante para mim, porém acho que foi necessário ou alguém poderia passar por ali e levar embora.

—– Querida, desde quando esquecemos uma mochila do lado de fora? —– pergunta o pai de Josh assim que empurra o portão esbarrando o pé no meu presente. A mãe nada diz, apenas olha para baixo. —– Alguém deve ter a esquecido, vou levá-la mais tarde para a cidade para ver se encontro o dono.

Sua honestidade quase me faz gritar em negação, mas preciso me conter ou posso acabar estragando com tudo. Por sorte a mãe fica curiosa e pede, mesmo que com os olhos, que ele a abra.

—– Quer mesmo que eu a abra, querida? —– pergunta ele a olhando, e ela confirma de forma lenta com a cabeça. —– Está bem, faço tudo o que você mandar.

Não consigo deixar de me impressionar com a forma que ele a trata. Certamente ele a amava muito, pois mesmo sabendo que ela não conseguia raciocinar rápido ou falar sem parecer muito estranha, em momento algum perdia a paciência ou se irritava. Isso me faz lembrar muito de Josh, que também era gentil com todas as pessoas sem se importar com a maneira que se comportavam.

A reação dele me enche de alegria, coisa que eu já havia esquecido de como era. Primeiro ele lê o papel e fica sem saber o que dizer, mas depois simplesmente abraça a esposa e começa a chorar. Sei que suas lágrimas não são de tristeza pela primeira vez, depois de tanto tempo tendo só notícias ruins. Ele parecia tão aliviado, tão agradecido. Como se eu tivesse os salvado, como se com aquilo eu tivesse lhes dado alguma esperança. E nem todo o luxo que consegui ou dinheiro que guardei até hoje poderia fazer eu me sentir tão bem quanto isso.

Quando ele começa a se perguntar quem poderia ter feito tal coisa, eu saio rápido pois achava que estava fazendo muito barulho e poderiam me descobrir ali, mas uma parte de mim também estava em paz pelo o que havia feito. Coloquei dinheiro suficiente para eles passarem, no mínimo, o final do ano sem se preocupar com dívidas ou ter de ir trabalhar todos os dias seguidos.

E espero que, com isso, Josh possa me perdoar por não ter conseguido evitar que seu coração parasse de bater de forma tão cruel.


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