Espíritos de Call'aha escrita por Valvidal


Capítulo 2
1. Perigos da Floresta


Notas iniciais do capítulo

Olá novamentee. Este capítulo terá uma trilha sonora na primeira parte. Sempre que virem um termo ente parênteses, vocês têm que abrir numa nova janela. Espero que gostem!



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Os 7 Espíritos de Call’aha viraram parte da cultura e religião por povos de todos os lugares. Alguns o idolatram como deuses, alguns sentem medo deles, já outros apenas o tratam como mitos. Amah, o Espírito da Floresta, é conhecido por cuidar de todos os seres que vivem em seu ecossistema como seus filhos. Graças a ele, não falta comida a um animal sequer, vista a fartura da flora igualmente velada.

 

Encontra-se em Elkia, uma vasta mata que cobre grande parte do continente da Lua. Ao norte, inúmeros quilômetros quadrados consistem em um tapete verdejante de vida e magia. Lá, os elfos habitaram e ergueram suas cidades. Uma raça espiritualizada e sempre em equilíbrio com a natureza, louvando-a como sua mestra espiritual. Ao sul do continente, o deserto de Vaa abrigou os humanos, que sobreviveram ao impiedoso sol e à falta de água, graças à sua inteligência. Progrediram, com suas invenções tecnológicas, que logo fizeram toda Call’aha admirar-se. As duas raças, no entanto, discordavam em vários pontos culturais e religiosos. Não demorou muito para que uma grande guerra as envolvesse e durasse até os dias de hoje, tornando-as inimigas declaradas.

A lenda diz que um elfo e um humano tornaram-se amigos. Eles fugiram de suas cidades, onde seriam obrigados a lutar um contra o outro no campo de batalha, juntos a alguns poucos refugiados. Criaram um acampamento perto do litoral. Esse acampamento cresceu e se tornou uma vila, hoje chamada Vila Suspensa, onde as duas raças convivem pacificamente. Uma raça mestiça nasceu: os meio-elfos, dotados do intelecto dos humanos e sabedoria dos elfos.

(Aurora's Theme Flute)

Perto daquele lugar, dois jovens arriscavam aos perigos da floresta lado a lado. Eram irmãos, um elfo e outro humano, que diferiam-se muito um do outro. O irmão mais velho, humano, expressava seriedade em seu rosto o tempo todo. Sua pele negra era marcada por várias cicatrizes adquiridas em combate. Guardava na bainha às costas uma espada antiga por muitas vezes utilizada, e sua postura era a de um guerreiro preparado para um ataque surpresa a qualquer momento. Em contrapartida, o irmão caçula, ao seu lado, era magro, seu rosto verde estava repleto de infantilidade e não levava armas consigo. Apenas uma flauta, a qual tocava no momento, com sutileza nos dedos. Sua personalidade, aparência e comportamento representavam uma antítese por si só. Qualquer um que não os conhecesse jamais poderia adivinhar que eram irmãos de sangue. Entretanto, lá encontravam-se, seguindo uma trilha no meio da floresta.

— Você quer parar de tocar isso? Vai atrair predadores! – repreendeu o irmão mais velho, Eldwin, mal humorado.

O outro nem ouvia: estava ocupado demais soprando o instrumento e deixando que a melodia o embalasse. Ela o contaminava e o fazia mover-se com leveza, assemelhando-se a uma folha sendo guiada a esmo pela brisa. Enquanto Eldwin fazia o trabalho sujo de cortar os galhos do caminho com sua espada, Aman apenas o seguia, sempre com a flauta em mãos.

De repente, esbarrou nas costas do irmão, que havia parado inesperadamente e erguido o olhar para o céu. Deu uma pausa na música para recuperar o fôlego e perguntar:

— O que está fazendo?

Eldwin suspirou, impaciente.

— Verificando se estamos no caminho certo.

— E como você faz isso?

Antes de responder, o irmão mais velho voltou a andar, sem nem ao mesmo olhar para a cara dor caçula enquanto falava:

— O Sol se põe no Oeste, e o penhasco fica em direção ao Sul.

— Ah tá, agora tudo fez sentido para mim… – ironizou o elfo.

Eldwin revirou os olhos, mas parou ao perceber que Aman respirava fundo para começar a tocar a flauta novamente. Num impulso, tomou o instrumento de suas mãos.

— Por quê?! – perguntou Aman, indignado.

O humano nem se preocupou em responder, apenas continuou andando com o objeto fiscalizado.

A verdade é que nenhum dos dois queria ter vindo. Eldwin gostava da solidão, sentia-se como um lobo solitário, bem mais eficiente quando não havia colegas desajeitados para atrapalhá-lo. Já Aman odiava a floresta ou qualquer coisa que envolvesse perigo. Preferia mil vezes o conforto de sua casa, onde poderia tocar sua flauta em paz. E mais ainda: ambos não gostavam na companhia do outro. Eram diferentes demais, além de que haviam um passado conturbado. Porém, desde a morte de Je’en, sua mãe ficara apreensiva em deixar seu primogênito sair sozinho pela floresta. Pediu a Aman para acompanhá-lo. Este não viu como poderia ser de utilidade, muito menos Eldwin viu, mas nenhum deles contrariar a coitada. Portanto, lá estavam, controlando-se ao máximo para não se matarem.

Marchavam em direção ao penhasco, onde localizava-se o túmulo da amada de Eldwin. Por esse motivo dava-se o mau humor do rapaz, que estava sensível, mas também bravo com o irmão por não ter a delicadeza de perceber.

(Daemons)

Subitamente, um barulho provindo da folhagem interrompeu seus passos. Ambos ficaram em estado de alerta. Eldwin devolveu a flauta ao irmão para livrar suas mãos, que seguravam com força o cabo da espada. O ruído era acompanhado por um movimento suspeito de folhas, logo revelando-se uma fera à espreita. Ela saiu da vegetação com afinco, encarando-o ambos com olhos sombrios.

Era uma onça, com toda a sua majestosidade fatal, rugindo ferozmente e correndo em direção à presa mais próxima dela: Aman, estático de medo, sem saber o que fazer. Antes que qualquer coisa lhe acontecesse, Eldwin interveio, jogando-se contra o animal com toda a sua força. Este caiu para o lado, levando-o junto. Foi para cima dele, pronta para mordê-lo, mas o rapaz enfiou as mãos em seus dentes, impedindo que a boca se fechasse. Ambos travavam uma batalha de força, mas Eldwin estava perdendo. Ele gritou pela ajuda do irmão, que, relutantemente, correu para junto e empurrou o felino para o lado. Antes de ser atacado, Eldwin pegou sua espada e cravou uma ferida em seu peito.

O barulho do metal desvencilhando-se da carne sangrenta foi acompanhado de um rugido de dor. Os irmãos afastaram-se. A fera, furiosa, avançou em sua direção novamente, mas Eldwin lhe desferiu outro golpe, dessa vez no olho. Foi interrompida pela dor, desnorteada.

Enquanto a fera afastava o rosto, Eldwin notou algo extremamente estranho: a ferida em sua pele cicatrizava-se numa velocidade absurda. Era quase como… magia.

— Ela está… se regenerando?

— Vamos! – gritou Aman, puxando-o.

Ambos fugiram com toda a rapidez que as penas aguentavam. Num momento, o elfo parou e começou a subir em uma árvore. Eldwin fez o mesmo. Apoiaram-se num galho enquanto seu predador seguia o rastro, chegando até a árvore e batendo nela com suas patas.

— Ela está se curando. Impossível! – o humano comentou enquanto segurava-se firme ao tronco.

— O quê?

Ambos olhavam para baixo, temerosos.

— Acho que eu tenho uma ideia – avisou Aman, pegando sua flauta e começando a tocar a mesma melodia de antes.

Colérico, Eldwin tomou o instrumento novamente.

— Sério, agora? O que há de errado com você?!

O músico esticou-se para recuperar seu pertence.

— Não é isso! Pelo amor de Amah, confia em mim!

Eldwin debatia-se para manter o objeto longe.

— Eu? Confiar em você?

Num acidente, a flauta caiu na onça, distraindo-a. Eldwin ficou satisfeito.

— Até que não foi uma ideia tão ruim.

Ela começou a farejar o objeto. O humano aproveitou para jogar-se com tudo. Sua espada cravou-se bem no pescoço do animal, decapitando-o na hora. Sua cabeça rolou para longe enquanto o sangue se espalhou por toda a grama. Aman desceu e procurou por sua flauta. Encontrou-a esmagada por uma pata. Recolheu os fragmentos de madeira.

— Olha o que você fez! – acusou o irmão.

— Pelo menos para alguma coisa serviu esse lixo – retrucou Eldwin, mais preocupado com a cabeça da fera. Examinou-a e disse a si mesmo: – Sem um arranhão…

— Não dá para salvar – Aman continuou se lamentando enquanto fitava o que restou de seu precioso instrumento nas mãos esverdeadas – Impossível.

— Vamos. Ainda está com as flores que colhi aí?

Não houve resposta por parte do outro, revoltado com a apatia do irmão.

— Quem liga para a merda das suas flores? – berrou.

— Faz silêncio! – ralhou Eldwin, sussurrando – Você quer que outra onça apareça?

Sem contra-argumentos, Aman suspirou e lhe entregou as flores que guardara na mochila. Em troca, recebeu a cabeça do animal, a qual recebeu com nojo, mas levou pendurada a uma rede de pesca nas costas. Voltaram a caminhar na mesma direção.

— Por que você quer levar um troféu? Já matou centenas dessas.

— É… mas essa é diferente. Vou levá-la ao Ancião quando voltarmos.

Sem entender, o elfo manteve-se calado. Eldwin voltou a analisar o céu, para saber quanto tempo haviam perdido. O sol estava quase a se por...



Bo’han Torvine chegou à Vila Suspensa aos vinte anos. Era o lugar perfeito: pacífico, sem o caos da cidade grande, e sem o preconceito ridículo por humanos que encontrara a vida toda em Nova Áurea. Foi bem recebido pelos moradores e, logo, virou praticamente um deles. Suas habilidades de guerra foram de ótima utilidade para os Guardiões, o que ajudou a conseguir rapidamente um emprego. Mas, o que mais obtivera sorte foi com o amor: encontrou Mellvile, a humana mais bonita a qual já conhecera. Poucos anos depois, estavam casados e com duas filhas. Eram as crianças mais bonitas do mundo. E as mais sortudas. Nenhum pai tratava as filhas com tanto carinho como Bo’han. Amava a filha Marie, gentil e querida, mas passava a maior parte do tempo com a caçula: Je’en. A garota adorava as histórias que o pai contava sobre guerras, sobre sua rotina como guarda da vila, e admirava de longe suas armas e armaduras. Gostava de imitar seus golpes de luta e estratégias. Dizia a ele que sonhava em tornar-se uma espadachim tão forte e sábia quanto ele. O homem dizia que, qualquer dia, quando crescesse, a ensinaria tudo que lhe foi ensinado. Mellvile, a mãe, não queria que a filha passasse pelos riscos da guerra e desfazia as fantasias dos dois.

Alguns anos depois, Bo’han recebeu uma carta mágica. Abriu-a, surpreso, pois custava dinheiro para entregar uma. Era de sua irmã, que se casaria em alguns dias, em Nova Áurea. Bo’han preparou sua mala e da esposa. Hesitante, pediu aos Senraq, uma família de amigos, para cuidarem das filhas, pois meio-elfas jamais seriam bem-vindas à capital. Após uma dolorosa despedida, o casal despediu-se e partiu para a viagem.

Foi naquele tempo que Je’en conheceu os irmãos Senraq. Gostava de brincar com Aman, de rir de suas piadas e cantar junto a ele. Mas, de quem realmente havia virado amiga era Eldwin. No começo, o rapaz era tímido, mas, com o tempo, aproximaram-se de um modo inexplicável. Apaixonaram-se. Tinham apenas dez anos, mas juravam um ao outro que, quando crescessem, casariam-se, igual à tia de Je’en. Andavam lado a lado o tempo todo. Compartilharam seus gostos pelas lutas, pelos espadachins. Gostavam de recolher galhos de madeira e fingir que eram espadas. Espetavam-se durante a tarde toda, gritando frases de efeito bobas, terminando suados e cansados ao anoitecer, quando a mãe de Eldwin os encontrava e os obrigava a tomar banho antes do jantar.

Mas, a data do casamento da tia chegou. E, logo, um, dois, três dias passaram… Até que a próxima lua cheia apareceu no céu, e Marie e Je’en continuavam na casa dos Senraq. A sra. Senraq, um dia, sentou-se e falou ao sr. Senraq:

— Peça para mandarem um grupo de busca, querido.

Em silêncio, ele acatou. Não demorou uma semana: os guardiões chegaram com os corpos do sr. e da sra. Torvine. Aparentemente, haviam sido mortos antes mesmo de chegar à estrada, por alguma fera selvagem.

As irmãs choraram por várias luas cheias seguidas. Morariam com os Senraq a partir daquele dia, mas ninguém nunca substituiria o amor de seus pais.

— Quanto mais falta? Muito? Pouco? – perguntou Aman, como uma criança mimada, cansado de subir aquela ladeira, interrompendo os pensamentos de Eldwin.

— Acabamos de chegar.

(Prologue)

Ambos diminuíam a velocidade enquanto chegavam numa área sem árvores. Encontraram a beira do penhasco e o sol, mergulhando no horizonte, a quilômetros e quilômetros de distância. Os olhos de Eldwin encheram-se de lágrimas, o que ele nunca admitiria a ninguém.

Aquele lugar possuía a melhor vista de toda a floresta. Ele já havia perdido as contas de quanto tempo passou ao lado de sua prometida, sentado bem ali, admirando as ondas quebrarem bem abaixo deles e espumarem de volta ao local de origem – seja ele qual for. Aproximou-se da cruz de madeira à sua frente. Jaziam ali as flores da lua cheia passada, que já reduziam-se a adubo. Agachou-se para pôr as novas que segurava. Naquele momento, sentia-se só. Apenas ele e o espírito de quem já se foi. Nem a brisa fraca, que, de vez em quando, fazia as árvores farfalharem e levava consigo algumas folhas, nem mesmo a aquarela de lilás, laranja e rosa no céu ou o mar, adquirindo tonalidades escuras à medida que o sol desaparecia serviam de companhia.

—… Oi – começou, sem saber exatamente o que falar – Sinto sua falta.

Olhou para seu irmão, atrás dele, que lhe lançou um olhar encorajador.

— Bo’han nasceu semana passada. Ele é lindo, exatamente como você falou que seria… – agora, as lágrimas inundavam seu rosto. Ele apenas as deixou sair, apenas lavar sua alma – Hoje à noite será lua cheia, portanto, faremos o ritual. Ele será corajoso como você quando crescer.

Pausou um minuto para secar o rosto e se acalmar.

— Por que teve que me deixar? Está tudo tão difícil.

Um pouco de longe, Aman assistia respeitosamente. Nunca havia visto o irmão tão sensível antes. Ele sempre estava exibindo seu personagem frio e inabalável. Sentia pena e orgulho ao mesmo tempo. Havia pensado em tocar uma melodia para animá-lo, mas lembrou-se que não havia mais uma flauta.

No horizonte, o céu tornava-se azul-escuro e as estrelas apareciam para cintilar e fazer companhia à lua, solitária. Eldwin passou um bom tempo calado, apenas sentindo a companhia de seu amor.

— As pessoas continuam dizendo que você não partiu. Que seu espírito apenas se juntou aos milhares que existem na natureza, a nossa verdadeira casa. Eu sempre acreditei nisso, acreditei mesmo, até que isso aconteceu com alguém próximo a mim. É difícil se manter espirituoso numa situação dessas…

O rapaz parou um pouco para apreciar a linda lua, como ele outrora já fizera ao lado da garota. Alguns minutos depois levantou-se, com os olhos secos. Olhou para o irmão:

— Vamos.

Aman assentiu.

— Voltemos pela praia, para evitar acidentes como aquele, outra vez – sugeriu o homem de luto, recebendo consenso de seu irmão.

Acessava-se a praia após atravessar uma pequena restinga. A areia branca estava fria, e ambos possuíam dificuldades para andar sobre ela. Aman teve uma ideia: retirou os sapatos e correu para a margem do mar, deixando com que as ondas banhassem seus pés.

— Que merda você tá fazendo?

— Quantas chances ao ano nós temos de fazer isso, irmão? Vem experimentar!

Eldwin ignorou a infantilidade dele e continuou a andar pela areia. Prosseguiram o caminho com muito mais facilidade, sem obstáculos ou perigos eminentes. Ambos calados, longes um do outro e meio tímidos depois do clima pesado que os envolveu. A primeira coisa a quebrar o silêncio foi um grito de Aman, que assustou Eldwin e o fez correr na direção dele.

O que encontrou foi o irmão ajoelhado diante de um corpo, caído, na margem. Aman, meio em pânico, não sabia exatamente como proceder. O mais velho, num impulso, ajoelhou-se e empurrou-o, a fim de tomar partido das coisas.

Virou o corpo de barriga para cima e o que viu foi uma linda mulher abissal. Era jovem, gorda, parda e… desacordada. Observou-a e percebeu que estava respirando. Logo, iniciou uma massagem cardíaca, extremamente concentrado.

— Droga, se eu tivesse minha flauta agora…

— Você ia fazer o quê? Me dar apoio moral?

Ele continuou repetindo o processo de apertar, mas a garota não parecia recobrar a consciência de jeito nenhum.

— Eldwin, ela não se afogou! Como alguém com guelras se afoga?

— Você tem uma ideia melhor?

— O Ancião vai saber o que fazer.

— Ótima ideia. A gente leva ela para a Vila e, quando chegarmos lá, teremos um corpo morto.

Sem paciência, Aman ignorou a irritação do irmão e apanhou o braço da garota, pondo-o ao redor de seus ombros e tentando levantá-la. No entanto, era fraco e precisou da ajuda de Eldwin. Ambos levantaram-na e correram de volta para a Vila Suspensa.

Por muito tempo, o nome do Clã dos Minotauros foi sussurrado pelas ruelas da Cidade Cordilheira. Claro que cada boca acrescentava adjetivos que lhe convinha: “traiçoeiros” de um lado, “incríveis” de outro. No entanto, a verdade é que todas as informações as quais os cidadãos continham não passavam de meras especulações. Ninguém realmente sabia o que seus integrantes passavam a maioria do tempo fazendo, ou para quê a irmandade realmente servia. Sabiam, pelo menos, que seus componentes eram guerreiros brutais, lembrados ao longo da história por suas conquistas sanguinárias. Temidos criminosos usuários de machados, martelos e clavas, impiedosos, que retirariam a vida de inocentes sem sentir qualquer remorso. Seu líder, Malthar, fora um homem de notória força e poder invejados por seus aliados. Conquistou seu cargo ao matar o líder antigo, que havia matado o líder antes dele e, assim, sucessivamente, tornando-se respeitado pelos minotauros até os dias atuais.

Quando mais adulto, dera vida a cinco filhos. Todos homens, exceto pela caçula: Beuranie. Enquanto eles aprendiam a arte da guerra, a como manusear armas e eram premiados por brigarem uns contra os outros, sua mãe ensinava à garota a cozinhar, tecer e a limpar a casa. Um dia, no entanto, quando os homens saíram para uma lição de caça, ela fugiu sorrateiramente da professora e roubou uma das armas. Demorou-se a estudá-la, como um artefato mitológico, brincando de faz de conta. Fingia ser uma guerreira condecorada. Respeitada por aliados, temida por inimigos. Aquele se tornaria seu passatempo predileto durante os anos que se seguiam. Aos dias do vento, esperaria ansiosamente pelo momento em que seu pai chamasse seus irmãos para mais uma aula em campo para voltar às suas fantasias. Pelo anoitecer, quando eles voltavam com uma carcaça, ordenando a ela e à sua mãe que limpassem-na, esconderia rapidamente o objeto furtado para cumprir sua tarefa.

Enquanto tecia um balaio, uma vez, seu irmão Balthos aproximou-se e a convidou:

— Quer vir comigo à Ferradura?

A Ferradura era uma taverna onde vários guerreiros encontravam-se para brigar ou apostar em brigas. Por anos, Beuranie havia alimentado uma curiosidade sobre o lugar, almejando visitá-lo. Seu pai a proibia, justificando:

— Aquele lugar não é para moças.

Quando a oportunidade lhe sorriu, a garota não desperdiçou tempo pensando sobre. Abriu um sorriso e aceitou na mesma hora. Apenas não imaginava o motivo por trás da iniciativa do irmão, da qual seria informada no caminho: ele desejava participar de uma luta e precisaria de alguém para cuidar de seus machucados, depois. Ela protestou:

— Você está louco? Tem apenas quinze anos. Será massacrado!

— Sou o primogênito de Malthar, – explicou ele – o líder do Clã dos Minotauros. Preciso provar que mereço essa posição.

Beuranie suspirou. Se o irmão faria aquilo de qualquer jeito, era melhor que alguém, pelo menos, tomasse conta dele depois.

Chegaram ao estabelecimento. Do lado de dentro, era exatamente como a garota havia imaginado. Sujo, barulhento e cheio. Assim que entraram, Balthos cumprimentou alguns frequentadores, que lhe receberam com simpatia, mas olharam torto à moça.

— Quem seria a donzela? – perguntou um centauro musculoso ao lado.

— Minha irmã – respondeu ao prodígio. Ao perceber o rosto malicioso do ouvinte, aproximou-se de seu ouvido e ameaçadoramente sussurrou: – Nem ouse pensar nisso, troglodita.

O centauro riu em resposta. Beuranie não entendeu muito bem, mas, ainda assim, permaneceu sorrindo.

No meio do recinto, formava-se uma multidão. Todos olhando para dois lutadores duelando num espaço vazio do centro. Os irmãos se enfiaram entre os vários espectadores para enxergar mais de perto. Todos torciam para alguém alcunhado de “Chifre Negro”, nome repetido várias vezes por todo o salão. Associaram-no ao enorme minotauro, de pelagem preta como a noite e chifres reluzentes de metal. No septo, uma argola pesada, e dois braceletes de metal em cada pulso. Seus olhos quase exalavam fogo, furiosos e intimidadores. Dava uma surra em seu oponente, um minotauro nem tão grande assim, repleto de hematomas, lambuzado de sangue escorrendo da boca e do focinho. Não demorou muito para que ele caísse, desacordado, e a torcida fosse ao delírio.

Beuranie olhou para o irmão, a fim de saber se este ainda mantinha o objetivo, e ouviu dele um sussurro:

— Acho que fiz xixi.

Enfim havia desistido de sua ideia impulsiva. Mas, a dupla ainda voltaria ali, por, pelo menos, uma vez ao mês, para encantar-se com os espetáculos violentos. Raramente viam o Chifre Negro, pois vivia viajando de cidade em cidade, voltando à Cidade Cordilheira depois de um bom tempo. Mesmo assim, nunca deixava de frequentar a Ferradura e mostrar aos novatos sua força. Um dia, anos depois, após mais uma vitória, provocou:

— Quem é o próximo a levar uma surra?

Uma Beuranie mais velha e mais experiente reuniu coragem para se pronunciar.

— Eu – gritou.

Vários rostos encararam-na. Alguns surpresos, e outros, cheios de escárnio.

— Você enlouqueceu?! – cochichou seu irmão, cético.

O campeão riu.

— Boa piada. Agora, quem quer… – Foi interrompido antes de terminar a frase, assistindo à mulher aproximar-se.

— Há algum preço para a entrada? – perguntou ao taverneiro, já colhendo algumas moedas do bolso – Isto serve?

O dono do negócio, sem saber como proceder, foi seduzido pela ganância e aceitou o pagamento. Satisfeita, Beuranie deu início a um alongamento. O Chifre Negro fez o mesmo, avisando:

— Não vou facilitar porque você é mulher.

— Estou lisonjeada – ela retrucou sarcasticamente.

Balthos correu até a irmã e puxou seu braço. Antes que pudesse protestar contra qualquer coisa, ela virou-se para ele e disse:

— Não se preocupe, isto acabará num segundo.

Inesperadamente, o sino tocou antes que alguém lhe avisasse. Seu irmão afastou-se rapidamente, temendo o adversário, e Beuranie foi pega de surpresa por um ataque por trás. O Chifre Negro agarrou seus quadris e a carregou sobre os ombros com certa dificuldade. Mesmo debatendo-se com afinco, ela foi jogada no chão. Depois, o oponente ainda lançou-se para cima dela com forçada, dando-lhe uma cotovelada no abdome e a impedindo de ficar em pé novamente. Contorceu-se, à medida que o Chifre Negro levantava-se.

— Volte para seu marido.

A visão turva de Beuranie enxergava parcialmente uma plateia comemorando a vitória do lutador. Mas, juntou forças para se reerguer lentamente enquanto aquele encontrava-se de costas, recebendo toda a glória desmerecida. Ela o chamou.

— Ei, grandalhão! Ainda estou de pé. E não ataco de costas como certas pessoas…

Furioso, o Chifre Negro avançou, erguendo seu punho. A razão foi afetada pela emoção e o brutamontes deixou transparecerem várias brechas. Beuranie aproveitou-se disso e segurou sua mão antes de ser atingida. Mas, em vez de tentar pará-la, sabendo que não seria capaz disso, utilizou a força que acompanhava o movimento para desviar e puxar o adversário. A técnica causou um desequilíbrio no minotauro, dando oportunidade para que recebesse um golpe na barriga. Curvou-se de dor. Beuranie socou sua cabeça pela esquerda, que quase o fez cair. No entanto, ele recobrou os sentidos e começou uma sequência de socos dos quais a garota mal conseguiu desviar, sendo acertada pelo último e ficando tonta. Essa falha serviu para que o Chifre Negro colocasse o braço em volta de seu pescoço e a sufocasse por alguns segundos. Antes que ela perdesse a consciência, entretanto, foi capaz de chutar a canela do agressor e desvencilhar-se. Embora ele fosse mais forte, ela era mais rápida e tal fato inclinou-se drasticamente a seu favor. Ela girou e acertou-o na mandíbula. Todos ouviram um osso quebrar, mas o macho não deixou aquilo atrapalhá-lo. Desferiu-lhe um golpe em uma das mamas, o que a fez gritar de dor. Sem tempo para lamentos, contra-atacou com mais socos. Um, depois outro, outro e mais outro. O Chifre Negro já não era mais capaz de desviar, de tão tonto que se sentia. Numa hora, acabou caindo de joelhos no chão, sem se levantar novamente.

A garota, exausta, deu-se um tempo para recuperar ar e cuspir um pouco de sangue. A plateia, tão surpresa quanto revoltada, manteve seu silêncio. Até que Balthos começou a gritar, contagiando os outros. Logo, a taverna inteira celebrava. Um médico recolheu o guerreiro caído. A multidão ergueu Beuranie no ar, tratando-a como uma campeã.

Mais tarde, quando os irmãos voltavam para casa com uma sacola de moedas em mãos, Balthos perguntou-lhe sobre o segredo da vitória. Respondeu:

— Assistimos a inúmeras lutas dele. Seus movimentos me eram tão conhecidos quanto a palma da minha mão.

E seguiram, satisfeitos, o rumo de casa.


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Notas finais do capítulo

Eaí, o que acharam dos personagens? Do Aman, do Eldwin e da Beuranie? Me digam nos reviews. Ah, e vocês sabiam que eu fiz um cast de dubladores para os protagonistas? Aqui, vou deixar o nome de cada um e um vídeo com a voz deles:
Neris: Flora Paulita (https://www.youtube.com/watch?v=buq55vC8QaM)
Aman: Charles Emmanuel (https://www.youtube.com/watch?v=br-3iNTvBh8)
Eldwin: Marcos Souza (https://www.youtube.com/watch?v=ax7X_i2h4Rw&t=41s)
Beuranie: Marisa Leal (https://www.youtube.com/watch?v=edLN9V4mhk0)



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