Memórias de um Imortal escrita por Xarkz


Capítulo 8
Capítulo VIII




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Não tenho bem certeza de quanto tempo se passou naquela ocasião, mas sei que foram algumas décadas.

Eu já estava morando em uma residência fixa mas peregrinava por uma região desolada, onde só se via uma única casa a cada muitos quilômetros.

A estrada era de terra, em meio ao mato, e só existe como decorrência das carroças que passam seguidamente por ali, que acabou por abrir caminho e impedindo que o mato crescesse naquele ponto.

Encontrei um barraco onde morava uma família que eu já conhecia e então me aproximei.

Duas crianças me recepcionaram e eu entrei na casa, onde estavam o pai e a mãe das crianças. A mãe segurava um bebê de colo e era bem visível que aquelas pessoas não tinham contato algum com a cidade grande ou tecnologia.

Conversamos por alguns minutos e entreguei à eles um maço de dinheiro, como parte de nosso combinado.

A mãe veio comigo, trazendo o bebê de colo, voltando pela estrada que percorri para chegar até lá.

Após uma caminhada de meia hora, chegamos em uma estrada menos rudimentar, mas ainda de terra, onde deixei minha picape esportiva, que era preparada para andar naqueles terrenos irregulares.

Entramos no veículo e dirigi por três horas, chegando em uma cidade pequena.

Era bem simples mas ainda sim mais civilizada do que o local onde aquela família vivia.

Já na cidade, parei em frente a uma casa humilde, de onde saiu um jovem casal. Eles já sabiam do que se tratava, pois já os havia contatado anteriormente, entreguei a eles um maço de dinheiro e eles também entraram no carro.

Seguimos por seis quadras e chegamos no cartório.

De lá, saímos com um registro civil daquele bebê, chamado Nicolas.

Meu nome constava como pai, aquela mulher como mãe e o jovem casal foram as testemunhas, visto que aquela criança não tinha uma certidão de nascimento por ter nascido em casa. Cidades pequenas incomodavam muito menos com esses detalhes.

Devolvi o casal à sua residência e viajei de volta para levar aquela senhora e seu bebê para casa, onde seu marido e filhos esperavam.

Mais três horas depois e a missão estava cumprida.

Tinha uma certidão nova em mãos, com CPF e tudo mais.

Porque eu precisava dela? Bem, eu já estava na casa dos sessenta ou setenta anos, mas o que eu iria fazer se me parassem para ver meus documentos e se deparassem com um senhor de setenta anos com rosto de vinte e três?

Felizmente aquela senhora jamais fez questão de registrar seu filho, mas me predispus a devolver caso ela mudasse de ideia, afinal, o registo era daquele bebê e não seria justo eu ficar com ele, caso eles precisassem.

De qualquer forma, eu só poderia usar aquele registro depois de pelo menos uns dezesseis ou dezessete anos, enquanto isso eu teria de ficar longe de encrencas. A última coisa que eu queria era o governo me capturando para fazer experiências e tentar descobrir sobre como funciona minha imortalidade.

De onde eu tirei o dinheiro? Bem, lembra que falei que o mundo das lutas não era para mim? Pois bem, eu estava errado. É claro que se um homem com o dobro do meu tamanho e peso me batesse eu apagaria, mas era diferente ao lutar contra gente da minha categoria de peso.

Minha habilidade no boxe não era excepcional, nem minha força, mas eu tinha doze rounds para cansar o oponente enquanto eu jamais cansava. Os trinta segundos de descanso eram o suficiente para eu  me regenerar de danos pequenos, só precisava evitar nocautes técnicos.

Nos últimos rounds, quando o oponente estava cansado, eu disparava com uma chuva de socos durante os três minutos inteiros, sem parar, o que me rendeu o título de “Arthur - A máquina”.

Me tornei campeão nacional, disputei lutas no mundial e, com muito esforço, fui campeão mundial. Defendi o cinturão seis vezes, até que fui derrotado.

Incrível que existam lutadores capazes de sobrepujarem minhas vantagens como imortal apenas com suas habilidades. Ainda sim, nunca fui nocauteado, minhas derrotas foram todas por pontos.

Não fiquei famoso, mas o dinheiro era bom.

Alguns anos de economia e consegui comprar uma casa para morar.

Então comprei uma segunda para alugar e assim comecei no ramo imobiliário.

 

Na volta para minha cidade passei por um campo muito bonito, com um belo gramado natural. Tão bonito que parecia um tapete.

Já havia passado por ali antes mas nunca parei para apreciar a vista, então decidi que era chegado a hora.

O caminho permitia aproximar-me com o carro, então segui em meio ao gramado, com cuidado para as rodas não atolarem nos buracos. Não seria a primeira vez que andava por aquele tipo de terreno, por isso meu carro possuía um guincho com cabo de aço instalado no parachoque frontal.

Segui por alguns quilômetros em um caminho cada vez mais desolado, até que cheguei em um enorme barranco, onde havia um carvalho bem próximo da beirada.

Estacionei próximo à ele e desci do carro.

Decidi tirar os sapatos para pisar naquela grama fofa e me aproximei da beirada do barranco.

Era bem alto e era possível enxergar longe, avistando as montanhas e florestas, mas nada de civilização.

Me sentia em paz em um cenário como aquele.

Na parede do barranco a raíz do carvalho ficava exposta e, lá em baixo, havia um lago, que completava a beleza da vista.

A queda devia ter pelo menos uns trinta metros ou mais, então sentei-me na beirada e permaneci lá, apenas apreciando a vista.

Eu já tinha vivido uns setenta anos e, diferente do que eu tinha imaginado, as coisas já haviam perdido um pouco da graça. Poucas coisas no mundo atraíam minha atenção e eu vivia em constante tédio.

Olhei para minha mão esquerda, para o eterno buraco que abri nela quando cometi a burrice de testar minha regeneração antes do contrato estar totalmente estabelecido. Em seu lugar havia sempre um curativo e era ele que me fazia lembrar do passado.

Toda vez que olhava para aquele curativo me lembrava de quando era um mortal, lembrava da minha vida antes do contrato, lembrava do cubo, lembrava da dona Camélia e, principalmente, lembrava de Julia.

Parecia tudo tão longe, como se fossem a eras atrás.

A noite começou a cair e então deitei na grama, olhando para as estrelas. Elas eram uma das poucas coisas de que eu não me enjoava nunca, apesar de tão poucas vezes eu ter parado para contemplá-las.

Por uma noite inteira fiquei ali, imóvel, sequer respirando, apenas existindo.

Pensei que só iria poder usar aquele registro de nascimento em pelo menos dezesseis ou dezessete anos e não havia um lugar para onde eu desejasse ir ou algo à fazer.

Foi quando decidi testar novamente minha imortalidade.

Uma das habilidades do “pacote” era o dom de hibernar. Eu podia simplesmente decidir o momento em que queria dormir e só acordar quando quisesse, tendo total controle do tempo que se passava, mas não sentido a passagem do tempo. Era realmente bem doido.

O teste em que pensei seria para ver se eu poderia hibernar por vários anos e se eu sentiria uma passagem de tempo tão grande quanto essa.

Logo que o Sol despontou no horizonte, me posicionei ao pé do carvalho, me deitei e, mesmo não precisando, respirei fundo, apenas como forma de aliviar a tensão de testar algo novo.

A mágica começa um segundo após me concentrar e fechar os olhos.

Novamente era como se eu estivesse fora de meu corpo, observando-o enquanto ele hibernava.

Eu meio que enxergava as coisas ao redor, mas de uma forma embaçada e distorcida, mais ou menos como em um sonho, enquanto tudo se movia rapidamente ao meu redor. O Sol nascia e se punha centenas de vezes naquilo que, para mim, parecia um segundo.

Tudo parecia tranquilo mas, daquela vez, algo diferente aconteceu.

Tive uma sensação desagradável e era como se algo ruim estivesse acontecendo comigo. Sentia uma espécie de formigamento na região lateral do abdômen e aquilo começou a se espalhar, já pegando um pedaço da perna direita.

Foi quando decidi abortar a hibernação e acordei.

Sempre achei que uma das piores sensações era ter pesadelos, que passavam ao acordar. Mas desta vez foi exatamente o contrário, o pesadelo começou quando despertei.

Imediatamente senti uma dor lancinante no corpo e, quando coloquei a mão sobre meu abdômen percebi que estava coberto por vermes.

Não sei dizer o que era pior, a dor ou o pavor de ter aquelas larvas pelo corpo, que abriram um buraco em meu abdômen e já caminhavam por dentro de meu corpo, se espalhando pela perna direita.

Podia sentí-los atacando meus órgãos internos, me curvei e cerrei os dentes, tentando suportar a dor.

Não sabia o que fazer, não conseguia pensar.

O pavor tomou conta de mim e uma única saída me veio à cabeça.

Uma saída extrema.

Com minha mente embaçada, arrastei-me até a árvore e a utilizei como apoio para ficar em pé, enquanto lutava para manter o foco.

Caminhei até o carro, soltei o freio de mão e virei a chave, com muito custo, dirigindo poucos metros à frente e posicionando o veículo ao lado da árvore.

Desci e caminhei até a caçamba da caminhonete.

Mesmo mover-me da lateral do carro até a parte traseira parecia demorar uma eternidade, devido àquela dor misturada ao repúdio que aqueles vermes me causavam.

Encontrei uma corda grossa que utilizava para amarrar coisas pesadas na caçamba e a enrolei no braço.

Dei a volta, cambaleando, e fui até a frente do veículo, desenrolando o cabo de aço do guincho e esticando-o pouco mais de vinte metros.

Olhei para o gancho, hesitante, e então enrolei-o em meu pescoço, apertando com força.

— Espero que seja como aquele maldito cubo disse. — falei baixinho para mim.

Soltei o freio de mão da caminhonete que, devido a inclinação, começou a seguir na direção do barranco lentamente.

Nesse meio tempo, amarrei meu tórax e ombros com a corda, prendendo-me o máximo que pude no carvalho.

Enquanto via o veículo aproximar-se do barranco, amarrado ao carvalho e com o cabo de aço preso ao meu pescoço, senti uma ponta de arrependimento, mas aí já era tarde.

— Aproveitem, vocês só vão ter comida para mais alguns dias, seus malditos. — olhando para os vermes em meu corpo.

A caminhonete chegou na beirada, despencando barranco abaixo e tudo o que eu via era o cabo de aço, onde um lado dele estava enrolado em meu pescoço e a outra extremidade presa ao carro, esticando-se, a medida que o veículo descia mais em direção ao lago. Isso enquanto o restante de meu corpo estava preso, de forma bem firme, ao carvalho.

Pouco antes da caminhonete tocar a água, o cabo se esticou completamente e foi quando minha visão escureceu.


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Notas finais do capítulo

Observações e críticas construtivas serão bem vindas!



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