Memórias de um Imortal escrita por Xarkz


Capítulo 16
Capítulo XVI




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/766809/chapter/16

O Sol começava a descer no horizonte, diminuindo um pouco daquela sensação de intenso calor, muito mais alta do que deveria ser.

O asfalto quase derretia a sola dos sapatos, mas o vento amenizava um pouco a temperatura.

Mesmo passando por entre uma cidade, o rio estava limpo e aproveitei para lavar as mãos.

Ao meu lado, um soldado da Alcatéia atirado no chão com a cabeça submersa no rio. Felizmente desta vez era apenas um e não tive dificuldades em lidar com ele, talvez estejam com falta de pessoal.

A garrafa já estava cheia de água e então puxei uma corda, cuja a outra ponta estava amarrada em uma lança. Quando a puxei, sua ponta estava atravessada em um peixe, que veio junto com a lança.

O maldito soldado apareceu justamente enquanto eu pescava.

Olhei para minha mão e quase era possível enxergar através do furo de bala em minha palma. Já perdi as contas de quantas vezes fui alvejado.

Com água, o peixe que tirei da lança e mais outro que já havia pescado, retornei para o pequeno acampamento que montei, onde Sara me aguardava.

Levei comigo a metralhadora do soldado, pois ele não iria mais precisar dela.

Dentro de uma loja de eletrônicos, na sala que devia ser do gerente da unidade, espalhei as mesas e cadeiras, colocando alguns trapos no chão que seriam utilizados como cama e era onde Sara estava descansando.

Eu precisava fazer um esforço para lembrar-me de que deveria arranjar comida e água constantemente.

Se dependesse apenas de mim poderia viajar por dias e noites sem parar, sem comer, sem beber, sem dormir ou sequer descansar, mas agora havia uma pequena vida em minhas mãos.

Entreguei a água para Sara, que bebeu rapidamente. Estava sedenta. Eu tinha que começar a prestar mais atenção nela, ou ela iria acabar desidratada e doente.

Guardei a metralhadora em uma sacola grande, segui para a cozinha do estabelecimento e liguei o fogão. Ainda havia gás, que maravilha.

Limpei e assei um dos peixes, servindo em seguida em um prato de papel que encontrei.

— Quem diria, talheres. — comemorei, entregando-os para Sara.

— Mas são de plástico, são de comer bolo.

— Vão ter que servir, ou você prefere comer com as mãos?

Ela tentou cortar o peixe com a faca de plástico mas o talher acabou quebrando.

— Viu! — disse ela, com as mãos na cintura. — Eu disse que era de bolo.

— Ok, então use as mãos mesmo. Só tenha cuidado pra não se queimar.

— E você, não vai comer?

— Eu comi no caminho, não estou com fome. — preferi mentir à ter que contar sobre minha imortalidade.

— Comeu peixe cru?

— Qual o problema? Os japoneses comem isso… Ou comiam.

Pensar sobre minha imortalidade me trouxe lembranças.

Enquanto eu enrolava o outro peixe para a próxima refeição, resolvi abrir sua boca e olhar lá dentro, como se houvesse alguma chance daquilo acontecer de novo.

Obviamente não havia nenhum cubo misterioso naquele peixe.

Afinal de onde teria vindo aquela coisa?

Achei que eu teria a eternidade para descobrir, mas pelo jeito algumas perguntas jamais serão respondidas.

Depois de comer, Sara deitou-se sobre os trapos no chão.

— Canta uma musiquinha pra eu dormir? — ela pediu, com cara de sono.

— Que música você quer? Aquela da estrelinha?

— Você sabe a letra?

— Conheço uma versão, mas pode ser diferente da que você conhece.

— Tudo bem, pode ser!

Sentei-me ao seu lado e puxei pela memória. Faziam alguns séculos que eu não ouvia aquela música.

Sem ter certeza de que lembrava completamente a letra, comecei.

— Brilha, brilha estrelinha! Quero ver você brilhar! Faz de conta que é só minha! Só pra ti irei cantar! — ela sorriu, de olhos fechados. Parecia estar gostando, então continuei. — Brilha, brilha estrelinha! Brilha, brilha lá no céu! Vou ficar aqui dormindo, pra esperar Papai Noel!

— Quem é Papai Noel? — ela disse, despertando.

— Não conhece o Papai Noel?

Ela balançou a cabeça, dizendo que não.

— Papai Noel é um velhinho que mora no pólo norte e, uma vez por ano, leva presentes pra todas as crianças que foram boazinhas.

— Pra todas? Mas eu nunca ganhei.

— Deve ser porque você tentou explodir todo mundo com uma granada.

A decepção ficou evidente em seu pequeno rosto.

— De qualquer jeito ele não iria vir mesmo que você tivesse sido boazinha, porque o mundo está um caos. Mas garanto que quando o mundo melhorar, e se você for boazinha de agora em diante, ele ainda vai te trazer um presente.

— Será?

— Vai sim! Ele não esquece de ninguém. Só deve estar tirando umas férias, até o mundo melhorar.

— E você acha que o mundo vai melhorar logo?

— É claro! Em um ou dois anos tudo vai ficar normal de novo.

— Aí vou ganhar presente.

— Sim, já vai pensando o que você quer ganhar e desejando com força, aí ele vai saber. Mas lembre do que eu falei, você tem que ser boazinha. Tratar bem as pessoas, ser educada e ir dormir na hora certa.

Ela abriu um grande sorriso e se deitou rápido, fechando os olhos para dormir.

Coloquei a mão sobre sua cabeça e cantarolei a música da estrelinha, cada vez mais baixo até que ela pegou no sono.

Na base, antes do ataque, enquanto todos dormiam eu subia até o terraço e conversava com Lars, que quase sempre estava lá.

Mas quando até mesmo ele dormia, eu subia na caixa d’água e ficava observando as estrelas.

Talvez todo mundo tenha feito isso pelo menos uma vez na vida.

Alguns faziam isso mais seguidamente e é na cabeça dessas pessoas que as perguntas começavam a surgir.

Agora imagine como minha cabeça estava após centenas de anos observando as estrelas enquanto todos dormiam?

Eu achei que iria poder ver a humanidade alcançar as estrelas, que iria ver tudo de camarote, me maravilhar com as descobertas. Talvez vida inteligente fora da Terra, descobertas científicas revolucionárias, novas fontes de energia, uma forma de viajar grandes distâncias no universo de forma mais rápida ou quem sabe até descobrir o sentido da vida.

Mas nada disso aconteceu.

A humanidade se perdeu, eu me envolvi nos problemas de outras pessoas, além de criar os meus próprios problemas também.

Toda vez que eu resolvi me aproximar de alguém eu tive problemas.

Ou seria eu quem trazia problemas à elas?

A morte parecia sempre me rodear. Seria um efeito colateral da imortalidade? Porque o Cubo não me avisou sobre isso?

Ponderei sobre o futuro e imaginei se Sara estaria segura comigo ou se teria mais chances sozinha.

Mas como eu poderia abandonar uma criança à própria sorte?

Então tomei uma decisão.

Passei a noite arquitetando meus passos para os próximos dias.

Quando começou a amanhecer eu já tinha um plano.

Antes dela acordar, saí para buscar mais água no rio.

O Sol da manhã, nesta era, parecia mais forte do que qualquer Sol do meio dia de quando eu ainda era mortal.

Todos os dias as pessoas usavam protetor solar ou então cobriam o corpo inteiro para poderem sair.

O calor acabava por sufocar muita gente, causando a morte dos mais fracos de saúde.

Ainda sim a água do rio estava em uma temperatura agradável, então recolhi um pouco e retornei para o local onde estávamos acampados.

Quando entrei na loja de eletrônicos, percebi que Sara não estava lá, então procurei nos nos outros cômodos.

Passei por um pequeno corredor e cheguei até uma pequena sala onde era o estoque. Ao abrir a porta, fui atingido na cabeça por uma caixa de papelão retangular, que se amassou sem me causar dano algum.

Procurei pelo agressor e avistei a pequena Sara, que começou a chorar.

— Eu acordei e você tinha sumido. — ela disse, aos prantos. — Achei que tinha me abandonado.

— Desculpa! — me dando conta da besteira que fiz. — Eu achei que você não ia acordar antes de eu voltar. Eu não tenho muita experiência em cuidar de crianças.

Ela limpou as lágrimas com as costas das mãos e largou a caixa de papelão.

— Você não disse que tinha uma família antes e que cuidava de um menino? — questionou ela, ainda irritada comigo.

Eu nunca havia contado isso a ela, mas deve ter ouvido minhas conversas com Lars.

— É, mas ele não era meu filho, era o irmão mais novo da minha namorada. E se você visse o que aconteceu, ia entender que eu não sei lidar com crianças.

— O que aconteceu com ele?

— Eu também gostaria de saber.

— Ele sumiu?

— Não! Eu sumi. Você não iria entender, mas o resumo é que eu fiquei preso, longe da minha família, e quando consegui voltar eles já não estavam mais lá.

— Você acha que pode encontrar eles ainda?

— Não! Já se passou muito tempo. Da última vez que os vi eu estava tentando encontrar o garoto no meio de uma nevasca em uma montanha. Então fui atacado por lobos e por um urso. Aí teve um deslizamento de neve… Desde então, nunca mais os vi.

Ficamos em silêncio por alguns instantes, o suficiente para que eu pudesse ouvir um estalo vindo da sala ao  lado, provavelmente da madeira se expandindo pelo calor, então lembrei que eu não sabia nada sobre Sara.

— E quanto a você, qual é a sua história? Onde está a sua família?

— Quando eu morava com a Alcatéia o Luko me disse que meu pai saiu pra caçar, então ele teve um acidente e morreu. — disse Sara, ficando cabisbaixa. — Ele sempre trazia muita comida pra gente, mas um dia o Luko descobriu e os dois brigaram. No outro dia meu pai se acidentou.

— O tal de Luko é líder da Alcatéia, certo? Ele teve algo a ver com o acidente?

— Não, não! O Luko é legal. Mesmo eles tendo brigado no outro dia, ele ficou bem triste com a morte do meu pai.

Aquilo me pareceu altamente suspeito.

— E a sua mãe? Ela ainda vive com a Alcatéia?

— Não! Minha mãe não gosta do Luko, ficava dizendo que ele matou meu pai, mas acho que é porque ela ficou brava que o papai não podia mais trazer um monte de comida, depois que eles brigaram. Ele disse pra mim que iria cuidar muito bem da minha mãe e que ia fazer com ela o que o meu pai fazia.

A cada nova informação aquele Luko me parecia uma pessoa pior.

— Minha mãe disse que odiava ele, mas a noite eles dormiam no mesmo quarto. Às vezes ela chorava, mas se não gostava dele, porque dormiam na mesma cama?

— Você nunca perguntou isso à ela?

— Perguntei, mas ela nunca disse, sempre mudava de assunto. Depois disso ela fugiu da Alcatéia e disse que ia voltar pra me buscar. Aí o Lars me tirou de lá e nunca mais vi minha mãe. Ela deve ter ido me buscar mas eu não estava lá.

— Por isso quis explodir aquele pessoal com a granada?

Ela afirmou com a cabeça.

Puxei do bolso o mapa que Lars me deu e mostrei para Sara.

— Olha só, pelo mapa do Lars, só existem dois acampamentos de refugiados da Alcatéia. Se sua mãe não estava aqui no ponto “A”, então ela deve estar no “B”.

Um enorme sorriso surgiu no rosto da menina e o brilho retornou aos seus olhos.

— E é pra lá que a gente tá indo né? — saltitando no mesmo lugar.

— É sim. Vamos torcer pra que ela esteja lá.

— E se ela não estiver? — disse ela, parando de pular.

— Aí a gente procura até encontrar. — falei com um sorriso, enquanto bagunçava o cabelo dela com a mão.

Novamente ouvi o estalo vindo da sala ao lado e preferi averiguar. Coloquei o indicador na frente da boca, pedindo silêncio à Sara e caminhei silenciosamente até a outra sala.

Haviam diversas prateleiras de madeira com caixas de papelão empilhadas e uma pequena janela quase no teto, que dava para a sala ao lado, onde estávamos antes.

No chão, uma caixa grande de papelão me chamou a atenção, então segurei-a com cuidado e a joguei para longe, revelando um intruso escondido debaixo dela.

— Quem é você! — perguntei de forma autoritária.

Era um rapaz magro e baixo, devia ter por volta dos vinte anos e parecia assustado.

— Calma! Eu não vim fazer mal. — disse ele, colocando as mãos para frente.

Olhando com calma, pude perceber uma tatuagem em sua mão esquerda. Tratava-se de um desenho da cabeça de três lobos.

Cerrei o cenho e perguntei novamente, dessa vez em um tom ameaçador, enquanto sacava minha arma.

— Só vou perguntar mais uma vez: quem é você?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Observações e críticas construtivas serão bem vindas!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Memórias de um Imortal" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.