Memórias de um Imortal escrita por Xarkz


Capítulo 15
Capítulo XV




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Sem a presença do homem, as águas pareciam mais limpas do que nunca e um peixe nadava despreocupadamente, quando foi atravessado por uma lança.

— De primeira? — disse o rapaz, espantado com minha destreza.

— Fiz isso por alguns anos. Hoje em dia parece bem fácil, mas no início eu era um fiasco. — enquanto puxava a corda que se prendia à lança, trazendo o peixe consigo.

— Com esse já são doze. Já é o suficiente. Melhor não ficarmos por aqui mais tempo.

Coloquei o último peixe na cesta e segurei em uma das alças, enquanto o rapaz segurava na outra e levamos para nossa base.

Já haviam passado algumas semanas e acabei decorando o caminho de volta, que mais parecia um labirinto.

Os encarregados de cozinhar utilizaram os peixes com os demais alimentos que tinham, preparando a refeição para todos.

— Onde está o Lars? — alguém perguntou.

Todos se olharam, sem respostas.

— Ele deve estar no terraço, fumando. — respondeu outro.

— Pode deixar que eu levo o almoço pra ele. — falei, enquanto servia um prato.

Fiz o caminho para saída, mas continuei subindo a escadaria, ao invés de seguir pelo corredor, indo até o topo.

Passei pela porta de aço e lá estava ele, fumando no terraço.

Aproximei-me devagar e parei ao seu lado, largando o prato em cima de uma mureta.

— Pensando na vida, Lars?

Ele tragou e revirou os olhos como se aquele cigarro lhe desse a sensação mais prazerosa de sua vida.

— Ao contrário. Pensando na morte. Na morte daqueles que já se foram. Você disse que perdeu seu pessoal, não sente falta deles?

— Sabe o que é mais assustador? Vivi por alguns anos com eles, mas bastou dois ou três dias para eu superar a perda. Às vezes sinto que estou me tornando menos humano à medida que o tempo passa.

— De fato, você parece uma máquina. Sobe doze andares de escadaria sem ficar ofegante.

— Tenho uma boa resistência.

— Já eu, quantos anos acha que tenho? — ele disse, abrindo os braços e ficando de frente para mim.

— Eu diria que uns sessenta e cinco.

Ele deu uma gargalhada.

— Tenho cinquenta e dois. Essa vida me judiou bastante então eu acabei envelhecendo rápido. E você? Tem uma postura de quem já viveu muito, mas parece ter uns vinte e poucos.

— Vinte e cinco. — a idade que decidi mais viável para sustentar a minha história e conciliar com a minha aparência. Além do mais, eu já não fazia ideia qual era a minha idade real.

— Tão novo. Na sua idade foi quando tive minha primeira filha.

— Ela está aqui?

— Não! Ela está aqui. — apontando para seu próprio peito.

— É sobre ela que estava pensando, antes de eu vir interromper sua nostalgia?

— Sobre ela, sobre minha família e amigos. Todos ficaram para trás. Apenas minha filha mais nova e eu sobrevivemos.

— Quer falar sobre isso?

— Já ouviu falar no Gás Vermelho, garoto?

— Não!

— É o que usavam na guerra quando queriam dominar uma cidade sem destruí-la. Consistia em um aparelho que emitia uma espécie de gás, mas você só enxergava esse gás se estivesse próximo, olhando diretamente para o aparelho. Você via um gás vermelho, que parecia se dissipar à medida que se afastava. Mas não era bem assim, o raio de ação do gás se estendia sem que você pudesse vê-lo e só atingia criaturas vivas, que começavam a queimar. Não adiantava entrar debaixo d’água ou em abrigos subterrâneos, aquela coisa parecia transpassar qualquer parede. A morte era dolorosa e demorada, não dava pra fugir, ele se espalhava mais rápido do que o mais rápido dos veículos.

— Que terrível!

— Eu fiquei fora da cidade por três dias. Quando voltei, encontrei minhas duas filhas e minha esposa, ou pelo menos o que sobrou delas, abraçadas no chão do quarto, totalmente carbonizadas.

Era uma história triste, eu sabia disso, mas tive uma dificuldade enorme para sentir algo.

As dificuldades humanas já não me chocavam, como se meus sentimentos estivessem calejados.

Era tão difícil sentir empatia, parecia que eu estava me tornando cada dia menos humano e isso me assustava.

Pensei em algo para dizer, mas os ouvidos aguçados de Lars detectaram algo e ele se aproximou da beirada do prédio, escondido atrás da parede formada pelo prédio ao lado.

Lá embaixo, três homens armados e uniformizados, utilizando máscaras de gás, escoltavam um rapaz.

— Droga! — esbravejou Lars, quase sem emitir som.

— É o Blanco, nosso explorador. — sussurrei. — Achei que ele estava morto.

— Eu também.

O rapaz apontava para uma abertura na parede de um dos prédios.

— Ele está mostrando a entrada da nossa base. — disse Lars, assustado. — Que maldito.

— Não sabemos se ele está nos traindo, ele pode estar sendo forçado.

— Isso não importa agora, precisamos tirar todos daqui agora!

— Certo!

Lars e eu corremos para dentro. Eu fui na frente, descendo a escadaria o mais rápido que pude, até que o perdi de vista.

Cheguei na base e dei um soco na parede metálica, fazendo barulho e chamando a atenção de todos.

— Temos que sair daqui, a Alcatéia nos descobriu! — falando em um tom alto. — Saiam todos pelos fundos, AGORA!

Como uma manada desgovernada, as pessoas correram para uma segunda passagem.

O espaço era afunilado e todos tentavam passar ao mesmo tempo, então comecei a organizá-los o máximo possível.

Quando metade deles já havia passado pela porta, ouvi uma explosão no corredor por onde as pessoas estavam fugindo.

Apenas três voltaram, apavorados.

Segurei um deles pelos ombros e o olhei nos olhos.

— O que aconteceu? — Tentando falar o mais calmamente possível.

— Algo explodiu e o corredor desmoronou. Os que não morreram na explosão foram soterrados. Vamos todos morrer! VAMOS TODOS MORRER!

Foi claramente uma armadilha.

Sobraram apenas oito pessoas, que andavam em círculos sem saber o que fazer.

Antes que eu pudesse pensar em algo, dois membros da Alcatéia entraram no local com metralhadoras e começaram a atirar em todos.

Me abaixei atrás do fogão improvisado, enquanto via os corpos caindo um a um.

As rajadas cessaram e, quando pensei em sair para atacar, senti uma mão segurando a barra da minha calça. Era a menina do outro dia, a que tentou explodir a todos com  uma granada.

Ela parecia estar em pânico e seus olhos lacrimejavam, mas sem choro.

Coloquei o indicador na frente da boca, fazendo sinal para ela não fazer barulho e então olhei em volta.

Localizei uma marreta, mas estava longe.

Eles se aproximavam devagar, enquanto um terceiro, claramente o líder, ficava na porta, com as mãos para trás, apenas observando.

O que fazer?

Mesmo imortal, uma rajada daquelas armas e eu ficaria incapacitado.

Me aproximei do ouvido dela e falei baixinho:

— Preciso que você cubra os ouvidos e feche os olhos. Aí quando eu sair daqui, comece a cantarolar algo. A música que você mais gostar.

— Pode ser a da estrelinha? — ela perguntou, sussurrando.

— Pode sim! — respondi, forçando um sorriso.

Eles já estavam muito próximos e certamente desconfiavam de que havia alguém ali, então me preparei para atacar.

— No “três” você começa a cantar, ok?

Ela balançou a cabeça, confirmando.

— Um, dois…

Antes que eu pudesse terminar, Lars saltou nas costas de um deles, enfiando uma faca em seu pescoço.

O sangue jorrava e o seu aliado partiu para cima, acertando-lhe uma coronhada na cabeça.

Corri e peguei a marreta no meio do caminho, mas não fui rápido o suficiente.

O soldado disparou várias vezes contra Lars, indefeso no chão.

Fazendo um movimento circular com marreta, golpeei o lado da cabeça do soldado, que foi a nocaute imediatamente, então parti para cima do terceiro.

Ele sacou uma pistola com a mão direita e disparou no meu braço, me atingindo em seguida com um soco, fazendo com que eu derrubasse a marreta.

Quando tentei avançar novamente, ele apontou para minha testa e disparou.

Minha cabeça foi empurrada para trás e eu lembro de estar em pé, olhando para o teto.

Em uma fração de segundo mexi as pontas dos dedos das mãos e então os dedos dos pés. O projétil não atingiu nenhum ponto que prejudicasse minha coordenação motora e eu não iria esperar para saber aonde foi o dano.

Abaixei a cabeça, fitando-o nos olhos e, apesar de não poder ver seu rosto por causa da máscara de gás, ele claramente ficou chocado por eu não ter caído.

O tempo que ele precisou para assimilar o choque foi o suficiente para pegar seu braço e torcê-lo para trás, derrubando-o no chão, enquanto debruçava meu corpo em cima das costas dele.

Retirei a arma de sua mão e então a coloquei em sua nuca.

Minha mão tremia e eu não conseguia falar ou mesmo raciocinar direito.

Uma bala alojada no cérebro pode causar um certo desconforto.

Sem conseguir pensar direito e sabendo que se eu perdesse a consciência aquele cara estaria livre, acabei por disparar contra sua cabeça e ele parou de se mover.

Sentei no chão por alguns segundos e então lembrei de Lars.

Corri até ele, que estava em uma poça de sangue, totalmente perfurado por balas.

— Lars! Consegue falar?

Ele tossia e se afogava em seu próprio sangue, mas arranjou forças para tirar um papel de seu bolso e me entregou, enquanto agarrava-se em minha camisa, em agonia.

— Esse é… Outro grupo... Peça ajuda…

Seu olhos estavam arregalados e ele se debatia, convulsionando pela dor. Aos poucos a convulsão foi acalmando e seu corpo castigado começou a relaxar, enquanto a vida o deixava aos poucos.

Quando parou de se mexer, o deitei no chão e fechei seus olhos com a mão.

Olhei em volta e tudo o que via eram corpos e sangue.

Próximo à entrada o corpo de Blanco. Deve ter sido morto logo que viram que já não havia utilidade para ele.

Caminhei até atrás do fogão e a menina ainda estava lá, de olhos fechados, tapando os ouvidos com as mãos e cantarolando uma música.

Toquei seu braço e ela espiou por uma fresta entre os dedos.

— Já posso parar de cantar? — perguntou, assustada.

— Pode sim, mas preciso que continue de olhos fechados por enquanto, pode fazer isso?

Ela afirmou com a cabeça e então fechou os olhos.

Peguei-a no colo e me dirigi para a saída.

Caminhei devagar, procurando por alguma armadilha ou possível emboscada, mas tudo indicava que eram apenas aqueles três soldados.

Prestava atenção em cada degrau de escada, cada esquina, cada sombra. Aquele caminho parecia mais longo do que o normal.

Quando avistei o buraco que levava à rua, hesitei por alguns instantes e então saí.

O Sol estava alto e não havia vestígios de inimigos.

— Já pode abrir os olhos. — disse è menina, enquanto a colocava no chão.

— O que aconteceu lá?

— Acho que seu desejo se realizou. As pessoas que você não gostava desapareceram.

Os olhos assustados da menina se encheram de lágrimas novamente e só então percebi como fui insensível ao dizer aquilo.

— Hei! Eu estava brincando. — falei sorrindo, tentando animá-la. — Não precisa chorar, olha só. — desenrolando o papel que Lars me deu, tentando mudar o foco da atenção da menina para outra coisa.

Abri o papel e se tratava de um mapa com três pontos marcados.

O primeiro era a posição da nossa base, que era marcada com a letra “A”.

O segundo ponto, marcado com o desenho de uma cabeça de lobo, claramente era a posição da base da Alcatéia.

O terceiro ponto tinha a letra “B” desenhada. Seria o “outro grupo” de que Lars falou?

— Parece que temos um objetivo, baixinha. Temos que chegar nesse ponto do mapa. É uma aventura!

— E o que tem lá?

— Eu sei que você não gosta de se mudar, mas essa casa foi destruída, então precisamos ir pra outro lugar. Esse lugar que vamos tem outras pessoas. Pessoas legais que vão nos ajudar.

— E o Lars e os outros?

— Bem… Eles vão ter que ficar.

— Eles morreram?

Fui mais ingênuo que a menina, achando que uma garotinha como ela não entendesse o que estava acontecendo e engoli seco.

Me agachei, ficando na altura dela para falar.

— Você já tem uma certa ideia das coisas, então vou ser sincero. Aqueles caras que apareceram são caras maus e mataram todos. Eles não vão voltar. Só sobramos nós dois, por isso precisamos sair daqui e procurar ajuda.

Ela me abraçou e começou a chorar novamente, soluçando.

Em meio aos soluços ela disse algo, que não consegui compreender.

— Disse algo, baixinha?

— Sara! — ela repetiu, respirando fundo em seguida.

— Sara? — perguntei. — Quem é essa?

— Você perguntou outro dia qual era o meu nome. — limpando as lágrimas com as costas das mãos. — Meu nome é Sara.


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Notas finais do capítulo

Observações e críticas construtivas serão bem vindas!



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