Memórias de um Imortal escrita por Xarkz


Capítulo 11
Capítulo XI




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Chegou o dia do sétimo aniversário de Benjamin e, enquanto Isidora e Laura preparavam alguns doces, Alonso tinha uma ideia diferente para um presente especial.

Desta vez, ao invés de subirmos a montanha, a contornamos, então atravessamos a floresta onde eu cortei as árvores para fazer minha casa e seguimos um pouco mais adiante.

— Você deve ter um parafuso solto pra ter uma ideia dessas. — disse à Alonso, com um tom entre a brincadeira e a indignação.

— Você também, por ter aceitado vir junto.

Eu portava a lança e mantinha uma faca em meu cinto, enquanto Alonso trazia consigo o facão preso às costas e a espingarda em mãos.

Incrível imaginar que estávamos em uma época tão avançada.

Lá fora havia inteligência artificial, robôs e máquinas incríveis, mas naquela pequena cidade o tempo parecia ter parado. Como se tivesse congelado com o frio e não pudesse mais avançar.

Caminhamos mais e Alonso parecia especialmente cansado naquele dia. Não, ele parecia cada dia mais cansado.

Não era a idade, pois ele estava apenas na casa dos quarenta, mas sua estamina era menor a cada dia. Não parecia algo comum, mas eu evitava entrar em detalhes.

Ofegante, ele avistou o que queria, aproximando-se.

— É aqui! — disse ele, sentando-se em uma pedra para respirar, próximo ao local apontado.

— Parece que não conseguimos. — concluí. — A armadilha está intocada.

— Tem mais duas, vamos prosseguir. — ainda respirando com dificuldade.

Continuamos caminhando pela neve fofa. As árvores diminuíam a sensação de frio, pois impediam o vento de chegar diretamente até nós.

Caminhando atrás de Alonso, podia ver a velocidade com que a fumaça de frio saía de sua boca, mostrando o quão acelerada estava sua respiração.

— Olha, eu não quis entrar no assunto até hoje, mas eu preciso perguntar…

— Espera! — ordenou, ficando imóvel. — Algo ativou a segunda armadilha. — aproximando-se dela com cuidado.

Essa era bem maior do que as armadilhas para lobos e tinha pontas em forma de zigue-zague, formando, praticamente, dentes afiados naquela boca metálica

Estava fechada, mas não havia nada preso à ela.

— Pode ter sido um esquilo? — perguntei, curioso.

— Não, eles não tem peso suficiente pra ativar uma dessas. O mais certo é que ela deu defeito e se ativou sozinha.

Ele continuou agachado, como se esperasse algo. Ele tentava disfarçar, mas concluí que ele estava tomando fôlego.

Ainda ofegante, ele levantou-se e continuou a caminhar.

— Alonso, eu tenho que lhe dizer: tem algo errado com você! — falei com um tom firme. — Quanto mais os dias passam, você fica cada vez mais fraco. Primeiro achei que pudesse ser um resfriado ou algo assim, mas você nunca se recupera. Tem quase dois meses que você só piora. Precisa ir ver um médico.

Pela segunda vez em vários dias, o sorriso dele sumiu novamente. Ele parou de caminhar, sentou-se sobre uma pedra tomando ar e fez um sinal para que eu me aproximasse.

— Você está certo quanto a minha saúde, mas eu não preciso ir ao médico. Eu já fui!

— Nesse caso você deveria descansar. Não pode ficar aqui fora, seu estado pode piorar.

— O que eu tenho não é algo que vá passar sozinho. Meu corpo vai definhar aos poucos até que eu não possa mais me mexer. Depois disso só a morte me aguarda.

Aquilo foi um choque. Quando tudo parecia tranquilo, quando finalmente encontrei paz, a morte rondava novamente.

— Não é possível que não haja cura nos dias de hoje, a ciência está bem avançada. Vamos para a cidade grande, lá vamos dar um jeito.

— E como vou pagar por algo assim?

— Não precisa se preocupar com dinheiro. Eu dou um jeito nisso. — minhas economias ainda estavam valendo.

Ele me encarou por longos cinco segundos e então voltou a sorrir.

— Espero que não esteja me dando falsas esperanças, garoto. Mas não conte aos outros, não quero preocupá-los.

— Então temos que inventar uma boa desculpa para irmos até lá.

— Você é esperto, sei que vai pensar em algo.

Alonso se esforçava para levantar-se, quando seu instinto de caçador o fez congelar. Fez um sinal com a mão para que eu também não me movesse e obedeci.

Ouvi sons da vegetação se movendo e galhos quebrando, quando olhamos para trás, lá estava ele, um enorme urso polar.

Por um instante fiquei paralisado pela enorme surpresa, então percebi que o urso seguiu na direção de Alonso e minha reação foi a de puxa-lo com força, tirando-o de perto do animal.

Alonso desequilibrou e caiu na neve, então me coloquei em sua frente, apontando a lança para o urso, que rosnava enquanto dava pequenas patadas na lança.

Mesmo claramente não usando muita força, os golpes do urso eram pesados e foi difícil de manter a lança apontada para ele.

Alonso se arrastou para trás e preparou sua espingarda, mas seu coração parecia que iria explodir e ele mal conseguia respirar.

O urso fez menção de que iria em sua direção, então o espetei com a lança.

O animal deu dois passos para trás e então se ergueu, ficando em duas patas. Era uma monstruosidade com mais de dois metros de altura.

Não era a primeira vez que enfrentava um animal selvagem, mas nunca algo daquele tamanho. Alias, nem era para um urso polar existir naquele lugar.

O espetei novamente com a lança, porém, com um único golpe da pata dianteira, a fera partiu o cabo da lança em dois, arremessando a ponta de metal à vários metros de distância.

De imediato saquei minha faca, enquanto dava rápidas olhadelas para Alonso.

— Agora seria uma boa hora pra dar um tiro nesse bicho.

Alonso estava suando, extremamente ofegante e suas mãos tremiam.

— ALONSO! — gritei, tentando acordá-lo do transe, mas podia ser que terminasse de matá-lo, caso o seu problema fosse no coração.

Senti um frio na espinha. Eu não morreria, mas temia pela vida de Alonso. Eu teria que dar um jeito de afastar aquele monstro dali.

À minha direita havia um barranco, então decidi atrair a fera para lá.

Gritei e rosnei, dando golpes no ar com a faca em sua direção e o urso parece não ter gostado da provocação. Ele se abaixou novamente, colocando as quatro patas no chão e correu em disparada na minha direção.

Mal tive tempo de correr quando senti a patada certeira na lateral do meu corpo, me jogando barranco abaixo.

Fui arremessado e caí na neve, rolando alguns metros, enquanto o urso voltava a investir contra mim.

Não houve tempo para me levantar. Apalpei o chão até encontrar uma pedra, enquanto na outra segurava a faca e, quando o animal chegou em cima de mim, golpeei seu focinho com a pedra.

Certamente o feriu, mas não o suficiente e ele retribuiu mordendo meu braço e golpeando com suas enormes garras a lateral do meu corpo, ao mesmo tempo em que eu o golpeava com a faca, em uma batalha de resistência a dor.

Apesar de ser imortal, a dor era muita e eu teria perdido o embate, se não fosse o disparo certeiro de Alonso, atingindo a cabeça do monstro que despencou em cima de mim.

Meu braço estava ferido, mas não tanto quanto a lateral do meu corpo, que estava destruído.

Apoiando-se na espingarda como se fosse uma muleta, Alonso conseguiu descer o barranco e me ajudou a sair debaixo do corpo do animal.

— Mas que droga, essa ferida está horrível. — ele disse, vendo a quantidade de sangue e minha roupa rasgada.

— Parece pior do que realmente é. — menti, esforçando-me para suportar aquela dor. — A maior parte do sangue é do urso. Eu esfaqueei ele enquanto estava em cima de mim.

— Consegue caminhar?

— Consigo até carregar esse urso pra casa. — afinal, aquele era o plano inicial.

Alonso havia trazido cordas e material para construirmos um trenó rústico e arrastar o cadáver do urso de volta conosco. Contornamos o barranco até encontrar uma área menos inclinada e seguimos em direção à cidade.

— Você tem certeza de que está bem? — me perguntou Alonso.

— Eu é que deveria perguntar isso. Você não devia se esforçar tanto.

— Posso aguentar, é só fazer algumas pausas no caminho e vou conseguir. Seu ferimento ainda está sangrando?

— Já está parando, alias, quando você falou urso, não imaginei que fosse um urso polar. Como pode haver um desses aqui? Afinal, estamos no sul.

— Não sei lhe dizer como, mas fazem poucos anos que eles apareceram por aqui. Talvez tenham migrado.

— A distância é muito grande, não acho que tenha sido isso.

— Só o que eu sei é que tudo começou após o grande estrondo.

— “Grande estrondo”?

— Aconteceu um ano antes de você chegar aqui. Um dia, ouvimos um grande estrondo pela cidade inteira, parecia ter vindo da cidade à leste daqui.

— E o que era?

— Até hoje não sabemos, mas desde então foi que os lobos se tornaram mais agressivos e os ursos polares apareceram. Quando você veio para esta cidade não viu nada de estranho no caminho?

— Não! Até porque eu vim pela estrada do oeste.

Eu já havia visto muitas coisas bizarras na vida e aquela era só mais uma, mas me deixou curioso.

Fizemos seis paradas ao todo, para que Alonso pudesse descansar, até que finalmente chegamos em casa.

Fomos recebidos por Isidora e Laura, que logo se assustaram com o sangue em minhas roupas.

— Calma! Calma! Não é tão grave! — falei logo de cara, antes que entrassem em pânico. — A maior parte é sangue do urso.

— “Maior parte”? — retrucou Laura. — Então tem sangue seu aí também.

— Tem, mas foi um corte pequeno no braço. — o corte no braço havia sido fundo e os dos corpo mais ainda, mas não tinha como eu explicar as feridas sumirem completamente em um ou dois dias, então preferi não deixar que vissem o estrago. — Só preciso de um banho quente, pode colocar a caldeira a esquentar, meu amor?

— Não quer que eu dê uma olhada primeiro? — Laura insistiu.

— Não mesmo, obrigado!

Laura aqueceu a caldeira e entrei no banho.

Quando a água passava pelos cortes abertos na lateral do meu corpo eu mordia minha própria mão para não gritar de dor, mas pelo menos o sangramento já estava parando.

Ao terminar, enfaixei o tórax, para que não manchasse minhas roupas.

Quando saí, vi Benjamin saltitando de alegria pela sala.

— Papai disse que você lutou com o urso. — me perguntou o garoto, maravilhado. — É verdade?

— Eu meio que tomei uma surra dele. Foi seu pai quem me salvou.

— Mas o papai disse que você espetou a lança no urso e depois rolou de um barranco com ele, só usando uma faca.

— Uma faca e uma pedra, mas eu estava perdendo. Seu pai é quem é o herói.

Laura apertou meu braço e falou baixinho em meu ouvido.

— Você rolou com um urso? — falando entre os dentes, claramente irritada. — Podia ter morrido.

— Eu sei! — respondi no mesmo tom. — Não era esse o plano, mas o bicho nos pegou desprevenidos.

— Nunca mais faça isso, entendeu? Nunca mais!

— Entendido.

Depois de remover o couro e dividir a carne em vários recipientes, Alonso e eu nos preparamos para sair novamente. Desta vez iríamos à cidade grande.

— Não entendo porque precisamos vender uma parte da carne. — perguntou Isidora. — Para quê precisamos de dinheiro aqui?

— Tem algumas coisas que podemos comprar que vão nos ajudar. Minha munição para a espingarda, por exemplo. — respondeu Alonso. — Não iremos demorar. Em dois dias estaremos de volta.

Laura se aproximou de mim, deu-me um abraço e um beijo.

— Fique longe dos ursos. — ordenou ela, com um leve sorriso no rosto.

— Pode deixar, capitã! — fazendo sinal de continência.

O pequeno Benjamin ainda estava elétrico e também veio se despedir.

— Quando voltarem, quero que a gente faça um tapete com a pele do urso. Eu ajudo.

— Com certeza, meu filho. — respondeu o pai, segurando-o no colo. — Vamos indo, Nicolas.

Ambos com mochilas nas costas, partimos em direção ao norte em pleno meio dia.

Enquanto passávamos pela cidade, os outros habitantes acenavam, pois todos lá se conheciam. Algo normal em uma cidade pequena.

Quando passamos pela última casa, uma estrada por entre a neve nos aguardava.

Aqueles que moravam perto dela sempre se reuniam e limpavam a estrada, removendo o excesso de neve que se acumulava, pois alguns deles precisavam utilizar aquele caminho seguidamente, indo até o vilarejo ao lado.

Caminhamos até uma bifurcação, onde a continuação à direita levava ao vilarejo vizinho e o caminho da esquerda nos levava para a cidade grande.

Escolhemos o caminho da esquerda, porém, por quase não ser utilizado, não havia sido limpo e nossos pés afundaram na neve novamente.

Estávamos preparados para isso, mas Alonso, enfraquecido, tinha dificuldade para vencer o obstáculo que a natureza proporcionou.

O ferimento na lateral do meu corpo também dificultava a minha caminhada e certamente doeria a cada vez que eu respirasse, mas a muito tempo eu tinha deixado de fazer isso. Me parecia algo inútil, já que respirar não era necessário para me manter vivo.

Caminhamos por horas, avistando sempre o mesmo cenário desértico. Subimos uma colina e então descemos, apenas para subir em outra e descer novamente, repetindo o processo sei lá quantas vezes.

Alonso suportou bem a caminhada, parecia estar um pouco melhor, mas sua respiração era ofegante.

A noite caiu e chegamos à um paredão que nos protegia do vento, então fizemos uma parada para descansar e nos aquecemos em frente à uma fogueira, enquanto preparávamos espetinhos com a carne do urso.

— Acha que as garotas desconfiaram de algo? — perguntei.

— Laura não, mas Isidora já percebeu que ando mais fraco. Tentei convencê-la de que era apenas um resfriado, mas nenhum resfriado dura tanto tempo, não é?

— Assim que sua cura estiver encaminhada, vai contar à elas?

— Se eu estiver curado, não tem motivo pra contar.

— E se… Por acaso acontecer o pior…

— E não houver cura? Aí sim  não contarei.

— Vai chegar um ponto que não vai ser mais possível esconder.

— Garoto, deixe o futuro para o futuro. Não apresse as coisas. Quando chegar a hora eu vejo o que fazer, não adianta pensar em algo que ainda não aconteceu.

— “Se” chegar a hora, você quer dizer. Foi só uma suposição. Tenho muita convicção de que sua cura está na cidade grande, te esperando.

Alonso retirou a carne espetada da ponta do galho, que servia como espeto improvisado, levando-a à boca.

— Espero que esteja certo, garoto. Quero poder viver o suficiente para criar os netos que vocês um dia vão me dar.

Acampamos ali mesmo, utilizando sacos de dormir, deitados próximos a fogueira.

Foi uma noite fria, mas suportável e calma.

Pela manhã, comemos um bolo preparado por Isidora e, após alimentados e descansados, levantamos acampamento.

Enquanto prosseguíamos com a viagem, as palavras de Alonso começaram a martelar na minha cabeça. A parte sobre “netos” em especial.

Nunca me passou pela cabeça o que aconteceria se eu tivesse um filho.

Ele herdaria algo místico de mim, devido a imortalidade?

Lembrei que toda a parte que fosse retirada de meu corpo retornava para ele em algum tempo, a regra valia até mesmo para o meu sangue. Como funcionaria para o resto?

Será que eu não poderia ter filhos?

De repente um mundo de perguntas que sempre tentei evitar vieram a minha cabeça.

De onde teria vindo aquele cubo?

Existem outros como ele?

Existem outros como eu?

Algumas destas perguntas eu jamais teria a resposta, mas decidi que teria de procurá-las assim mesmo.

Por hora eu esqueceria delas e me concentraria no objetivo atual, que era curar Alonso e retornar para nossa família.

Os cenários se repetiram durante o restante da viagem e consumimos quase metade de nosso alimento, quando finalmente avistamos a cidade grande.

Passamos por mais quatro colinas até chegarmos na mais alta, que era também a mais próxima da cidade.

Subimos no topo, mas a alegria da chegada durou pouco.

Era pouco mais que quatro horas da tarde, mas não importava para onde olhássemos, não havia movimentação alguma.

Não era possível ver nenhuma pessoa nas ruas ou passando pelas janelas nas casas, não haviam veículos circulando, nenhum som era produzido naquela que parecia ser uma cidade fantasma.


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Notas finais do capítulo

Observações e críticas construtivas serão bem vindas!



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