Descalça escrita por nathaliacam


Capítulo 2
I. E-mail Surpresa


Notas iniciais do capítulo

A inspiração inicial para esta fanfic veio há seis anos, com a música Aquela dos 30, da Sandy. Antes tarde do que nunca, não é mesmo?



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Capítulo I. E-mail surpresa

Dois anos antes – Março de 2018

Bella fechou os olhos, as pernas cruzadas balançando no ar. Engoliu seco, tentando controlar a respiração e o nervosismo. Não devia demorar muito, não é? Não, não devia.

A culpa de toda a tensão foi de seu orientador, que disse que ela precisava "preparar-se para o pior", porque os componentes da banca eram os mais rígidos do departamento.

Mas ela não seria reprovada. Não, não seria. Seu orientador teria feito ela modificar tudo a tempo se percebesse uma real chance de reprovação. Esse era o papel dele, afinal de contas. E até que as pessoas nem fizeram muitas perguntas ao fim da defesa, não é? Poucas. Pouquíssimas. Isso era um bom sinal.

Certo?

Bella franziu o cenho, sem estar muito certa daquela afirmação. Podia ser que eles já tivessem lido tudo e resolvido reprovar sem dar chance de argumentação. Podia ser, sempre podia ser.

"Bella!"

Ela abriu os olhos, olhando para a direita sem mover a cabeça, enxergando pelo canto de olho sua mãe caminhando em sua direção, sorrindo. O salto alto dela bati no chão branco e fazia um barulho irritante. Respirou fundo, mais uma vez tentando se controlar.

Se ela fosse reprovada, sua mãe também teria alguma responsabilidade. A culpa também seria dela, porque, pelo amor de Deus, Renee não tinha nada que ter feito aquele discurso emocionado sobre como estava orgulhosa de Bella, e incluir neste discurso o fato de Bella ter verdadeiramente surtado nas últimas semanas. As palavras exatas que ela jamais esqueceria terem vindo de sua mãe foram "Ela estava tão nervosa, pobrezinha, mal conseguia dar aulas. Não me deixava ir à casa dela, dizia que eu precisava ficar longe para que ela pudesse se comportar e tirar todas as partes que contava ter chorado em sua pesquisa de seu texto". Se as partes haviam sido apagadas, a intenção era que elas simplesmente sumissem e não fossem de conhecimento da banca.

Bella apertou os olhos, engolindo seco.

"Oi, mãe."

"Estão te chamando lá dentro," ela sorriu, apontando com o dedão na direção da sala de defesa, "Já têm o resultado."

"Ah," Bella se levantou, respirando fundo como se seu coração não estivesse acelerado e batendo em sua garganta, "Obrigada."

Ela começou a andar em direção ao local onde receberia o resultado do esforço dos últimos quatro anos, equilibrando-se sobre os saltos. Sua mãe, entretanto, puxou-lhe pelo braço. Bella olhou em questionamento, mas Renee ainda tinha o sorriso nos lábios.

"Parabéns, meu amor. Estou orgulhosa de você. Seu pai está também, ele sente muito por não poder estar aqui neste momento."

Bella forçou um sorriso amarelo, agradecendo silenciosamente ela ausência de Charlie. Ele provavelmente se recusaria a tirar o traje de policial e a arma da cintura. Seu visual não combinaria em nada com o que Bella defendia em sua pesquisa, bem como suas ideias não combinavam com o que ela acreditava e se dedicava a estudar desde a graduação.

Renee, então, entrelaçou os dedos nos de Isabella e a puxou para si, beijando-a no rosto, enquanto as duas voltavam a caminhar. Encarando o amontoado de cadeiras vermelhas que mais pareciam poltronas, e a mesa comprida da banca avaliadora ainda da porta da sala, Bella fechou os olhos e respirou fundo.

Por favor, que dê tudo certo.

[...]

Creep In a T-Shirt – Portugal. The man

Quando Bella fechou a porta de seu apartamento, mais tarde naquela noite, ela ainda se sentia levemente bêbada. Não exatamente levemente, porque ela não sabia quantas vezes havia esvaziado a taça de vinho para enche-la novamente.

O silêncio era confortável. Ainda com a mão na maçaneta, ela respirou fundo e fechou os olhos. Ela devia estar feliz.

E estava. Estava aliviada, na verdade. Seu peito era leve, porque finalmente ela começaria a viver tudo o que mais queria.

Bella soltou a maçaneta e olhou par a ataca de vinho quase vazia em sua mão esquerda. Rodeou o líquido escuro dentro da taça e mordeu a parte interior da bochecha. Seu cenho se franziu e ela mordeu o lábio inferior antes de derramar o conteúdo restante na taça na boca.

Seus pés descalços pisaram pela madeira escura do chão do apartamento, até a sala de estar. Pelo menos não estava uma bagunça, e Alice havia ajudado a terminar a zona na cozinha. Era sorte que Suzie estivesse dormindo no colo de Jasper há algum tempo, ou minha melhor amiga daria a desculpa de sempre.

Não que fosse uma desculpa e um bebê de sete meses não desse muito trabalho.

Não que Bella soubesse disso também. Ela só imaginava.

Ela se sentou no tapete claro da sala, o apartamento pequeno recebendo-a em seu silêncio pessoal pela primeira vez desde que ela podia finalmente se chamar de doutora. Doutora em filosofia. Doutora em filosofia pela Portland State Univertisity. Quanto tempo será que demoraria até que seu nome e seu perfil fosse mudado no site da Universidade de Forks?

Bella mordeu a unha do dedo indicador esquerdo enquanto pensava naquilo, apoiando o cotovelo no joelho. Não devia demorar muito.

A música ainda tocava, e Bella olhou para o aparelho de som ligado no canto da sala. Surpreendia que Jasper não tivesse mudado a playlist conectada ao Spotify conectada ao aparelho. Portugal The Man sempre era alvo de suas reclamações, mas, segundo Alice, era uma das bandas preferidas de Suzie.

Bella gargalhou sozinha com a ironia da situação. Jasper, que vivia criticando a melhor amiga de sua esposa pelos últimos oito anos por seu gosto musical, agora tinha uma filha que compartilhava dos gostos da madrinha. O Karma era mesmo um filho da puta.

Cobrindo o rosto com as mãos, Bella se deixou rir mais um pouco. Ela podia, porque estava bêbada, rindo de pensamentos aleatórios, mas, olha só, ela era uma doutora. Doutora! Em filosofia! Uma mulher doutora em filosofia! A primeira daquele departamento cheio de homens que se achavam deuses, especialista em seu filósofo preferido da vida inteira, confrontando seu pai da maneira mais sutil e possível. Confronto vitorioso e de sucesso.

Ela suspirou fundo, encostando a cabeça na beirada do sofá, e se deixou lembrar das conversas infinitas que teve com o pai sobre a escolha de seu curso em primeiro lugar. Quer dizer, a filha do Xerife Swan estudando filosofia? Coisa sem futuro, de gente maluca, que não tem mais o que fazer. Foi tudo o que ela teve que escutar. Ela, inclusive, teve de trabalhar no StarBucks nos primeiros semestres da faculdade para paga-la, porque Charlie se recusou a usar a reserva feita para o ensino superior da filha com a carreira por ela escolhida.

Pelo menos ele havia mudado de ideia no meio do caminho, quando viu que Bella não desistiria do que queria. Ele devia saber desde o início, já que a persistência era uma das famosas características da filha.

Até os dias atuais a relação entre Charlie e Bella já havia passado por vários altos e baixos, com períodos de extremo carinho e orgulho mútuo, e períodos de ressentimentos, mágoas e infelicidade.

O segundo período citado normalmente vinha em época de eleições, ou quando o assunto "política" surgia na roda. O primeiro, quando a família saía para beber fora.

Bella riu consigo mesma, dando de ombros. Havia valido a pena, ao fim. Na ligação recebida há algumas horas, Charlie parecia verdadeiramente feliz pelo sucesso e pela formatura da filha. Isso era bom, mas não compensava o fato de que sua relação fosse tão inconstante e de que Bella evitava a casa dos pais para não ter que brigar a cada fim de semana.

Era a distância segura, ela sempre dizia.

E por que mesmo ela estava pensando no pai mesmo? Ela devia estar muito bêbada...

Bella se levantou, sacudindo os quadris levemente no ritmo da música que ainda tocava, e foi até a cozinha. Depois de passar a mão molhada pela testa, ela lavou a taça e a deixou no escorredor junto às demais, lavadas por Alice.

Banho era fundamental. Era, mas Bella abriria mão desse fundamento agora, e que se dane. Ela morava sozinha, de qualquer maneira. Não fazia diferença.

Algum tempo depois, Bella se atirava na cama vestindo uma camisa larga de algodão e a calcinha que já vestia, porque amanhã ela estava de folga de qualquer maneira. Suspirando fundo, ela fechou os olhos e se deixou entregar à inconsciência.

Até que foi acordada.

Na mesa de cabeceira, vibrava o celular de Bella. Ela remexeu-se inquieta, resmungando em seu sono. Esperando até que a vibração cessasse.

E cessou.

Até que começou novamente.

"Ah, mas que-"

Bella esticou o braço e, abrindo apenas um olho para a claridade extrema que vinha da tela do celular, desbloqueou o aparelho com a digital e viu o papel de parede com densas árvores do norte do Canadá aparecerem ao fundo de uma notificação de e-mail.

"Por que foi que esse celular vibrou desse jeito por causa de uma notificação de e-mail?"

Mesmo com a pergunta retórica e solitária, Bella suspirou contrariada e sentiu o sono se esvair de seu organismo. Era melhor abrir aquela merda de uma vez, porque podia ser algo relacionado ao certificado de conclusão de seu doutorado ou coisa do tipo. Era difícil àquela hora da noite, mas impossível, não era.

A caixa de entrada, porém, mostrava o e-mail de um site chamado "Future Me". Franzindo o cenho sem conseguir se recordar do nome, ela quase deslizou o e-mail para a esquerda a fim de apaga-lo, mas sua curiosidade falou mais alto, e ela tocou o e-mail não lido.

Future Me – Uma carta de 13 de Março de 2008

O e-mail a seguir veio do passado, escrito em 13 de março de 2008. Foi enviado do passado pelo site .

Querido eu do futuro,

Como vai você? Acho que essa é a forma mais tradicional de começar uma carta (e-mail), e eu nem tirei o "querido eu do futuro", sugerido pelo site, mas achei uma fofura e resolvi escrever assim mesmo. Esse site foi uma indicação de Rosalie, mas achei a ideia boa o suficiente para arriscar. Só tenho receio de em dez anos isso ser enviado para uma caixa de entrada qualquer, porque pode ser que as pessoas nem usem mais e-mails, ou que você tenha trocado o endereço de uso contínuo. Entretanto, vou pensar que isso daqui vai ser entregue com êxito.

A minha intenção inicial, era escrever no dia do meu aniversário de vinte anos para que você pudesse recebe-lo aos 30, coisa bem significativa. O problema é que estamos em março, e ainda faltam seis meses até lá. Se eu não estiver muito mudada, você vai compreender a minha ânsia. Sendo assim, muito prazer. Meu nome é Isabella Marie Swan e tenho dezenove anos e meio. Como sei que não receberei notícias suas pelos próximos dez anos, vou falar apenas de mim, e aguardo ansiosamente pelo que você tem pra me contar no futuro.

Neste momento, eu estou na faculdade, um alívio desde que voltei para casa para o fim do ano passado e tive mais uma briga com o papai. Como você deve se lembrar, ele não se agrada muito com a escolha da nossa profissão, e eu simplesmente não aguento mais ouvir ele dizer que passarei fome pelo resto dos meus dias e que a única saída para mim é o magistério.

Como se ser professora fosse um fracasso.

Não é um fracasso. É o que eu quero, é o que eu gosto. Por isso, persisti na escolha, o que deixou ele bem chateado. Mesmo assim, Charlie parou com aquela ideia ridícula de proibir que eu usasse as economias para a faculdade com o meu curso, e acho que isso teve grande influência da mamãe, mas não vou reclamar. Foi ótimo poder me dedicar a projetos de pesquisa e bolsas de iniciação científica na faculdade, que pagam menos, mas que me ajudam a cavar uma vaga no futuro.

Disso tudo você deve se lembrar, porque, se tudo der certo, foi o que te ajudou a chegar onde você – espero muito – está. Me mata de curiosidade saber tudo o que você fez pelos próximos (ou últimos?) dez anos, então vou deixar aqui embaixo uma lista de tudo o que eu espero ouvir de você e viver no futuro:

A tão sonhada tatuagem: vai matar o Charlie de raiva? Vai. Mas o corpo é seu. Tenha várias espalhadas pelo corpo, ou pelo menos uma que seja bem grande. Ou pequenininha, mas significativa. Enfim! Tenha uma tatuagem.

Mestrado: por favor, me diga que você fez uma dissertação muito boa e que conseguiu, com ela, uma vaga no item a seguir:

Doutorado: as pessoas já te chamam de doutora? Seus alunos se referem a você como "Dra. Swan"? Qual foi o tema da sua tese?

Viajar sozinha: de preferência pra praia. Você tem uma mania ridícula de ficar esperando pelos outros para fazer tudo, Bella, e uma viagem sozinha te faria um bem enorme. Independência é tudo o que você quer na sua vida hoje.

Fumar maconha: todo mundo acha que você faz isso aos montes na sua faculdade, mas você não faz. Não vou mentir e dizer que o prédio que você estuda não é aquele em que é mais fácil conseguir essa bendita erva, mas em dois semestres, ainda não experimentei. Quero saber a sensação.

Entrar num curso de desenho com Rosalie: você sempre foi fascinada pelos desenhos de sua melhor amiga, então acho que essa seria uma excelente oportunidade. Li há alguns dias que ser ruim em algo é o primeiro passo para ser bom. Vai com fé!

Tenha seu próprio apartamento: você e Charlie terão se matado se a resposta for negativa.

Fale mais de um idioma: seu alemão é bom, mas foi fruto do Ensino Fundamental e Médio, além da quase obrigação de saber esse idioma para estudar filosofia. Você fala francês? Espanhol? Italiano é lindo!

Ter mais amigos: amo Rosalie, tenho vários colegas na faculdade (você ainda conversa com Peter e Charlotte?), mas amigos, poucos. Isso faz bem pra você, e eles te ajudariam no item a seguir.

Sair mais pra jantar fora e dançar: você arrisca umas reboladas e uns passinhos depois de alguns copos de cerveja e se diverte muito. Seria ótimo não precisar do álcool para me desinibir e dançar a vontade.

Cuidar mais de você mesma: hoje eu não tenho dinheiro para ir sempre ao salão de beleza, fazer tratamentos estéticos, cuidar das unhas e da pele como Rosalie faz, mas acho que hoje as suas condições não são as mesmas. Vai ser ótimo para te ajudar com a autoestima.

Melhorar sua relação com seus pais: Charlie e eu pisamos em ovos sempre que conversamos, Bella, e isso é péssimo. Especialmente em anos de eleição, como agora. Tenho sérios problemas com Bush e tudo o que ele fez em seus mandatos, e isso bate de frente com meu pai. A dimensão política é importante (você estuda isso o tempo todo), mas não deixe que ela atrapalhe e te distancie ainda mais do seu pai.

Conhecer pelo menos três países diferentes: sair pra passear e pegar a chuva de Londres sem guarda-chuva, passar a virada do ano em Paris, ficar impressionada com os prédios de Dubai, pelas flores da Holanda, comer pizza na Itália. Meu coração se aquece com as possibilidades.

Dormir numa barraca: não parece divertido?

Comer algo bem diferente: e esquisito! Tente!

Nadar nua: pode ser numa praia de nudismo, ou numa piscina. Deve ser muito legal.

Aprender a cozinhar: eu só percebi a falta que isso faz depois que vim morar na faculdade. Cara, eu passo muito perrengue aqui! Se não fosse a Jane, eu estava muito ferrada!

Vá a um show de rock grande: ou um festival. Festivais são ótimos. Se aventure!

Casamento e filhos: parte mais delicada do processo, eu sei que isso pode ser meio complicado, mas eu realmente espero que você tenha conseguido isso, Bella. Sonho encontrar alguém para conversar sobre tudo e qualquer coisa na cama. Numa cama que seja compartilhada. Falar sobre filosofia, política, economia, música e cinema depois de fazer sexo. Sabe, esse tipo de coisa. E filhos... Pode ser que você ainda não os tenha, mas espero que esteja planejando. Isso é muito importante pra mim.

Acho que é isso.

Por favor, me dê boas notícias. Agora vou enviar isso e voltar a ler filosofia medieval (você aprendeu isso? Porque na boa... Tô sofrendo!).

Te vejo em dez anos!

Bella já tinha a mão na boca entreaberta ao fim da carta. Em seu peito, havia um misto de sensações. E uma delas era predominante: o incômodo.

Incômodo primeiramente, porque Bella não se via mais naquelas palavras. O tom leve de sua fala, a escrita leve, que demonstrava o bom humor da adolescente universitária não tinha mais nada a ver com a escrita cadenciada que ela tinha hoje em dia. Cheia de vícios de linguagem ocasionadas pela profissão, e pela escrita acadêmica que havia invadido seu vocabulário cotidiano e sua vida pessoal.

E que vida pessoal?

Quer dizer, é claro que Bella tinha vida pessoal. Ela tinha sua casa, seu tempo sozinha, as músicas que ela gostava de ouvir, o ócio que normalmente vinha acompanhado de longas horas de sono. Encontros, as vezes, com outros professores universitários ou cientistas de diversas áreas, porque Bella frequentava sim lugares diferentes. Colóquios, palestras, congressos, seminários. Nesses eventos – em alguns lugares diferentes do país e no Canadá -, Bella conhecia homens e com eles saía para jantar fora e ter um encontro entre dois adultos.

Isso devia significar que ela tinha cumprido alguns itens da lista do que esperava ter feito aos dezenove anos.

Não é?

"Mas que..." ela sussurrou para si mesma, o dedão percorrendo o vidro da tela do celular para que ela relesse alguns trechos, "Como eu não me lembro disso?"

Porque ela definitivamente não se lembrava. Nem do momento que escrevera, e nem de ter escrito, em primeiro lugar. Muito menos do fato de que Rosalie era uma frequentadora assídua daquele site.

Fazia um tempo desde que ela havia conversado com Rosalie em primeiro lugar, ou mesmo pensado nela, mas, ela devia se lembrar. Certo?

Sem conseguir entender, Bella suspirou fundo e bloqueou novamente o celular, resolvendo tentar ignorar aquela carta até o dia seguinte. Seu cansaço ainda estava em cada canto de seu corpo, e não havia tempo para ficar lendo esse tipo de coisa agora.

O doutorado, pelo menos, havia acabado de terminar. Minha eu do passado ficaria orgulhosa de ter sua carta enviada no dia exato em que defendi e tive minha tese aprovada, ela pensou, fechando os olhos e roçando a bochecha contra o travesseiro.

As duas ainda tinham algo em comum, mesmo que parecessem ser pessoas completamente diferentes.

[...]

Não se podia dizer que Bella tivesse realmente pensado nos dizeres da carta pelo restante do fim de semana. Ao amanhecer do dia seguinte, ela quase não se lembrava o que era de fato verdade, e o que era parte do sonho que teve com a época da graduação, dez anos atrás. Chegou à conclusão, depois do banho do sábado de manhã, que, além de jamais adiar banhos a noite novamente, era natural que ela tivesse mudado ao longo do tempo. Aos dezenove anos, ela ainda não tinha noção de como a vida funcionava de fato, e como era viver sob o próprio sustento. É claro que sua formação influenciaria no que ela era pessoalmente dizendo, porque os valores estudados sempre se incorporam à personalidade de quem estuda, de uma maneira ou de outra.

E que bom que seu vocabulário havia mudado, não é mesmo? Quem levaria a sério uma professora universitária falando "na boa"?

Na segunda-feira, tudo havia voltado à normalidade – inclusive a euforia pela conclusão, apresentação e defesa da tese. Seus ânimos se alteravam a cada vez que um colega de departamento lhe dava os parabéns – mesmo que a ironia ou o escárnio estivessem presentes em cada uma de suas palavras e expressões -, mas não é como se muita gente dali soubesse ou se importasse em saber de sua vitória.

Seu o nome na porta de seu gabinete e no site da instituição mudariam, e seu salário aumentaria, além de Bella finalmente poder coordenar suas próprias pesquisas. Entretanto, a rotina em sala de aula sempre seria a mesma, porque o mundo sumia quando ela fechava a porta da sala e encarava a turma.

"Bom dia!"

O sorriso era sempre sincero. Bella fazia o que amava, com o maior afinco possível, com a maior dedicação que seu tempo lhe permitia. Lecionar era transportar alunos a outra dimensão. Era ensinar para debater em alto nível, e, em especial em filosofia, era ensinar o aprendizado do questionamento.

A turma respondeu quase em uníssono enquanto Bella conectava seu notebook ao projetor da sala de aula. Com a apresentação da aula aberta, ela se dirigiu novamente à turma:

"Espero que vocês tenham feito da leitura do artigo indicado," ela sorriu, lançando uma piscadela para a turma, sabendo que muito provavelmente a leitura não fora efetuada por muitos deles, "Durante o sábado a noite, principalmente."

"Comecei na sexta a noite, na verdade," um aluno disse do fundo da sala, e todos os presentes gargalharam.

"Aposto que sim, Sr. Penny. Aposto que sim," ela riu, assentindo com a cabeça. Dirigiu-se então até a mesa no centro da sala e apoiou-se com o artigo mencionado em mãos, "Bom, eu sei que esse material é um pouco mais difícil do que o que nós estamos acostumados, mas essa é uma disciplina optativa, pessoal, e nosso foco é sempre ler direto na fonte. Ler comentadores é sempre mais fácil, e vocês podem procurar esse recurso para tirar as dúvidas. Mas ler o autor em seus escritos é fundamental."

"Mas, Mestre Swan, isso aqui definitivamente não parece o idioma que a gente fala," a aluna mais próxima da mesa de Bella disse, "Eu lia dez vezes o mesmo parágrafo para não entender absolutamente nada!"

Naqueles momentos, Bella tinha certeza que havia nascido para ensinar.

Isso porque, ao longo de sua vida acadêmica estudantil, ela havia encontrado professores de todos os tipos, mas, em sua maioria, seus instrutores não passavam de instrutores, literalmente dizendo. Com toda certeza, um comentário como o feito pela Srta. Groom não seriam bem recebidos pelos professores que Bella teve, e deles, Groom receberia apenas um "sinto muito, você está no curso errado". Mas não era assim que ela queria ser.

"Eu entendo," Bella riu baixo, "Mas vai ficar mais fácil assim que essa aula terminar, eu prometo! Fiquem com o texto nas mãos, indico a página enquanto eu for explicando."

E essa era a parte gostosa da docência. A cada vez que um aluno dizia "ah!", sorria, e dizia que "agora tudo fazia sentido", Bella sentia que seu dia havia valido a pena. Filosofia não era fácil. Filosofia em textos puramente filosóficos era ainda mais difícil, mas era papel dela transformar esses assuntos em coisas acessíveis para seus alunos, para que eles pudessem, mais tarde, fazer o mesmo para outras pessoas. Esse era o trabalho dela como professora. E fazer isso não era um problema, porque, ao contrário do que seus professores achavam, os alunos da graduação não têm a menor obrigação de chegar à sala de aula dominando os textos indicados na bibliografia do curso.

Ao fim da aula, quando quase todos os alunos já tinham expressões bem menos confusas, Bella se sentiu aliviada e feliz.

"Pessoal, é isso. Obrigada pela presença, leiam o próximo capítulo desse livro, que é outro artigo, e repitam todo o processo. Anotem suas dúvidas, vamos tira-las na semana que vem."

Os alunos começaram a se retirar da sala, e Bella foi até seu computador, desconectando-o do projetor. Mirando o controle remoto na direção do aparelho, preso ao suporte no teto da sala, ela apertou o botão vermelho duas vezes. Empurrou para cima a tela de projeção e, quando voltou-se novamente para a mesa, havia um aluno com um sorriso torto segurando uma mochila nos ombros.

"Senhor Bradford!" Bella sorriu, fechando sua agenda, "Conseguiu entender o texto?"

"Ficou bem mais fácil depois da sua explicação," ele assentiu, "Essa parte é super difícil. Já disse que fiquei tentado a trancar a disciplina no início do semestre."

"Ainda bem que você teve paciência," Bella deu de ombros, "Fica fácil com a prática. Como tudo."

Ele imitou o gesto dela e deu de ombros.

"Não tenho muita certeza disso. Mas quero te perguntar sobre a sua defesa! Como foi?"

O sorriso de Bella se alargou imediatamente, e seus ombros relaxaram. Ela suspirou fundo.

"Foi ótimo. Fui aprovada."

"Ah, que bom! Parabéns, Mestre Swan- Quer dizer! Doutora Swan agora."

Bella gargalhou e assentiu, sentindo o prazer de poder aceitar aquele tratamento de um modo deliciosamente verdadeiro.

"Obrigada. Pois é, deu tudo certo!"

"Agora é relaxar, não é? Já pensou no que vai fazer para comemorar?"

Bella torceu a boca, pendurando a bolsa nos ombros e apoiando os livros com o braço livre, caminhando para fora da sala.

"Tive um jantar com meus amigos e família mais próxima em casa ontem. Não temos muito tempo para comemorar, Brandford. Meio do semestre, não são só vocês que têm trabalho. Agora finalmente vou conseguir tirar do papel o projeto de pesquisa no departamento. Devo abrir um edital de bolsa de iniciação, se você se interessar."

Foi a vez do outro fazer careta. Os dois saíram da sala, e Bella fechou a porta, caminhando pelo corredor esperando pela resposta do aluno.

"Não sei se quero participar dessas bolsas de iniciação agora, para falar a verdade."

"Você não tem interesse no mestrado?" Bella perguntou.

"É claro que tenho," ele riu, olhou para baixo, e retornou o olhar para a professora, "Mas gosto de levar a sério o dizer de um copo que eu comprei numa festa no campus uma vez." Bella ergueu as sobrancelhas, esperando pela continuação, "'Não deixe os estudos atrapalharem a sua faculdade'".

A gargalhada saiu da garganta de Bella quase acidentalmente. Brandford acompanhou a risada, e os dois pararam no corredor movimentado.

"Me lembro dessa."

"E aposto que você a levou a sério," ele piscou o olho direito, "Não foi?"

Na verdade, não.

"Mais ou menos," Bella deu de ombros, "Mas consigo entender seu raciocínio."

De fato, Bella conseguia. A fase da vida universitária com toda certeza representa muito mais do que o início da vida acadêmica de alguém. É também a primeira experiência de morar sozinho, de se cuidar sozinho, de ser independente, mesmo que não em todos os aspectos. Nesse caminho, porém, havia um mundo de escolhas, e todas elas levavam para um lugar no futuro.

E, se Bella tivesse levado aquela frase a sério, provavelmente ela não estaria onde hoje está.

Foi inevitável, porém, que Bella não se lembrasse do e-mail recebido dela mesma no fim de semana, que narrava sua versão mais nova com planos para o futuro que jamais aconteceram. E Bella não podia negar: os estudos atrapalharam sua faculdade naquele aspecto. Assim como sua vida, naquele aspecto.

Mas "atrapalhar" não era a palavra certa, ela concluiu mais tarde, enquanto fazia o plano de aula para o dia seguinte em seu gabinete. Eram escolhas. Caminhos diferentes trilhados. E ela não podia reclamar.

Apenas lamentar. Um pouco. Às escondidas. E negar esse fato até para si mesma.

[...]

"Mas aí eu não quis, sabe, Bella?" a voz de Alice disse do outro lado da linha, "É claro que a Mary é um amor, eu amo a minha sogra. De verdade, você sabe disso. Mas eu não quero que ela fique se intrometendo na criação da Suzie."

"Entendo perfeitamente," Bella assentiu, segurando o telefone contra o ombro enquanto mexia o molho do macarrão, "Ela é sua filha."

"Exatamente, ela é minha filha. O Jasper não gosta que eu fale isso, porque sempre vem com aquele argumento furado de que 'ela fez isso comigo, eu estou muito bem hoje', mas eu sou outra pessoa. Tenho outros valores. Ela até reclama que eu chamo a minha filha de Suzie!"

"Ué, por que?" estranhou, franzindo o cenho para o líquido vermelho na panela. Despejou as cebolinhas picadas e tornou a mexer, "O que tem a ver?"

"Ela disse que acostumar a criança com apelido não é saudável, porque faz ela perder a identidade. E que Suzanna é um nome lindo pra ser ignorado. Mas eu não estou ignorando! Eu sei que o nome da minha filha é lindo, a sugestão foi minha em primeiro lugar! Mas eu sempre fui chamada de Alice em vez de Mary Alice e 'estou muito bem hoje', como Jasper diz."

"E eu sempre fui chamada de Bella em vez de Isabella. Viva, vivíssima. Obrigada!"

"Pois é, então foi por isso que eu decidi que vou contratar uma babá para essas ocasiões," Bella assentiu, acompanhando a fala de Alice enquanto lavava as mãos na pia e procurava em seu armário um recipiente de louça fundo para colocar a macarronada, "Enquanto Jasper e eu trabalhamos, ela fica na escolinha. Perfeito. Quando precisarmos sair, contratamos uma babá. Não vou deixar a minha filha com a minha sogra, e nem com a minha mãe."

"Você pode deixa-la comigo também, na medida do possível," ela ofereceu, passando o pano de prato depois de ter passado água na louça branca, "Não me importo."

"Obrigada, Bella, eu sei disso!" O sorriso podia ser ouvido na voz de Alice, "Mas não quero ficar te atormentando com isso, não. Talvez quando formos fazer alguma viagem e tal. Eu não quero deixar essa dimensão de maternidade tomar conta da minha vida com Jasper."

Bella engoliu seco, novamente se lembrando da carta recebida. Murmurou para que Alice percebesse que ela ainda a escutava.

"Quero sair com ele, continuar como éramos quando namorávamos e depois de casados antes da Suzie nascer."

"Faz bem," falou baixo, "Você não pode," limpou a garganta, "Não pode concentrar numa coisa só."

"Exatamente. Ser mãe é um encanto, Bella, eu quero muito te ver passando por isso, mas é cansativo. Eu não quero ser mãe 24 horas por dia, porque eu sou Alice também. Alice esposa, Alice pessoa, Alice designer... Alice melhor amiga da Bella!"

Bella riu e mais uma vez deu razão à amiga. Alice era sábia, é claro. Sempre fora. Muito mais do que Bella – embora ela dissesse o contrário – porque soube balancear e fez tudo o que quis na vida.

Alguns minutos mais tarde, depois da ligação ter se encerrado quando Jasper pediu socorro à esposa para fazer a filha dormir, Bella sentou-se no sofá e, assistindo a um programa qualquer na televisão, comeu o jantar. Seus pensamentos foram, porém, à fala da amiga.

E, novamente, à carta.

Bella sonhou em ter filhos. Ela se lembrava disso também, ela sempre quis isso. Lembrava-se de fantasiar uma criança sem rosto correndo pela casa de seus pais, adaptando-se ao clima de Forks. De se sentir impaciente para que seu momento chegasse, para ter nos braços um bebê que reconheceria nela a segurança e o conforto que mais ninguém daria.

Mas esse sonho, assim como vários outros, ficou para trás. Perdidos em meio a outros planos, em anotações desesperadas para que os dados da pesquisa fossem entregues ao orientador dentro da data, nos textos que ela lutava para entender, no entendimento que ela queria passar a seus alunos. Na vida de Bella hoje não cabia uma criança. Muito menos um casamento, coisa também mencionada na carta.

Pela primeira vez, Bella se viu frente a frente com a verdade que provavelmente aconteceria em sua vida: perto dos trinta, ela não tinha um namorado. Sendo assim, ela também não conseguiria a estabilidade para ter um filho nos próximos cinco, seis anos, e, depois dali, seria arriscado demais uma gravidez.

Bella não seria mãe.

Provavelmente não se casaria também.

Uma lufada de ar ficou presa em seus pulmões quando ela se deu conta de que não foram os estudos que a atrapalharam a conseguir uma outra dimensão em sua vida: foi ela mesma. Ela não soube balancear, ela não soube pausar a vida profissional. Não soube dizer sim.

Ela não disse sim a ela mesma, não disse sim aos sonhos para além da vida acadêmica.

O prato de macarrão quase caiu de suas mãos, tamanho foi o ataque trêmulo que ela teve. Sua vida estava passando, e por mais que ela achasse um pouco tarde para ter a crise anterior aos trinta – faltando seis meses para que esse dia chegasse -, a crise era real. Estava em seu estômago, em suas mãos trêmulas, em seu olhar desfocado.

Aquele momento pode ter sido decisivo na vida de Bella. Ou talvez a decisão tivesse chegado junto ao e-mail em sua caixa de entrada na sexta anterior, ou talvez quando Bella o escreveu, há dez anos.

Ela ainda não sabia. Mas foi a decisão que ela tomou naquela noite de segunda-feira, quando uma tempestade de amedrontar caía lá fora, é que transformaria a sua vida a partir daquele momento.

E para melhor.


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Notas finais do capítulo

Comentários são motivações, inspirações e amor.