Cartas para Julieta escrita por Capitu


Capítulo 8
Da suavidade de um beijo a uma ferida de amor


Notas iniciais do capítulo

Olá Amorinhas, demorei muito eu seu e peço desculpas, o fim de OeP me deixou meio triste, mas vamos lá, espero seguir com você por pelo menos mais um mês com essa história, feita com muito carinho para o nosso Aurieta!
Recomendo que vocês assistam as cenas novamente para acompanhar a história, nesse capítulo faço referência a pelo menos três cenas centrais para a história, vocês verão ao longo do texto!
Obrigada pelo apoio e comentários tão amáveis, espero responder todos em breve!

Um abraço,
Line (@cafeerosas)



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Como cortar pela raiz se já deu flor?

Como inventar um adeus se já é amor?

(Morada- Sandy)

Estava clareando o dia quando Aurélio despertou, sentia-se completo e feliz por finalmente acordar ao lado de sua esposa após a longa temporada que esta havia passado em São Paulo. Como era sábado, o botânico decidiu que não levantaria tão cedo e por isto ficou ali admirando e velando o sono de sua esposa por incontáveis minutos.

Enquanto observava a respiração de Julieta, ele buscava redecorar as linhas de sua amada, seu cheiro e a sedosidade de sua pele, exposta sobre a dele; recordava os momentos doces e intensos que haviam vivido na noite anterior onde puderam matar a saudades de seus corações e corpos, pensava em cada sussurro e também nas palavras ditas, tanto ali no quarto como na sala da casa, quando ele descobriu como sua esposa se sentiu quando eles se beijaram pela segunda vez; a primeira vez que de fato haviam sentido a face suave e sensível daquele amor, que ainda nascia.

Em meio a estes pensamentos, lembrou-se que enquanto eles estavam na sala com os netos, ele lhe havia lhe prometido que leria sua carta que retratava aquele dia; assim, pensou que se sua esposa concorda-se eles poderiam aproveitar aquele sábado para compartilharem de suas memórias, especialmente aquelas que envolviam o começo daquele amor e as consequências que aquele beijo trouxera para o que seria o relacionamento deles. Assim, se lembrou que ainda carregava algumas perguntas sobre aquele momento, teria Julieta os despejado por estar ferida de amor? Ou apenas ignorou tudo que sentia para seguir com seu projeto de expansão ao Vale?. Embora achasse que tive as respostas, indicadas especialmente nas leituras do diário dela até aqui, ele gostaria de ouvir da própria se o que ele pensava era real.

Assim, Aurélio se levantou, depositou um beijo na testa de Julieta que apenas resmungou pelo fim do contato e do calor que sua pele dava sobre a dela e partiu rumo a cozinha; planejava despertar a sua amada do jeito que ele mais gostava, mimando-a com um café da manhã - “quase uma tradição nossa, iniciada desde o dia que nos amamos de  corpo e alma pela primeira vez”- pensou com um sorriso no rosto. Quando retornou, encontrou Julieta recostada sobre a cabeceira da cama, já desperta, vestida em sua camisola e hobby vermelhos, lendo um livro; assim que o viu ela marcou a página onde estava, retirou os óculos e disse:

 

 

— Bom dia meu amor, já te disse que me sinto tão especial quando você me traz café na cama?- finalizou abrindo um amplo e grande sorriso. De fato, aquele ato de seu marido a enchia o coração, sentia-se amada e cuidada, algo que por tanto tempo não soube o que era.

— Já disse sim, mas eu quero que você minha esposa adorada sinta-se sempre especial, porque você é e merece tudo que me for possível pra te fazer feliz, pra se sentir assim, especial e amada- finalizou entregando-lhe uma rosa sem espinhos.

— Essa rosa meu marido, como todas as outras que me trouxe ao longo destes anos me faz sempre relembrar que o seu amor me resgatou de uma vida cinza, dura e espinhosa, para um reflorescer doce, suave como estas pétalas, cheio de cor e novos aromas- finalizou cheirando a flor.

 

Aurélio então aproximou a bandeja de Julieta, deu um suave selinho em seus lábios e começou a servi-la; enquanto comiam aqueles pães, bolos e frutas, regados ao café amargo e saboroso, o casal trocavam olhares, pequenos flertes, roubavam beijos e sussurros ao pé do ouvido, aproveitando-se daquele silêncio da manhã para curtirem um tempo especial juntos.

Em algum momento desta interação Julieta avistou na bandeja o envelope com seu nome,  assim, o tomou-o nas mãos e o estendeu a Aurélio, um gesto para indicar que agora era a vez dele ler a carta. O Botânico então se levantou, retirou a bandeja da cama, voltou a sentar-se recostado na cabeceira, puxou Julieta para perto passando o braço sobre seus ombros, abriu o envelope e começou:

 

“ Estimada Julieta,

Creio que a partir deste momento posso de fato me referir a senhora sem algumas formalidades que cercam a nossa relação inicial; como já lhe disse anteriormente, já não podemos viver apenas como um devedor e a pessoa em que se deve, mas sim como um homem e uma mulher que se atraem. Me parece que nos reunimos em um outro tipo de vínculo, forjado no momento em que nossos olhares se encontraram e consolidado nas palavras de amor e no toque de nossos lábios que a meu ver não se encontraram apenas no calor do momento, mas sim porque entre nós há uma conexão real, talvez elaborada pelo destino. Esta conexão, pelo menos para este que vos escreve, nasceu no dia em que me perguntei quem era a senhora, neste momento percebi a admiração que tenho por ti, pela tua força, pela sua postura, pelo seu conhecimento e habilidade nos negócios e porque não dizer, se me permites, por sua beleza e pelo seu intenso olhar.

De fato a senhora povoa meus pensamentos quase que a cada segundo, e eu me pergunto o porque disso, talvez seja por estes seus mistérios combinados com a lembrança do gosto de seus lábios nos meus, de sua respiração tão próxima a minha, do toque de nossas mãos transpiradas e das vibrações produzidas dentro de nossos corpos quando estamos próximos. Este beijo, doce e singelo que demos esta tarde fez com que eu possa finalmente nomear o que sinto por ti... paixão, talvez um início de um sentimento nobre, puro e sincero, que é o amor. Decerto queiras me perguntar como posso afirmar com tanta convicção este sentimento real e crescente, e a resposta não é tão complexa para que eu não possa te dar; quando você está por perto sinto meu coração disparado, seu perfume inebria minha alma, sua postura tão viva e intensa me dão sede e vontade de viver, é como se eu tivesse renascido, reencontrado um sentido para a vida.

Espero muito que a sua fuga do nosso beijo não seja uma fuga sua deste novo vínculo que desenvolvemos, que não seja reflexo de sua negação desses sentimentos, pois, se a senhora também pensa em mim e compartilha das mesmas emoções, talvez poderemos juntos desvendar e vivenciar tudo o que o afeto possa nos permitir.

Com todo meu respeito e admiração,

Aurélio Cavalcante

 

PS: meu pai viu o nosso beijo, ele considera que eu estou o traindo, a verdade é que sabendo e dimensionando o que eu sinto por ti, pouco me importa que sejas o maior algoz de minha família, pois és agora a dona do meu coração” .

 

Quando finalizou a leitura da carta Aurélio percebeu que sua esposa chorava, as lágrimas até ali contidas molhavam seu pijama azul escuro, ele então deixou a carta sobre o criado e se voltou a ela trazendo-a para dentro de um abraço suave; embora não entendia exatamente o porquê de tal reação, ele deixou que ali ela despejasse todas as emoções que por ela fluiam. Julieta por sua vez, tentava processar tudo o que havia escutado; sim, ela sabia que aquele beijo havia sido um marco para ambos, contudo, ela ainda se impressionava com a capacidade que seu marido teve de olhá-la para além daquelas vestes negras e pesadas, daquela figura austera que todos consideravam solitária e má, mais que isto, de assumir, mesmo enquanto ela ameaçava sua família, que havia se apaixonado por ela; assim após longos minutos permitindo-se a emoção Julieta disse:

 

— Aurélio- sussurrou suavemente- até hoje me impressiono com sua bondade e suavidade, você, a brisa suave em meio as minhas tempestades, foi capaz de me enxergar para além do que eu era, você percebeu não só que mexia com meus sentimentos, foi além e previu que eu poderia tentar negar e que eu faria de tudo para fugir.

— De fato eu temi que você fugisse deste novo vínculo que nascia entre nós- pausou pensativo, enquanto brincava com uma mecha do cabelo de Julieta- eu só não imaginei que essa fuga envolveria o despejo de minha família- Aurélio concluiu sorrindo.

— Um ataque de uma mulher ferida de amor, como você mesmo disse no dia que foi me confessar que estava apaixonado por mim, pouco depois do despejo - concluiu Julieta. – Você agiu porque estava ferida de amor, Julieta?- perguntou Aurélio sem meias palavras, acarinhando o rosto da esposa.

— Eu tenho a resposta para você- Julieta fez uma longa pausa- está no meio diário, você quer ler?

 

Antes que Aurélio respondesse ouviram-se batidas na porta do quarto, ele então se levantou para abri-la e quando se deu conta, Julieta que estava na cama, tinha sobre si Julietinha, Gaetano e Afrânio, que a abraçavam e a beijavam; um barulho festivo invadia toda a casa;  aquela imagem encheu o coração do botânico de amor, sentiu-se feliz e abençoado por ter uma esposa tão linda e completamente apaixonada pelos netos. Juntou-se a eles, abraçando a neta com força, enquanto os gêmeos se alinhavam nos braços da avó, foi então que Julietinha disse:

 

— Vovô Lelio- virou olhando nos olhos do botânico- vamos brincar de imaginar?-  perguntou curiosa.

— Vamos sim minha princesinha- disse sorrindo- quem você quer ser?- concluiu Aurélio, fazendo carinho nos cabelos da neta.

— Eu vou ser o barãozinho, filho do Barão de Ouro Verde- disse Afrânio sorridente.

— Vovô Lélio não perguntou pra você Fran - respondeu Julietinha brava com o primo- ele perguntou pra mim e eu vou ser a Rainha do Café, igual a vovó- disse a menina levantando-se sobre a cama e ajeitando-se em uma postura imponente- papai disse que sou igual você vovó Jujutinha- falou, virando para Julieta que a olhava encantada.

— É sim meu amor, seus olhinhos são iguais os meus e você é forte e muito inteligente, como a vovó- disse puxando a menina para perto de si, Julieta agora estava recostada na cabeceira da cama, com as pernas dobradas tendo os três netos próximos a si, assim olhou para Gaetano e perguntou - e você Gae, o que você vai ser? - finalizou passando as mãos sobre os cabelos do menino.

— Queria ser o barãozinho também vovó, mas o Fran já pegou- disse pensativo- será que eu posso ser o Soberano?- finalizou animado.

— Você quer ser um cavalo Gae? Mas ele é um bicho e não fala! - disse Julietinha em tom de indignação.– Eu quero sim Ju, lembra que o vovô Lélio contou a história do Soberano e disse que ele era um cavalo especial e mágico que pertencia a rainha mais bonita do mundo, a do chapéu preto?- disse sorrindo- eu quero ser o cavalo mágico da rainha!- finalizou animado.

— Cavalo mágico da rainha? - perguntou Julieta curiosa- Como é a história dessa rainha Gae?- concluiu, dando uma piscadela para Aurélio, que sorriu incrédulo com a provocação da esposa.

— Ahh você não sabe vovó?- disse o menino, olhando diretamente para a avó - então eu vou te contar- disse se ajeitando na cama entre Julieta e Aurélio- Era uma vez uma linda e encantadora rainha, que usava uma armadura negra, ela tinha um chapéu enorme e lindo e era muito elegante, a rainha tinha um cavalo marrom escuro igual o Soberano, o seu cavalo vovó, um dia ela chegou no Vale dos sonhos e falou … - neste instante o menino foi cortado pela prima que levantou dizendo:

— Eu vou conquistar todo o Vale dos sonhos para que ele seja um lugar muito feliz - concluiu a menina sentando-se novamente próximo a Julieta.

— Isso, foi isso que ela falou!- disse Afrânio- aí ela foi conversar com o Barãozinho, que sou eu, propondo uma aliança, o que ela não sabia é que nesse dia ela ia conhecer ele, o Rei do coração dela…- Afrânio foi cortado por Gaetano que prosseguiu entusiasmado com a história.

 

E assim, estando com os netos e sendo observada por Aurélio, Julieta se sentia abençoada, feliz, aproveitando toda aquela manhã alegre e festiva para memorizá-la a fim de mais tarde anotá-la em seu diário; ela ficou impressionada com a história que seus netos contavam, revezando-se entre a narrativa e as falas, Gaetano que era seu cavalo Soberano fazia a vez do narrador principal, enquanto Julietinha e Afrânio revezavam-se nas falas da Rainha do Chapéu Negro e o Barãozinho, ela se divertia com aquela alegoria que Aurélio havia produzido sobre a história deles, assim quando estavam partindo para almoçar, ela tomou a liberdade de provocar o marido:

 

— Quer dizer que a Rainha do Chapéu Negro conheceu no Vale dos Sonhos o Rei do seu coração que ficou completamente encantado com a beleza e a força dela e fez de tudo para que eles se casassem?- disse dando os braços para o marido enquanto se dirigiam a mesa da sala de jantar.

— Ele ficou completamente encantado por ela, ainda mais pois ela usava aquele chapéu imponente…- disse aproximando-se do ouvido de Julieta- sabia que eu acho aquele seu chapéu altamente sedutor minha rainha? - finalizou dando uma piscadela.

— Aurélio pelo amor de Deus, as crianças!- disse batendo no ombro do marido- mas para sua informação, ainda tenho aquele chapéu, está no quarto das memórias- disse desenrolando o braço do marido e andando em sua frente provocando-o.

 

O almoço fora animado na fazenda Ouro Verde, estavam todos felizes, o Barão e Estilingue brincavam de jogo de adivinhações, sendo vez ou outra interrompidos pelas crianças, especialmente por Julietinha que era muito esperta para a idade e já havia decorado algumas das respostas; os demais conversavam animadamente sobre negócios, festas e situações cotidianas.

Após o almoço, todos continuaram juntos e se dirigiram a sala, Ema decidiu dedicar-se ao piano e começou a tocar animadas canções, as crianças dançavam alegremente e logo estavam puxando os avós para brincar com eles; Camilo, que prometerá dançar com a mãe sempre que possível, puxou Julieta para valsarem e pouco depois realizou uma troca com Aurélio; as crianças a está altura dormiam no sofá, e então o casal se viu novamente em um momento só deles, foi então que Aurélio sugeriu:

— Minha amada esposa me concede a honra de passar algum tempo no quarto de nossas memórias? Há algumas coisas que podemos descobrir juntos- disse sussurrando ao pé do ouvido da amada.

Julieta não respondeu, apenas olhou para os demais na sala,  observou que também pareciam compenetrados na música e na dança e que não dariam falta deles e por fim tomou as mãos de Aurélio e o guiou pela escada e corredores, parou na porta do quarto do casal, entrou, pegou o diário que estava em sua penteadeira, indicando ao botânico que pegava-se o pequeno amontoado de cartas e então partiu com ele para o quarto de memórias localizado ao final do corredor. Eles sabiam que ali poderiam  habitar quase em um mundo particular, onde muito provavelmente não seriam encontrados tão cedo.

Ao entrar no quarto, Julieta retirou os sapatos e as meias, também afrouxou um pouco o vestido liberando um pouco os laços apertados, Aurélio que a observava atentamente decidiu por imitar seus passos, tirou o colete e a gravata, mas quando foi retirar os sapatos foi interrompido por Julieta, que disse:

 

— Aurélio acho que ficaremos aqui por um bom tempo, que acha de pedirmos na cozinha um bule grande de café e alguma guloseima para saborearmos? Seria bom também uma jarra de água- finalizou.

— Vou providenciar meu amor, quero ficar aqui durante todo o restante do dia, só eu, você e nossas memórias- finalizou retirando-se do quarto.

 

Enquanto Aurélio se dirigia até a cozinha, Julieta acendeu a lareira aproveitando-se que os ventos do fim de tarde já se aproximavam e o frio se intensificava, acomodou-se em um canto do sofá vermelho e começou a folhear seu diário buscando exatamente os dias em que acabava confessando seu plano para se afastar de Aurélio, sabia que estes episódios estavam descritos em diferentes anotações, por isso passou a folhear todas as páginas marcando os momentos para posterior leitura, assim ela e o marido poderiam conversar sobre aquele momento, que para ela foram cruciais para o desenvolvimento da relação dos dois.   

Aurélio retornou da cozinha com uma bandeja repleta de guloseimas, pães, frutas, bolos, além de café e água, Julieta fez uma cara de espanto riu do exagero do marido, era refeição para um tropa, ele apenas respondeu:

— Como eu sei que vamos ficar aqui por muito tempo, espero que até o dia acabar- pausou olhando para ela e gargalhando- trouxe todos os suprimentos necessários- disse colocando a bandeja sobre a mesinha e dirigindo-se a porta para trancá-la- aproveitei para avisar aos meninos que não vamos aparecer tão cedo- finalizou.

— Os meninos são os nossos filhos?- disse Julieta divertida- Aurélio, nossos meninos já nos deram netos!- finalizou.

— Três lindos netos meu amor, quem sabe não venham outros no futuro? Eu me sinto tão abençoado por termos uma família tão linda e unida, feliz- disse, dirigindo-se ao sofá- mas para mim Ema e Camilo serão sempre nossos meninos- finalizou.

— Já te disse que fico tão feliz que você tenha essa disponibilidade em amar meu filho como se fosse seu- pausou emocionada, tomando as mãos do esposo- toda vez que vejo vocês juntos, os homens da minha vida, sinto meu peito explodir de alegria, meu filho nunca teve um pai, o que eu agradeço aos céus porque eu não aguentaria ver aquele monstro se aproximar de meu menino, mas agora Camilo tem a oportunidade de construir essa relação com você, um homem tão bom, nobre e amoroso- finalizou aproximando-se do marido e dando um breve selinho em seus lábios.

— Ah Julieta, a vida tem sido tão maravilhosa desde que nos encontramos, novas cores, sensações, uma família linda- ele então levantou as mãos acarinhando o rosto da esposa, os dedos iam das orelhas em direção aos lábios, passando pelo queixo; a rainha do café apenas fechou os olhos recebendo aquele carinho- e fico tão feliz por você também estar disponível a Ema, sendo o refúgio de nossa menina, sua grande incentivadora- finalizou.

  – Em pensar que eu me senti responsável por incentivá-la a partir do dia que eu executei a dívida desta fazenda- disse pensativa- está pronto para lembrar como eu agi para me proteger desse sentimento que nascia entre nós?- disse Julieta, abrindo os olhos.

 

Aurélio apenas a respondeu com um aceno de cabeça; ela então pegou o diário que estava ao lado dela e começou a leitura em voz alta.

 

“Vale do Café, março de  1910,

Fiz o que deveria ser feito, afastei de vez a possibilidade de cruzar com aquele bajulador que é o senhor com Aurélio Cavalcante, ao executar a dívida de sua família e finalmente me apropriar da Fazenda Ouro Verde. Este golpe, embora cruel, foi necessário, não só para expansão dos meus negócios aqui no Vale, mas também para me proteger de todas as tentações que tenho ao cruzar meu olhar com aqueles par de olhos azuis como o mar e de todas as outras situações que nublam meu raciocínio quando estou perto deste senhor.

Confesso que esta situação de hoje não foi nada confortável, para além de desabrigar mais uma vez meu filho ingrato, a imagem daquele insuportável Barão devastado, o desespero e decepção da jovem Ema sofrendo por ser enganada e subjugada pelos homens de sua família, uma mulher que merece descobrir a fibra que tem para contornar a situação - por isso fui falar contar a ela parte do meu segredo-  e finalmente o olhar de incredulidade de Aurélio, quase foram capazes de quebrar com toda a pose aparentemente triunfante da Rainha do Café, mais uma dessas máscaras que a vida me deu e me fez usar, é isso que sou e me tornei, um ser implacável, essa é minha fibra e minha força, é assim que eu respondo a ataques e provocações, sejam elas em formas de humilhação por palavras ou por cortejos chinfrins; mais uma vez está claro que eu não me rendo, por mais que dentro de mim eu esteja coberta de sentimentos confusos e contraditórios.

Espero muito que a finalização desta da negociação da propriedade dos Cavalcante articulada  com a contratação de Olegário - que pelo menos para algo me foi útil- me afaste de uma vez por todas das possibilidades de estar sozinha com o filho do Barão, embora talvez em meus pensamentos eu já não consiga me afastar de sua imagem e de seus gestos, ou do gosto de seus lábios nos meus; isto agora é apenas algo que eu terei que combater internamente e que logo cairá no mar do esquecimento”

 

Julieta finalizou a leitura de seu diário olhando no fundo dos olhos azuis de seu marido, sabia que finalmente eles iriam conversar sobre o dia que ela executou a dívida da família Cavalcante, uma família que o destino ironicamente havia preparado para ser a dela. Ela sempre teve a curiosidade de saber o que Aurélio pensou naquele dia e o por que  mesmo diante de todas aquelas suas ações tão duras e impiedosas, ele fora capaz de aceitar que estava apaixonado por ela e ainda por cima reunir coragem para ir se declarar dias depois do ocorrido; de fato, hoje ela tinha certeza, que havia ela agido daquela forma por estar ferida de amor, para se proteger daquele sentimento que insistia em nascer dentro dela e que a transformava em uma nova mulher.

Aurélio ficou a observando por longos minutos, pensava em como diria tudo aquilo que sentiu a ela, será que ela ia entender o ponto dele, por que  para ele mesmo era difícil compreender que mesmo machucado, ele seguiu tento certeza que estava perdidamente apaixonado por ela, assim, ele decidiu quebrar o silêncio que pairava sobre aquele quarto:

— Eu não a escrevi uma carta para você neste dia, na verdade fiquei vários dias sem escrever- pausou pensativo- mas, eu ainda posso descrever exatamente o que senti naquele dia e naquela noite em que fomos despejados…- pausou novamente.

— Você sentiu raiva de mim, Aurélio?- perguntou Julieta-  você sabe que pode me dizer tudo o que sentiu pois eu sentiria exatamente a mesma coisa- enquanto falava ela folheava o seu diário, afastando seu olhar do dele, embora sabia que aquilo era parte da história deles hoje se sentia incomodada e envergonhada por suas ações implacáveis.

— Confesso que fiquei deveras confuso, por que eu não acreditava que você seria capaz de agir desta forma, eu de fato achava que nosso vínculo de fato não era apenas de devedor e de pessoa que espera receber, como você mesmo disse certa vez- pausou pensativo- talvez eu pensava isto porque havia dimensionado que eu estava apaixonado por você e não parava de recordar do nosso beijo, ou mesmo, sentir um pouco de ciúmes de Olegário pensando que você tinha algo com ele, aliás, antes de prosseguirmos eu tenho que lhe confessar algo- disse levantando-se em direção a mesinha e enchendo duas xícaras de café ainda quente por estar perto do fogo.

— Me confessar algo antes de continuar falando dos seus sentimentos?- disse uma curiosa Julieta, que neste momento fechava o diário para pegar a xícara de café que Aurélio havia enchido para ela.

— Sim, você sabe que aconteceram duas coisas inusitadas aqui nesta casa- pausou pensativo- a primeira fora antes mesmo de nos beijarmos na sala, quando Ema e Ludmila falaram que faltava romance em sua vida- finalizou Aurélio rindo da lembrança.

— Ah, então vocês me devoravam na mesa da sala de jantar? Deduzindo a minha vida pelas minhas costas- disse indignada- me diga, Camilo, ele estava nesse dia?- Aurélio acenou que sim com a cabeça, ela então prosseguiu- e ele disse algo sobre isso?

— Apenas concordou com papai de que você não era dada a essas emoções, mas eu parecia um bobo ouvindo aquilo- pausou sorrindo e assim prosseguiu com a próxima confissão- bom, um tempo depois perguntei a Camilo o que acharia se você se casasse novamente e contei que achava que você e Olegário tinham algo.

— Você o que? Aurélio, você só poderia estar louco, como eu me envolveria com ele, agora faz sentido porque um dia ele me disse impropérios e fez insinuações- Julieta ficou ali parada refletindo por alguns minutos- pois acho que já deixei claro que contratei Olegário como uma forma de me proteger de mim mesma, daquilo que eu poderia fazer se continuasse a ceder aos seus encantos, que eu achava até então que era pra me seduzir e me fazer mudar de ideia, algo que evidentemente não era real.

— Não era mesmo, eu simplesmente me apaixonei por você e mesmo quando papai me acusou de traição eu não neguei, meu coração passou a ser guiado por você, todos os meus pensamentos a partir dali estavam em você, o gosto de seus lábios nos meus, a vibração do meu corpo e do meu coração em sua presença, então, naquele dia do despejo, ao mesmo tempo que eu gostaria de te encarar e perguntar como você teve coragem de fazer aquilo, não pelo meu pai, mas pelo sentimento que eu tinha certeza que havia nascido não só em  mim, mas também em você, eu queria apenas me perder no encontro dos nossos olhares, no descompassar da nossa respiração...

 

Ele então fez uma longa pausa, retirou as xícaras e as levou de volta a mesinha, sentia que precisava de alguns segundos para processar as informações que ele mesmo colocava ali, então tomou um copo de água e comeu um pedaço de bolo, oferecendo-o a Julieta que o aceitou, ambos ficaram ali parados se encarando por alguns minutos, ela com os olhos castanhos repletos de curiosidade, ele com os olhos deslumbrados por reviver todo aquele vendaval de sentimentos que o tomaram no dia do despejo e sobretudo na madrugada no quarto do hotel de quinta para onde haviam ido, ele e o Barão. Ele finalmente recomeçou,

 

— Naquela madrugada do despejo eu fiquei desolado, primeiro por Ema e depois por nós, eu me sentia uma pessoa terrível, terrível porque eu não conseguia sentir raiva de você, eu queria sentir raiva, queria te xingar de todos os nomes que meu pai havia lhe empregado, mas eu não conseguia, eu não conseguia sequer ouvir papai resmungar e falar barbaridades sobre você, e eu me odiei, odiei porque havia dado espaço no meu coração para o amor, sim, amor, porque se eu não conseguia te odiar, aquilo não era simplesmente uma paixão passageira, era uma dor profunda por amar aquela que havia me levado tudo, inclusive o meu coração.

 

Aurélio  se levantou novamente, tomou mais um gole de água e prosseguiu, agora de pé em frente a esposa que estava sentada no sofá,

 

— No dia seguinte depois que fomos até a sua casa, eu tive mais uma noite de insônia para refletir sobre o que nos envolvia e então tudo ficou ainda mais claro- respirou- eu não tinha como lutar mais contra e a certeza veio daquele momento em que naquela sala, na frente de todos eu te impede de sair da sala puxando sua mão para nos encaramos; eu precisava olhar no fundo do seus olhos pra ter certeza primeiro de que eu não estava louco e você também sentia algo por mim e segundo para saber que  eu não queria mais lutar contra aquele sentimento que explodia dentro de mim- finalizou.

 

Julieta que ouvia tudo atentamente puxou Aurélio para sentar-se próximo a ela no sofá,  pegando sua mão livre acarinhando-a em círculos suaves, depois acarinhou cada um de dedos e voltou-se para palma, sendo atentamente observada pelo botânico, após um tempo assim ela então tomou a palavra,

 

— Nesta noite que vocês apareceram em minha casa, seu pai fez um escândalo enorme- Aurélio apenas assentiu com a cabeça sorrindo- eu fiquei um pouco deslocada, porque eu percebi que não havia me livrado de você para sempre, tampouco de sua presença tão próxima capaz de me alarmar-  disse, continuando o carinho- eu escrevi algumas linhas sobre esse dia no meu diário, você quer ler? - perguntou encarando-o, estendendo-o com a outra mão o diário que estava ao lado dela.

 

Aurélio pegou o diário de Julieta em suas mãos e apenas sinalizou com a cabeça que leria, ela então o guiou até a página já marcada, e se aconchegou próximo a ele para assim escutá-lo, era a vez dele ler em voz alta as palavras que haviam sido escritas por ela,

 

“Vale do Café, março de 1910,

Quando pensei que havia me livrado da  insuportável presença de Aurélio Cavalcante, lá estava ele novamente, agora na sala de minha casa na companhia daquele advogadinho medíocre e do Barão que gritava como uma criança mimada, entendo que eles estejam sofrendo mas eu fiz o melhor para nós, fui piedosa e elas não aceitaram o acordo, agora querem marcar audiências desnecessárias, para que? para perder meu precioso tempo? Sei que os coloquei no devido lugar e espero que tenham entendido que não há mais volta, entretanto, quando eu me preparava para me retirar sinto uma puxada no meu pulso, era ele, querendo me encarar como tentou por diversas vezes durante o dia do despejo, desta vez deixei que se aproximasse porque achava que ele não teria essa ousadia de tentar me intimidar na frente de todos mas eu me equivoquei, e mais uma vez fraquejei como uma tola, naqueles poucos segundos que nos encaramos eu senti minhas bambas, senti aquela vibração subindo pelo meu corpo e as borboletas se exaltarem no meu estômago, virei uma mulher sem controle e achei que ele me beijaria ali mesmo na frente de todos, me senti mais uma vez atraída por aqueles olhos e aqueles lábios, mas ele estava visivelmente irritado, será que eu fui longe demais?

Não seja tola Julieta, ele segue tentando te intimidar e você deixar se vencer  por um homem? Não há nada entre eu e este senhor e nunca haverá, ele apenas tenta me subjugar, ele ainda acha que vou me render a suas investidas mas eu não cederei, mesmo que aqueles lábios me chamem, eles não passam de tentações profanas e eu irei vencê-las pois não há nada que impeça a rainha do café, nem ela mesma e suas tolices, nem suas ideias torpes e inseguras, nem esse mar de sentimentos que parecem querer transborda-los mas que eu mesma os matarei e os sufocarei; terei que ser forte e implacável comigo mesma, e o que mais desejo é não me encontrar nunca mais com esse senhor, assim será mais fácil aliviar essa tensão e essa angústia que invade minha alma, toda vez que me encontro com aquele belo par de olhos azuis”.

 

— Foi naquele dia exato que eu tive a dimensão que eu não poderia lutar contra o sentimento que nutria por você, vejo que você também começou a perceber que sentia algo por mim e eu estava certo, enquanto eu não queria lutar contra tudo aquilo, você estava se armando para uma guerra, não para me ferir, mas para se proteger- concluiu Aurélio, acarinhando o rosto da esposa.

— Sim, acho que em parte você tinha razão- pausou Julieta pensativa- agora, você também não escreveu sobre este fato não é?

— Não escrevi cartas para você em nenhum dos dois episódios pois estava me preparando e reunindo coragem para te dizer pessoalmente tudo o que eu gostaria que soubesse, eu não queria mais esconder de você o que eu sentia, ao mesmo tempo queria saber se você de fato também sentia algo por mim, foi por isso que resolvi te procurar para colocar em pratos limpos- finalizou.

— O dia em que me destes um ultimato, dizendo que seria nunca mais- disse Julieta em diversão, aproximando-se dos lábios do marido- ainda bem que você não cumpre palavras- e assim o beijou docemente, finalizando com um selinho- uhh, você escreveu uma carta para mim neste dia?

— Sim, eu escrevi assim que cheguei de sua casa- Aurélio fez uma pausa, olhou para a janela e viu que já havia escurecido- mas, eu acho minha amada- parou dando um selinho- que nós poderíamos deixar a leitura para amanhã e escrever alguns momentos novos para nossa história- pausou beijando-a intensamente, quando já estavam sem fôlego ele retomou- agora venha, levantou-se puxando-a, acho que temos direito a um bom banho- finalizou, puxando delicadamente um dos laços do vestido de Julieta.

— Uhh, me parece uma ideia maravilhosa senhor Cavalcante- pausou enquanto desabotoava os botões da camisa de Aurélio- depois me parece que podemos descansar olhando para as estrelas ali naquela cama, nós nunca a testamos- sussurrou travessa em uma piscadela.

 

No andar de baixo Camilo, Jane, Ema e Ernesto comentavam sobre o misterioso sumiço do casal mais velho, achavam que as crianças os haviam cansado e  por isso resolveram se isolar em algum canto secreto da casa; mal sabiam eles que Julieta e Aurélio estavam em um momento especial, só deles, onde ao mesmo tempo que recordavam cada momento de florescimento daquele amor, que não pode ser cortado pela raiz por uma temerosa Rainha do café, era construída novas memórias em seus corpos e corações.

 

 


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Notas finais do capítulo

Obrigada pela leitura, o link da playlist com as músicas está no final capítulo anterior!
Até a próxima,

@cafeerosas



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