Ou pensas tu que eu não poderia, agora, orar a meu Pai e que ele não me daria mais de doze legiões de anjos?

Mateus, capítulo 26, versículo 53.

Eu sou uma santa.

Não, não sou uma mulher que nega o pecado, uma virgem de corpo e alma, uma hippie muito da paz e amor.

Sou uma santa. 

Bem, sou uma santa literalmente.

Meu nome é Maria. Não falarei o nome completo, óbvio, ou você será mais um na minha querida lista de fiéis. É uma relação interessante; a fé. Se por um lado me alimenta, por outro me tira a fome. Ser santificada para muitas pessoas é uma - ao pé da letra - benção, um chamado divino. O carimbo oficial de Deus que você foi um bom menino, que vai aos céus sentar ao lado Dele. Ledo engano. Bem, quase engano. Teoricamente estou sentada ao lado, contudo na prática é um símbolo meu que está lá de forma corpórea. Um totem. É através dele que sei quando o Pai está zangado, contente, entediado ou simplesmente deseja despejar incumbências divinas em alguém. Também é graças a esse símbolo que escuto todas as orações e devoções que qualquer ser humano na face da Terra faz em meu nome. Uma grande rede de preces passa diretamente por lá, e é encaminhada até minha mente em quesito de importância e relevância mundial - por exemplo, um gato desaparecido estará abaixo de um assassinato, e assim vai. Infelizmente não sou sortuda em cair como padroeira de algo ou alguém, o que filtraria uma bela parcela de todas as demandas, todavia não posso reclamar muito do meu posto. Por ser uma santa de menor fama, meus chamados tem geralmente um pé em romances ou trabalho. São raríssimas as vezes em que trombei com algum crime, ou penalidade. Já é difícil entender porque um humano quer ficar para sempre com um embuste, quiçá julgar o pedido e dar a consequência correta a isso. Minha função é basicamente escutar, filtrar, atender ou mandar pastar. Existem santos, como eu, que tem como prioridade ver e julgar, outros agraciar, os mais ferrados, punir. Em poucas ocasiões, nos juntamos para fornecer uma decisão justa e coerente sobre um caso, ou enviamos um anjo com alguma mensagem para o responsável por algum ser humano em especial. Quando tal ocorrência existe, é provável que a pessoa em questão seja crucial em várias linhas de vida e almas diferentes - talvez um político, filósofo ou terrorista. Existe uma sutil diferença entre explodir uma bomba num deserto e destroçar cactos e limpar uma cidade inteira do mapa. Foi numa dessas discussões sobre ética e moral que acabei sendo invocada pela minha atual consulente, Marisa. 

Ajoelhada ao lado da cama, focando os olhos em uma imagem - deveras mal feita, preciso dizer - minha, sussurrava sobre seus pecados e implorava por minha ajuda. Algumas coisas, como esquecer de contar o troco no caixa do supermercado e chegar em casa com dois reais a mais me fazem revirar os olhos, porém outras me deixam com os cabelos em pé. Marisa tinha uma essência nobre, porém pecava - com todo o respeito da piada - no que condizia a amor próprio. Ela não somente era feita de trouxa, como se prestava a esse papel independente de quem estivesse a sua frente. Óbvio que isso lhe causava muita angústia, e por esse exato motivo me chamara. Estava obstinada em descobrir se crianças que fazem algum tipo de maldade são realmente culpadas de algo, e não suportei o bocejo que escapou por entre meus lábios. Um garotinho a xingara na rua após ela ter quase sido atropelada por ele em sua bicicleta, e a mesma se martirizava por estar com ódio do moleque. Seres humanos realmente conseguem deturpar o significado de perdão, e a mulher estava em uma viagem direta para o poço da amargura somente porque sentiu vontade de enviar o garoto ao inferno. Primeiro, ela nunca conseguiria o fato - para chegar até Lúcifer é necessário o preenchimento de diversos pré-requisitos, além de uma justificativa gigantesca e espaço na casa. Segundo, claramente ela não desejava aquilo de todo o coração. Não preciso nem conseguir ler sua mente para saber disso. As intenções foram claras: ela se irritou e precisou jogar isso para fora. Cansada de todo o lenga-lenga sobre como uma mulher de trinta e alguns anos pode fazer mal a um pobre menino, toquei a parte de trás de sua cabeça e comecei a entoar hinos para que se acalmasse, que estava perdoada perante os olhos divinos. 

Um estrondo impediu que eu terminasse sequer o primeiro cântico. Um líquido quente começou a percorrer entre meus dedos, manchando minhas jóias e colocando todo o meu ser em estado de choque. Isso não pode estar acontecendo. É impossível. Qualquer ação que influencie o sujeito que está orando é imediatamente anulada pela presença de um santo. Enquanto usa a fé, o ser humano é envolto pela santidade do espírito que está clamando e nada pode lhe atingir. É uma maneira de permitir a comunicação perfeita entre Céus e Terra, uma forma de dar e receber informações. Se o coração do indivíduo está completamente focado no santo, nada mundano deve impedir a conexão. Muita gente acredita que igrejas, terreiros e templos são espaços sagrados, quando na realidade é onde qualquer pessoa esteja intercedendo de forma plena. Isso realmente não pode estar acontecendo.

Em segundos, estou na Sala Real. Santos, anjos e outras entidades param ao perceber meu estado, e um silêncio corre pelo local mais sagrado dentro do próprio Paraíso. Gotas pingam através de meu dedo anelar pelo piso de branco puro, e ainda não consigo formar palavras coerentes. 

O sangue de Marisa continua a manchar o chão, seu assassinato ainda forte em minha memória. O elo mais sagrado de todo o Universo celestial acaba de ser rompido. 

O poder do próprio Deus foi colocado à prova.